A cantiga é uma arma / E eu não sabia / (…) Tudo depende da raiva / E da alegria
José Mário Branco
Na terça-feira passada (12 de abril), inaugurou-se, na Cinemateca Portuguesa, um ciclo de filmes intitulado José Mário Branco – A Morte Nunca Existiu, com o intuito de celebrar a passagem deste cantautor pelo cinema português, três anos após a sua morte. A sessão de abertura contou com a projeção, pela primeira vez na Cinemateca, do documentário Mudar de Vida – José Mário Branco, vida e obra (2014), co-realizado por Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro. Já era tempo.
A música de José Mário Branco faz parte da banda sonora da minha vida desde pequena, o que à partida torna suspeito o meu entusiasmo em relação a este documentário. Recordo-me da primeira vez que vi o Mudar de Vida, numa projeção improvisada na Zona Franca nos Anjos, em Lisboa, em finais de abril de 2014, e do sentimento de comunidade que desde então associo ao filme: seja numa sala de cinema convencional, num espaço mais intimista, ou em família, em frente à televisão, sempre que revejo as imagens e ouço os sons que povoaram a vida e a obra de José Mário Branco, sinto-me “em casa”, rodeada de companheiros – caras, canções e causas — que conheço bem e que gosto de trazer comigo para onde quer que vá.
Recentemente, tive a oportunidade de assistir à ante-estreia parisiense do novo documentário de Pedro Fidalgo, N’effacez pas nos traces ! Dominique Grange, une chanteuse engagée (Não Apaguem Os Nossos Rastos, 2022), e de me sentir de novo envolta por esse sentimento de pertença e de partilha. Tenho de admitir que, até então, o nome Dominique Grange não me dizia nada; talvez por isso, tenha começado por me sentir um bocado intrusa, como se tivesse menos direito de estar ali por aquela não ser a “minha história”. Na sala do cinema Saint-André des Arts, encontravam-se várias pessoas que não só tinham contribuído para o financiamento do filme, como desconfiava que tinham estado diretamente implicadas nos eventos históricos evocados (as suas reações efusivas e comovidas durante a projeção não deixaram dúvidas quanto a isso); à minha volta, várias vozes trauteavam canções de protesto que me eram desconhecidas, sobre acontecimentos que não constavam dos manuais de História em Portugal. Mas essa sensação foi-se dissipando ao longo da projeção, à medida que fui sendo interpelada por imagens e sons da atualidade que me eram familiares; até que, no genérico final, surgiram no ecrã as “palavras mágicas” capazes de devolver o documentário ao território dos meus afetos: “Dedicado à memória de José Mário Branco”.
Gosto de pensar em Mudar de Vida e N’effacez pas nos traces ! como sendo dois “projetos-irmãos”, nascidos da mesma vontade filmar a História através das vozes e da música de intervenção. Ambos foram realizados graças a uma autoprodução solidária, comprometida e participativa que, segundo Pedro Fidalgo, é a única capaz de garantir a liberdade de tom e de forma necessária à produção de um projeto que, como estes, se demarca pela sua dimensão eminentemente política e propõe um olhar sobre os eventos e os valores da atualidade distinto daquele que é veiculado pelos meios de comunicação de massa. Para além disso, os dois documentários destacam-se por um trabalho exigente e sério de montagem, que tem o seu maior trunfo na riqueza e diversidade do material de arquivo reunido pelos seus criadores. Por estas razões, penso que fará sentido escrever simultaneamente sobre Mudar de Vida e N’effacez pas nos traces !, não tanto com o intuito de comparar os projetos, mas de compreender de que modo as “mensagens” dos dois filmes, de resto claramente enunciadas nos seus títulos, se complementam e, eventualmente, afirmam o papel transformador da arte na sociedade.
