“Perhaps home is not a place but simply an irrevocable condition.”
James Baldwin, em Giovanni’s Room
Há tantos filmes que incham e incham no seu desenvolvimento. Normalmente são aqueles que encontram numa certa sensibilidade estilística a veia discursiva visual que lhes permite tocar naquilo que só se fez sentir interiormente. Assim rapidamente lembro-me de Les Amours Imaginaires (Amores Imaginários, 2010), de Xavier Dolan, ou If Beale Street Could Talk (Se Esta Rua Falasse, 2018), de Barry Jenkins. São obras impressionistas, cruas, que se mostram a ser pintadas. Se tivessem pautas musicais a ilustrar as suas variações de intensidade, haveria sforzando (sfz) no início das sequências, ou os símbolos para crescendo ou diminuendo como controladores de ritmo a meio das páginas. Mas ao contrário destes, The Last Black Man in San Francisco (2019), primeira longa-metragem do talento emergente que é Joe Talbot, já começa inchado. Nada no seu desenvolvimento o leva lá. A sequência de abertura nos pés do skate de Jimmie Fails até Fillmore, o distrito tido como o “Harlem do Oeste” onde Jimmie cresceu, em São Francisco, na Califórnia, só o confirma. Tudo ali quer arrebatar. Surge logo de forma concentrada, com o intuito de não só nos chamar à atenção, mas também de nos deixar logo no que será o seu destino, quando ainda nem sabemos onde estamos. Talbot quer pressionar. Não fala só no suor do homem negro que a madeira das casas daquela cidade absorveu. Mostra-o, como quem nos avisa que a nossa presença dentro do filme será importante.

Não é então descabido colocar The Last Black Man in San Francisco no reino dos contos de fadas. Quando me refiro ao inchaço do filme, em nenhum momento o faço com conotação pejorativa. Aqui o inchaço não é o resultado da dificuldade em digerir, mas precisamente o oposto: algo que necessita de ser devorado com calma, mas de uma só vez. Dentro dele, encontra-se a história de família de Jimmie Fails, o criador, argumentista, actor e protagonista, e de muitos outros seus amigos. Mas num filme que desafia a sua categorização e parte daí para ser criado, é difícil mencionar uma premissa uni-direccional. Na sua essência está um reimaginar de um filme sobre dois amigos, Jimmie (Jimmie Fails) e Montgomery (Jonathan Majors), que vivem na casa do avô do último em Hunters Point, dentro de uma São Francisco gentrificada, que passou as últimas duas décadas a empurrar a comunidade negra para fora de si mesma.
Mas Talbot e Fails não usam o filme directamente como figura-símbolo para a limpeza étnica, em combate com a mentira que é a “renovação urbana” no que toca ao processo danificador que é a gentrificação, particularmente racial e classista, nas grandes cidades. É bem mais do que isso. É um filme-ambição, porque parte da auto-ficção, e deita-se por cima do que é uma carta de amor e, por isso ódio, à cidade, mas que se encontra mais precisamente algures entre o filme experimental e o filme artístico, para nos falar de um segredo que se espalhou pela identidade de Jimmie como se de um vírus se tratasse. Este é o seu passado, a sua memória de uma comunidade, da família, mas também sobre o homem negro na América. Tudo aquilo que era seu, que estava na sua posse, que este criou, lhe foi retirado, uma e outra vez, de formas diferentes.
(…) o que permanece tão fascinante no filme continua a ser o facto do seu sentido de escala e transferência serem tão cerebrais como imaginamos sempre que será experienciar a vida dentro das pessoas ternas com segunda visão, aqueles que sentem o mundo noutra frequência, e que rejeitam responder à violência à qual são sujeitos com mais violência.
Tal como nos chega, pelas fendas da narrativa e em pedaços de diálogos, olhares e adicionais respostas de membros da família Fails, o avô de Jimmie, conhecido como o Primeiro Homem em São Francisco, chegado em 1946 após a Segunda Guerra Mundial, construiu a adorada casa victoriana, com o chapéu de bruxa e os olhos de coruja, num terreno baldio comprado nessa mesma altura. Segundo a memória da história da família, a casa foi perdida entretanto, mas os detalhes não são fáceis de precisar. Jimmie não quer acreditar no que lhe é dito, seja vindo da boca de um guia turístico ou do próprio amigo Mont. No entanto, reza a história do lugar que a casa existe naquele bairro desde o início do séc. XIX quando eram os japoneses-americanos que lá habitavam. Devido ao encarceramento destes durante a guerra aquando da ordem executiva assinada pelo presidente Franklin Roosevelt, esta e muitas outras casas ficaram disponíveis para compra. Ou seja, em nenhum momento poderia o avô de Jimmie construir uma casa ali, naquele mesmo lugar, num terreno baldio, porque este não existia. A escritura da casa assim o prova. A casa passou pela família, sim, mas foi perdida para outros na década de 1990, quando os pais de Jimmie, infligidos por vícios vários, não a conseguiram manter. Jimmie acabou numa casa de apoio com outras crianças.


