Consulte: Palatorium do dia 19 de Abril
O mês de Abril continua o ritmo acelerado de estreias do último mês. Depois de um ano com as salas de cinema a conviverem com os efeitos da pandemia, este previsível regresso à normalidade tem coincidindo com o lançamento de vários filmes em sala, de novas produções ou títulos guardados desde o ano passado; acrescentando a isto a oferta crescente de títulos nas diferentes plataformas de streaming, em Abril tivemos só até ao dia de hoje já 28 novos filmes (e assim filmes novos de Steven Soderbergh, Judd Apatow e Richard Linklater, acabam por passar de certa forma despercebidos).
Os grandes destaques do mês vão para já para o filme do duo Daniels (Dan Kwan e Daniel Scheinert), Everything Everywhere All At Once (Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, 2022), Amants (Amantes, 2020) de Nicole Garcia, X (2022) de Ti West e para o novo filme de Robert Eggers, The Northman (O Homem do Norte, 2022). Por outro lado, obras como Ras vkhedavt, rodesac cas vukurebt? (O Que Vemos Quando Olhamos Para o Céu?, 2021) de Aleksandre Koberidze, Flee (Flee – A Fuga, 2021) de Jonas Poher Rasmussen e Lamb (2021, Cordeiro) Valdimar Jóhannsson, não convenceram.
Contamos este mês com dois comprimidos bastante elogiosos sobre Amants (Amantes, 2020) de Nicole Garcia, por Daniela Rôla e Ricardo Gross, que também escreve sobre o novo filme de Robert Eggers, The Northman (O Homem do Norte, 2022) e Tromperie (Traições, 2021) de Arnaud Desplechin (melhor impressionado com o primeiro do que com o segundo). Acrescentamos ainda dois comprimidos de João Araújo, desiludido com Flee (Flee – A Fuga, 2021) de Jonas Poher Rasmussen, mas entusiasmado com a estreia do actor americano Fran Kranz na realização, com Mass (Reunião, 2021).
É uma história simples, a história mais simples – a história de um casal que se ama. Simon (Pierre Niney) ganha a vida de maneira fácil, é um dealer, algo que a sua família condena firmemente, mas que parece ser indiferente a Lisa (Stacy Martin). E, quando as coisas se complicam, quando um dos clientes de Simon morre de overdose, Lisa pensa apenas naquilo que é para ela mais importante – continuar junto de Simon, fugir com ele para um qualquer lugar, enfrentar o que seja preciso enfrentar. Ela tem apenas essa segurança – o facto de amar Simon. É nesse momento, com a traição de Simon, que ocorre a primeira quebra nesta história, avançamos alguns anos, estamos num destino exótico, a fazer lembrar outros interlúdios do film noir, como os de Out of the Past (O Arrependido, 1947) ou do seu remake Against All Odds (Vidas em Jogo, 1984), um destino em que parece existir a possibilidade de um retorno à simplicidade. Mas depressa regressaremos ao frio europeu, agora Genebra em lugar de Paris, sem que Lisa consiga separar-se de Simon (grande amor ou vício incurável).
Estamos rodeados de incertezas, de verdades que são ditas como mentiras, de passados e motivações enganadores. O que mudou também desde Paris é o equilíbrio de poder na relação de Lisa e Simon – ela agora mulher casada, abastada, cabendo-lhe agora sustentá-lo. Algo que, mais do que o ciúme, deixa Simon inquieto. Lisa deseja tão somente uma simples entrega, um amor sem “mas”, tal como o seu. Ironicamente, Léo (Benoît Magimel), o marido de Lisa, é quem parece ser capaz desse tipo de amor, lembrando alguns dos vilões que encontramos em Hitchcock, vilões que se redimem pelo amor. Lisa acabará por ter a prova final da redenção de Simon, quando o tempo para a história de amor de ambos se esgotou já. Ficamos a pensar quem se tornará, afinal, a Lisa que sobrevive a todos estes acontecimentos, a mulher que vemos como um rosto perdido na multidão.
