Espero – para meu próprio bem – que haja uma diferença substancial entre ser paranóico e não acreditar em consequências. Explico. Até há uns dias nunca tinha visto um dos filmes mais conhecidos com William Hurt, este The Big Chill (Os Amigos de Alex, 1983) de Lawrence Kasdan. Foi preciso que nos deixasse (fazia parte de um cinema que vai derretendo como um icebergue) para que, sem pensar, desse por mim entre aqueles amigos que se reúnem para dizer adeus a um amigo que, subitamente, no more. Uma dupla forma de luto.

Sabemos que a personagem de Alex, que nunca vemos na versão final, tinha um rosto. Ainda que invisível. Era Kevin Costner, embora as cenas tivessem sido removidas do filme. Essa excisão do rosto visível da morte – ela ali ronda em toda esta obra de fim de juventude, mas com o peso de uma assombração – terá permitdo a Kasdan ressalvar ainda mais esta fina ligação entre a personagem morta e essoutra personagem morta em vida: Nick, com o dor no rosto – Hurt – encarnada pelo olhar triste e desesperado de William Hurt. Sabemos que a guinada do garanhão que desempenhara em Body Heat (Noites Escaldantes, 1981), também de Kasdan, dois anos antes, para este veterano impotente e depressivo, foi intencional.
Quando víamos Hurt no ecrã as ferramentas da análise, de interpretação, ficavam aquém. Deixávamo-nos ir, impotentes, pelo furor da sua arte, sem trejeitos nem porquês.
Mas a ligação é mais fina. Além de podermos pensar que Nick/Hurt é uma espécie de presença de Alex no meio dos amigos que o choram (ou, quanto muito, um próximo Alex in line para a perdição), creio que faz sentido que todo o seu desencanto seja, de alguma forma, uma auto-crítica colocada nas entranhas do filme, dirigida ao universo das personagens deste. É Nick/Hurt que irá congelar o humor de Michael (Jeff Goldblum), as primeiras intenções de maternidade de Meg (Mary Kay Place), a ajuda profissional de Harold (Kevin Kline) ou a sinceridade dos sentimentos de todos por Alex. Ou seja, a personagem de Nick/Hurt é aquela que nos faz lembrar de um certo cinismo nos momentos da morte dos amigos, forjando uma proximidade, um tempo escalonado para a dor a seguir à mediania do resto da vida.
O filme de Kasdan tem a marca dos filmes reflexivos para jovem adulto. A banda sonora de êxitos – Beach Boys, Rolling Stones, Marvin Gaye, The Band, Creedence Clearwater Revival e outros – atafulhada de montage sequences, não apenas quer captar a faixa etária dos espectadores que coincidem com a das suas personagens, como é ela própria uma manifestação cinematográfica dessa forma “leve”, “ritmada”, de sentir o peso da morte. Um luto entre amigos. Um funeral como day off. Mas depois esbarramos contra o riso baixo de William Hurt, a sua incapacidade de gritar, a dor que não conhece saída. E aí o filme sai um pouquinho dos eixos de uma nova hollywood codificada.
Há um momento muito relevador deste choque. Numa das cenas, ao final da noite, Sam/Berenger vai à sala e encontra Nick/Hurt a ver televisão. Pergunta-lhe o que está a ver, ao que este responde: “não sei bem”. “Fala do quê?”. “Não sei…”. E continua: “Quem é este?” Nick responde-lhe que acha que o homem do chapéu fez algo errado. E Sam pergunta: “O quê?. “És tão analítico…”, desabafa Nick. E remata: “Sometimes you have to let art flow over you…”. É isto um pouco o impacto desta personagem, deste corpo de actor traumatizado mas livre de julgamento, em The Big Chill. O luto e a vida implicam também esse largar o controlo.
Volto às coincidências, paranóias e duplos lutos. O filme de Kasdan é esta forma de despedida de um actor que talvez tenha deixado a sua marca pela ausência de grandiloquência. Quando víamos Hurt no ecrã as ferramentas da análise, de interpretação, ficavam aquém. Deixávamo-nos ir, impotentes, pelo furor lento da sua arte, sem trejeitos nem porquês. É esse desprendimento que podemos aprender agora na hora de escrever, com certeza e leveza, o nome de William Hurt nas páginas douradas da história do cinema.