Quando esta narrativa é completada, Talbot e Fails voltam ao início. Uma mentira assombra o filme. Mas afinal não é só para a sua descoberta que fomos convidados. Dentro do seu estado constante de fluxo, tudo a cidade dá e tudo a cidade tira. A verdadeira questão da pertença, que vive agarrada aos ramos identitários de quem somos e de onde originamos, é gelatinosa devido ao continuum de deslocamento de comunidades provocado pela disparidade económica dos tempos. Jimmie vê os elementos da casa enquanto membros do seu corpo. Das cores dos corrimões aos acabamentos mais ornamentados, baseados no estilo gótico e pitoresco da arquitectura inglesa da década de 1830, a casa é o objecto representativo de lar, um espaço emocional ao qual se pode sempre voltar. A distância física de Jimmie para com ela espelha o paraíso perdido tanto do americano na América, como do homem num mundo pós-capitalista, e pressiona uma meta a alcançar, dando movimento às suas rotinas populadas por personagens extravagantes, forçados a viver nas margens da sociedade. Ou seja, Jimmie acredita que se conseguir a casa de volta, consegue obter todas as peças para a sua criação.
E talvez seja por isso que Jimmie e Mont passem o tempo à espera de autocarros que os levam de e para Fillmore. Pouco sabemos da vida interior de ambos. Mont trabalha no mercado de peixe, Jimmie num lar de idosos. Mont passa o tempo a desenhar e encontra a sua voz no palco trans-real do teatro. Jimmie vê a cidade a partir do seu skate, de forma ziguezagueante, nos altos e baixos de São Francisco, literais e figurativos, que ainda agora é reconhecida pela sua cultura beat: a procura espiritual, o não-conformismo, a criatividade espontânea. À noite, vêem televisão e traduzem os programas e filmes para o avô de Mont, que é invisual, e sonham com olhos abertos no pequeno quarto afunilado onde ambos dormem. A cartografia dos seus dias leva-os sempre ao mesmo bairro e à mesma casa, coberto por vitrais e escamas, onde uma estante é uma porta secreta e um órgão acorda até os espíritos mais adormecidos.
Falo aqui de humanidade e do direito à permanência nela. E o filme pendura o restante tempo que tem ao seu dispôr nesta impossibilidade de acesso, numa tristeza acumulada, que Talbot e Fails borrifam com maravilhamento. Apesar de tudo. Sempre apesar de tudo.
Mergulhado em tudo isto e encantado por uma direcção de fotografia torrada, que cheira a verão, o que permanece tão fascinante no filme continua a ser o facto do seu sentido de escala e transferência serem tão cerebrais como imaginamos sempre que será experienciar a vida dentro das pessoas ternas com segunda visão, aqueles que sentem o mundo noutra frequência, e que rejeitam responder à violência à qual são sujeitos com mais violência. Do melhoramento da casa, para pesadelo dos donos dela que mais tarde a colocam à venda, ao início da sua ocupação até serem expulsos pelo agente imobiliário, Jimmie e Mont abrem a porta para um mundo onde tudo se influencia entre si, num jogo imparável de causas e efeitos, e onde ninguém consegue começar do início.
Porque não é só a acumulação de lixo tóxico que polui as águas de bairros mais pobres, como Hunters Point, onde a comunidade afro-americana se viu obrigada a deslocar. É a forma como esse lixo desmembra a saúde física e mental dos que ali habitam, e procede a alimentar um abuso de substâncias estupefacientes e uso de armas de fogo, assassinando de vez o sonho Americano, se é que este alguma vez foi uma realidade. O aparecimento de um peixe com quatro olhos no pequeno barco de Mont deveria ser um megafone para um ciclo de violência gladiatório. Mas por mais que The Last Black Man in San Francisco grite a opressão dessa não-vida, a falta de empatia nas cidades pelas histórias daqueles que por lá passaram é sinónimo de um problema mais amplo.

Falo aqui de humanidade e do direito à permanência nela. E o filme pendura o restante tempo que tem ao seu dispôr nesta impossibilidade de acesso, numa tristeza acumulada, que Talbot e Fails borrifam com maravilhamento. Apesar de tudo. Sempre apesar de tudo. É um filme sobre humanos-poetas, que nos fazem olhar para a mitologia do ser. “Escreveste algo hoje de manhã?”, pergunta Jimmie a Mont enquanto este pesa peixe para um cliente. “Escrever é reescrever”, responde-lhe ele. É esta sabedoria, ora desajeitada ora excêntrica, que tanto é explosiva como divaga, que ilumina o filme por inteiro. Mont acredita num início, para lá do passado, que é o mesmo que dizer que Mont ainda não perdeu a esperança. Com Jimmie, ele tem uma casa e um lar. Não precisa de mais nada. Tudo o resto são detalhes. Mas nos aros dourados dos óculos de Jimmie e no seu uniforme rosa aloja-se uma melancolia erudita. A renovação da casa em Fillmore, a perda dessa história e desse tempo, interliga-se no final com a despedida trovadora de Jimmie da cidade, que, como este diz a uma certa altura, só pode ser odiada quando amada. Sem malas, a bordo do barco a remos de Mont e com vista para a ponte Golden Gate, escondida num nevoeiro cerrado, é tenebrosa a saudade pelo que nunca foi. O jovem adulto decide batalhar o limbo.
The Last Black Man in San Francisco (2019) está agora disponível na plataforma Netflix.