Daniela Rôla, 19 de Abril de 2022
O filme abre com a imagem de um casal jovem que dorme, os seus corpos entrelaçados. O tom contrastado e solarizado da imagem irá manter-se ao longo desta realização de Nicole Garcia, que filma a história de um triângulo constituído por dois jovens oportunistas e um indivíduo rico com ligações não inteiramente claras. O móbil das personagens é o dinheiro: o dinheiro de Léo Redler (Benoît Magimel, estupendo reencontro), que pode ter origem não somente no trabalho de peritagem de seguros em grandes negócios, permite-lhe ostentar uma sofisticação algo deslocada da sua figura e entreter a jovem mulher, Lisa (Stacy Martin), acomodada ao casamento que lhe garante uma vida luxuosa, e que possibilitará manter por perto o seu amante, Simon (Pierre Niney), que reencontra numas férias, anos depois da separação traumática de ambos, e de quem não pretende voltar a afastar-se.
Nicole Garcia constrói uma narrativa com laivos de filme noir que deita por terra qualquer sugestão de romantismo gerada pelo momento de abertura. Como se o carácter estatutário das relações se sobrepusesse à possibilidade amorosa das mesmas. Quando amor e dinheiro não são conciliáveis, o pragmatismo do ser humano opta pelo segundo. Excepção feita para aqueles que estão na posse do dinheiro, e talvez resida aí o facto da personagem de Léo Redler ser a mais interessante das três. Léo conhece Lisa quando esta trabalha no bengaleiro de um clube nocturno. O filme sugere que Lisa poderia tirar outros rendimentos proporcionando companhia aos frequentadores. Léo declara-se-lhe e a rapariga deixa-se ir atraída pela riqueza e pela protecção de Léo. Lisa e Simon vão ambicionar uma segunda vez fazer parte de um mundo que não é o deles, e pela segunda vez isso terá por desfecho um crime. O romance como um luxo dos que não estão ocupados em sobreviver.
Ricardo Gross, 19 de Abril de 2022
O primeiro filme na história dos Óscares a ser nomeado para as categorias de Melhor Documentário, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Filme de Animação, o sucesso de Flee deve-se sem dúvida à extraordinária história que conta de um refugiado na sua longa viagem para a salvação, uma jornada que ainda não terminou. A história de Amin começa em 1989, quando era criança ainda no Afeganistão, no período da retirada das tropas soviéticas do país e que abriram caminho à instabilidade e repressão no país, passando por uma fuga para Moscovo e uma vida clandestina, e ainda para as tentativas de atravessar a fronteira para a escandinávia percorrendo os caminhos de tráfico humano. É uma história comovente, que contém vários graus de complexidade que o filme aborda, cedendo o espaço à narração do próprio. Porém, a escolha pela animação, por oposição a um documentário tradicional com imagens de arquivo (que Flee, apesar da animação, não deixa de recorrer também) é por vezes estranha: se permite desta forma visualizar alguns dos momentos mais atribulados (e dos quais não haveria imagens), recorre por vezes ao desenho do protagonista a falar directamente para a câmara (como é convencional nos documentários), a contar a sua história, e em vez de estarmos a ver o rosto do protagonista, a sua expressão facial e emotividade ao recordar a sua história, vemos um desenho disso – um esboço que não é substituto do original.
João Araújo, 19 de Abril de 2022
A hipótese posta por Jonathan Romney, na Sight and Sound deste mês, de que The Northman corre o risco de glorificar a violência e a guerra, é a melhor publicidade que o filme de Robert Eggers podia querer. Mas como toda a formulação publicitária, trata-se de uma generalização que não corresponde inteiramente à experiência de ver o filme, por parte do espectador experimentado na representação pelo cinema da violência mais gráfica e difícil de assistir.
Eu próprio caí no engodo e pensei para mim no final da única batalha que Eggers nos mostra, quando os reféns da tribo derrotada (antepassados dos russos), os que não serão feitos escravos, ficam encerrados numa habitação a que os vencedores deitam fogo, se não estaria a ali o Idi i smotri (Vem e Vê, 1985) alusão ao filme de 1985 de Elem Klimov, sobre os horrores da II Grande Guerra – dos filmes de vikings? A ilusão desfez-se momentos depois e apesar de ainda mais sangue vir a ser jorrado, The Northman encaminha-se para um conflito pessoal, na razão da sua história (a lenda escandinava que inspirou o Hamlet de Shakespeare) de vingança, com um índice de matança mais diminuto.