Radiografia de uma época de profundas mudanças – da ditadura de Salazar aos dias de hoje – através do retrato de um homem – “artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro”, assim se define o próprio –, Mudar de vida bebe do génio musical e do sentimento de “inquietação” que pautam a vida e a obra de José Mário Branco, mostrando a que ponto estas são indissociáveis da História recente de Portugal. Tendo como fio condutor as suas palavras e as suas músicas, a montagem alterna de maneira inteligente preciosas imagens de arquivo, testemunhos de artistas amigos (Sérgio Godinho, Francisco Fanhais, Camané, Manuela de Freitas), captações de ensaios e de concertos, bem como imagens de eventos mais recentes – voltarei a este detalhe mais tarde.
Ao mesmo tempo que mostram que as lutas de ontem continuam bem vivas e urgentes nos dias de hoje, Mudar de Vida e Não Apaguem Os Nossos Rastos sublinham o papel da música de protesto – e da arte em geral – na luta social.
Filmado ao longo de sete anos (duração que se explica tanto pelas dezenas de horas de material acumulado que foi necessário “desbravar”, como pelas dificuldades encontradas na obtenção de financiamento junto de produtoras, instituições públicas e privadas, até à decisão de recorrer a uma plataforma de financiamento coletivo, vulgo crowdfunding), o documentário acaba por desenhar um duplo círculo perfeito, quer na maneira como é traçado o itinerário pessoal e profissional de José Mário Branco, quer no modo como faz dialogar o passado e o presente através das imagens e dos sons: por um lado, a sequência de abertura mostra o músico a interpretar a canção que dá o título ao filme, num concerto em Lisboa, em 2008, para logo recuar ao início dos anos 60, acompanhando, de seguida, o seu percurso até ao momento em que sobe ao palco para essa mesma atuação; por outro lado, as imagens de arquivo das lutas do pós-25 de Abril de 1974 ressoam com o material filmado pelos próprios realizadores nas manifestações dos Indignados, em 2011, as quais se oferecem, nos últimos minutos do filme, como um espelho face à História, lembrando-nos de que não estamos a salvo que esta se repita. E de resto, está lá tudo: o “salto” e o exílio de José Mário Branco em França, o regresso a Portugal imediatamente após a revolução, o G.A.C. (Grupo de Ação Cultural), a passagem pela Comuna, a colaboração com as novas gerações de artistas, até à época presente.
N’effacez pas nos traces !, por sua vez, centra-se na figura da cantautora militante Dominique Grange, cujas canções transportam as marcas do Maio de 68. Pedro Fidalgo acompanha a artista na rememoração do seu percurso político e musical desde o final dos anos 60, ao mesmo tempo que se mantém atento aos movimentos sociais dos últimos anos em França, onde vive. Este olhar sobre a atualidade está presente desde a génese do projeto, sendo tão importante para o realizador como para Dominique Grange, que define o seu trabalho como um “compromisso perpétuo”. De certa forma, a aliança entre a política e a arte é personificada pela união de Dominique Grange com o ilustrador e autor de banda desenhada Tardi, companheiro de vida e de luta com quem adotou quatro crianças chilenas, e cujos desenhos são necessariamente integrados no filme.
A maneira como Pedro Fidalgo descreve a sua descoberta de Dominique Grange sugere igualmente a tomada de consciência de uma série de afinidades inesperadas e de heranças partilhadas que se repercutem no modo como ambos vivem ativa e intensamente os movimentos sociais recentes. No site do filme, o realizador conta que ouviu pela primeira vez uma canção de Dominique Grange no documentário Ghetto Experimental de Jean-Michel Carré (1973), projetado no contexto da mobilização estudantil e da ocupação da Universidade Paris 8, em 2007-2009: “No filme, dezenas de grupúsculos desejam um mundo novo, manifestam, militam e, de repente, a voz de uma rapariga, apenas acompanhada de uma guitarra, canta Abaixo o Estado Policial! (A Bas l’Etat Policier!). Esta canção ficou-me gravada na memória como uma emanação do passado, mas que era ao mesmo tempo uma expressão do presente que então eu estava a viver.” Mais tarde, Pedro Fidalgo descobriu que uma das canções mais emblemáticas de Dominique Grange, Les Nouveaux Partisans, tinha sido traduzida em Portugal sob o título Até à vitória final e gravada pelo grupo G.A.C. do qual fazia parte José Mário Branco. E finalmente, realizador e cantautora perceberam que partilhavam também o(s) mesmo(s) inimigo(s): Nicolas Sarkozy no início dos anos 2000 (e hoje, por extensão, Emmanuel Macron) e o seu projeto de “liquidar a herança do Maio de 68 de uma vez por todas”, em reação ao qual Dominique Grange compusera, em 2008, a canção N’effacez pas nos traces !.
