Uma espécie de fábula moderna sobre o amor e os seus desencontros, mas também um retrato embevecido de um bairro e dos seus habitantes transformados em personagens peculiares, Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt? (O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu?, 2021) é um filme repleto de potencial, disposto a arriscar no seu compromisso com uma visão original. Um filme que é, a espaços, promissor e com detalhes empolgantes, é também por vezes desconcertante pela sua dispersão, pelas tangentes que acabam por desviar o filme de um rumo mais interessante, e que no fim acaba mesmo por tentar cumprir com um desfecho mais convencional, apesar de todo o caminho até aí a tentar escapar a tais limitações. Cheio de belos momentos, não consegue materializar as suas intenções em algo substancial, como que deixando-se encantar pelo próprio feitiço.

O início revela, desde logo, os caminhos singulares que Aleksandre Koberidze pretende explorar. Uma longa sequência filma o portão de uma escola na hora de saída dos alunos, observando os diferentes hábitos dos estudantes depois das aulas, até o local esvaziar-se, com a câmara a focar-se no espaço agora preenchido apenas por um pássaro ou outro, apontando a câmara para o chão, que pouco depois dá lugar a um encontro fortuito entre duas pessoas. É uma sequência indicativa de um formalismo rigoroso da câmara de Koberidze, no sentido em que esta está ao serviço de um olhar curioso, disposto a encontrar a beleza de certos momentos quotidianos – quase que um rigor oposto ao de Haneke, parecido na execução, mas com intenções opostas [no caso de Haneke, à procura de exemplos de cinismo ou de maldade humana, com a excepção Amour (Amor, 2012)].
Pouco depois, as duas figuras da primeira sequência voltam a encontrar-se outra vez por acaso, e Koberidze filma este reencontro de longe, de forma a quase não conseguirmos distinguir as personagens. É aqui que o carácter de fábula do filme começa a revelar-se, especialmente com a entrada do narrador do filme, que reconta este encontro através da perspectiva de quatro testemunhas pouco comuns: uma câmara de segurança, uma pequena planta, uma sarjeta e o vento, que anunciam que o par foi alvo de uma maldição e que, no dia seguinte, os dois iriam esquecer-se de quem eram.
O filme é exímio em retratar a cidade como um pequeno bairro cujos locais acabam por se tornar familiares para o espectador.
Para reforçar esta entrada num mundo de faz de conta, com as duas personagens a adormecerem nas suas camas, umas linhas de texto surgem por cima das imagens, pedindo ao espectador que feche os olhos durante alguns segundos, para os voltar a abrir apenas após um sinal sonoro (como se fosse preciso “pedir” ao espectador para imaginar). Quando regressamos, é um novo dia e os actores que representam as duas personagens mudaram; as personagens esqueceram-se efectivamente de quem eram e o que faziam, e têm de arranjar novos empregos, começando a sua nova aventura. Este espécie de truque de magia, de apelo directo ao espectador, de referência ao cinema como um espaço de encantamento, lembra algum cinema de Apichatpong Weerasethakul (pelo uso da natureza), mas mais até de Miguel Gomes – neste filme, o narrador é o próprio realizador, algumas personagens têm o nome dos seus actores, e mais para a frente haverá a menção a um filme dentro do filme – e a sua Sherazade e os contos de As Mil e Uma Noites (2015).
A abordagem visual de Koberidze é eficaz a criar um sentimento de assombro perante a ideia de um mundo ligeiramente tangencial à realidade, com uma interligação profunda entre os elementos, mas é também reveladora da incapacidade do filme de deixar as imagens “falarem” por si, sem a necessidade de uma mensagem-história colada por cima (como, por vezes, com algumas deambulações do narrador sobre pensamentos seus). Efectivamente, as transições entre planos (como a passagem do sol para a luz de um projector ou das luzes e ruído de um estádio para a turbulência de um rio) são muitas vezes mais interessantes que o próprio conteúdo dos planos, como se estes existissem apenas como intervalo, a serviço das tentativas de “embelezar” a realidade com pequenos contos.
Nos mais recentes filmes de Ryûsuke Hamaguchi [Gûzen to sôzô (Roda da Fortuna e da Fantasia, 2021) e Doraibu mai kâ (Conduz o Meu Carro, 2021)], a ficção surge como meio de superar a realidade, como forma de melhorar e redimir a verdade. Em O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu? existe escondido um belo documentário sobre a cidade georgiana de Kutaisi, repleta de História, que o filme tenta transformar em histórias, ignorando o seu próprio trabalho de observação, que subsiste na forma como filma os olhares e enquadra essas vidas que captura. O filme é exímio em retratar a cidade como um pequeno bairro cujos locais acabam por se tornar familiares para o espectador – como, por exemplo, os homens que se juntam para ver futebol, que ficam nos carros para ouvir o relato e olham para as televisões do café mesmo depois de este fechar, e os cães, que sabendo destas rotinas, procuram nestes sítios a companhia das pessoas. É como se o filme fosse melhor como documentário do que como obra de ficção: aqui, a ficção acaba por atrapalhar, criando um problema que depois vai resolver, quando na verdade as imagens seriam suficientes para guiar o espectador ao tal espaço de encantamento.