O filme de Robert Eggers funciona no compromisso entre visionarismo e entretenimento. É sabido que se destina a um público massificado, na razão do custo elevado da sua produção. Eggers é muito bom a dar os elementos etnográficos da história, rituais e feitiçaria, as entradas da matéria sobrenatural, e todo o elenco (Ethan Hawke, Willem Dafoe, Björk, impecáveis) mostra compromisso intenso com as cenas, quer estas exijam rigidez postural ou histrionismo de uivar à lua. No entanto, por todo o filme perpassa a impressão causada pelas imagens geradas ou afinadas em computador, alguns movimentos de câmara que sugerem terem sido produto de tecnologia topo de gama, e isso compromete a fisicalidade e a visceralidade da narrativa.
The Northman tem por um lado a riqueza de corresponder à visão pessoal de um autor sobre este universo bárbaro e circunscrito, e por outro as marcas do compromisso e dos limites a que o cinema comercial obriga.
Ricardo Gross, 19 de Abril de 2022
Uma utilizadora do sítio electrónico de venda de livros Wook comenta que seria engraçado (sic) ver o romance de Philip Roth – entre nós traduzido por Engano – adaptado ao teatro. Falamos do livro de que Desplechin fez esta versão cinematográfica, que respeita em larga medida o facto de a obra ser ela toda constituída exclusivamente por diálogos: entre um escritor americano, de nome Philip, e as suas amantes do presente e do passado. A personagem de Denis Podalydès (Philip) afirma ser um fetichista da palavra, dotado de uma memória invulgar. Arnaud Desplechin também fez um filme sobre esse mesmo fetiche, que em muito supera nas histórias de adultério o desejo carnal. O realizador não traiu a obra de Roth, mesmo considerando que o filme é falado em francês (mera convenção).
Onde Tromperie falha o ensejo de ser um melhor filme decorre da sensação de assistirmos a um objecto quebrado no fluxo da narração pela rigidez a que os diálogos obrigam, e que se verifica o tempo inteiro da sua duração. Ainda que Desplechin desdobre com soluções visuais os espaços do filme, que a dada altura sugerem poder ser espaços mentais, ou quando reconstitui episódios contados pelas personagens (que geram os momentos menos conseguidos; autênticos postiços), a sensação de estarmos perante um objecto que não transcende a natureza teatral, não assumida mas evidente, torna-se cada vez mais pesada. Os actores são magníficos e justíssimos (principalmente Podalydès e Léa Seydoux), embora não os consigamos apreender numa existência fora da redoma do imediatismo de cada cena. O preço a pagar pelo fetiche da palavra é ficar com um filme de cabeças e corpos falantes. E tanta verborreia neurótica acaba por cansar.
Ricardo Gross, 19 de Abril de 2022
A estreia do actor americano Fran Kranz na realização é um drama inteligente, comedido na encenação desta história, que usa como forma de aumentar a tensão emocional através dos silêncios, pausas e ausência do supérfluo. Seguindo o princípio de que menos é mais, Kranz pega numa narrativa mínima – um encontro entre dois casais, quatro pais, numa sala, durante pouco mais de uma hora – para desfiar um novelo de pequenos confrontos e reconciliações, de verdades escondidas que vão aos poucos revelar o(s) motivo(s) desta conversa, que a certo ponto nos obriga a olhar para nós próprios, a pensar na nossa moralidade, e o que faríamos naquela situação. Depois de uma espécie de prólogo, em que se prepara o encontro de uma forma nervosa, escolhe-se o espaço e a decoração, os dois casais encontram-se numa pequena sala, nas traseiras de uma igreja. Sem fornecer qualquer contexto para o motivo desta reunião, Kranz cede o espaço ao magnífico trabalho dos quatro actores (Ann Dowd, Martha Plimpton, Jason Isaacs e Reed Birney), e se no início o mistério à volta da razão desta conversa, de tentar perceber os detalhes do que terá acontecido, mantêm o interesse na história, é o modo como os actores vão trabalhando a forma de dizer o que ainda não tinha sido dito e as suas repercussões emocionais, que vai elevar Mass a algo de realmente importante, ao reforçar a necessidade de diálogo e entendimento. Kranz acompanha esse derrame sentimental de forma sóbria, escolhendo os ritmos de duração dos planos de forma a acompanhar os actores, mas permite-se, já no acto final do filme, algumas escolhas de enquadramentos menos óbvias, mas memoráveis.
João Araújo, 30 de Abril