Retomando o título da canção, o documentário de Pedro Fidalgo percorre os rastos do Maio de 68 ao longo das últimas décadas; no entanto, a linha cronológica parece aqui mais esbatida do que em Mudar de Vida, na medida em que o realizador não só decide introduzir, desde os primeiros minutos do filme, as imagens por ele captadas em várias manifestações em Paris, desde 2017, como as monta em imediata justaposição com o material de arquivo, recorrendo a sobreposições e misturas sonoras disruptivas que materializam a (con)fusão dos movimentos contestatários das diferentes épocas. Outros aspetos de Não Apaguem Os Nossos Rastos fazem deste um filme simultaneamente mais complexo e “escorreito” do que o anterior: por um lado, sente-se mais a marca de Dominique Grange, no modo como esta guia as conversas e as conduz várias vezes para o território pessoal e familiar; por outro lado, há uma menor presença de entrevistas convencionais (talvez um dos aspetos menos bem conseguidos de Mudar de Vida), sendo que o realizador opta por mostrar vários (re)encontros de Dominique Grange com amigos militantes, dando voz às causas de cada um (luta de classes, antimilitarismo, crise dos refugiados, defesa da Palestina, denúncia da violência policial, ou ainda direitos dos animais e ativismo em prol dos surdos mudos). Também a banda desenhada de Tardi cumpre uma função específica no filme, de certa forma “mostrando o imostrável”, ao ilustrar histórias do foro íntimo ou determinados eventos violentos para os quais não existe documentação ou imagens oficiais. Igualmente interessantes são as sequências que revelam os bastidores da criação musical de Dominique Grange, nomeadamente junto do grupo Accordzéâm, com quem colaborou nos seus últimos álbuns e espectáculos.
Por fim, os diferentes tipos e suportes de imagem utilizados nos dois documentários (recortes de jornal, fotografias a preto e branco, película 16mm, vídeo, desenho animado, até às images captadas com smartphones) contribuem para confrontar o espectador com os movimentos da História, na encruzilhada de várias temporalidades: a de um passado outrora sonhado como chave para o futuro, e a de um presente que não cessa de sabotar a promessa de um outro mundo. É neste ponto que as “mensagens” sugeridas pelos títulos dos dois filmes convergem e se complementam: é preciso “mudar de vida”, sim, mas sem que sejam apagados os rastos do que já vivemos; por outras palavras, a consciência e o conhecimento da História é algo indispensável no abrir caminho para a mudança.
Ao mesmo tempo que mostram que as lutas de ontem continuam bem vivas e urgentes nos dias de hoje, Mudar de Vida e Não Apaguem Os Nossos Rastos sublinham o papel da música de protesto – e da arte em geral – na luta social. As canções de José Mário Branco e de Dominique Grange não se limitam a refletir (sobre) a realidade, são transformadoras da mesma. E se acreditamos, como eles, que “a cantiga é uma arma”, também a câmara de Pedro Fidalgo, face ao gás lacrimogéneo e às matracas dos agentes da polícia, o será.
Mudar de Vida – José Mário Branco, vida e obra e Não Apaguem Os Nossos Rastos serão exibidos nos dias 22 e 23 de abril, na Casa do Cinema de Coimbra.