Ao longo destes (quase) dez anos de site, muitas afinidades foram sendo descobertas – e nos surpreendendo – entre alguns walshianos, gostos em comum que se foram traduzindo por estas bandas numa espécie de cânone crítico. Ti West não precisou de ser agora mencionado no À pala de Walsh para se descobrir uma dessas afinidades profundas, uma vez que a admiração pelo realizador de filmes como The House of the Devil (2009) e The Innkeepers (Hóspedes Indesejados, 2011) vem de longe, nomeadamente entre os walshianos Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa; vem, aliás, de uma época distante em que havia blogues de cinema muito lidos e discutidos, e quando os dois críticos walshianos achavam que Ti West era a tradução directa de tudo que era novo, desafiante e verdadeiramente inovador no campo do terror. Um cinema minimal, assente em personagens mundanas, precárias “como nós”, e lições inestimáveis de mise en scène que nos faziam – e fazem – amar o cinema muito para lá das historietas e deste ou daquele “efeito”. Ti West é esse velho amigo, um cineasta gourmet que nos presenteia agora com um bem nutritivo comeback, numa altura em que os ditos walshianos não estavam à espera de uma ressurreição deste calibre, até porque West parecia conformado com o anonimato de realizações televisivas meramente funcionais ou utilitárias. Em relação a X (2022), o nosso entusiasmo, apesar das naturais nuances de opinião, é assinalável, pelo que, caro leitor, faça lá o favor de marcar o título na sua agenda e ir ao encontro desta ode feminista à velhice, deste documentário gore sobre a América e/ou desta lição de cinema capaz, entre outras coisas, de renovar a nossa fé nas capacidades de Ti West e em todo o sub-género do slasher.
Allô, camarada walshiano,
Escrevo-te ainda sob o efeito do mais recente filme de Ti West, isto é, sob o efeito do meu entusiasmo incontido por este verdadeiro tratado de terror psicológico e político.
Queria começar por aí, por essa dimensão psicológica, que, em certa medida, não me surpreendeu inteiramente, já que uma das “marcas de água” do cinema de West é o modo como os seus filmes se constroem de maneira centrífuga, ou seja, de dentro para fora, fazendo com que os cenários interiores das personagens se vão revelando, ou transbordando, para o mundo do drama. Estando no campo do slasher puro e duro, West acrescenta uma dimensão algo nova no seu cinema, comparando este X com filmes como The House of the Devil ou The Innkeepers, títulos que tenho como das mais brilhantes lições de mise en scène e (muito ousada) construção dramática no campo do terror contemporâneo.
O que muda é – por estarmos num slasher, pois claro – o facto de a psicologia ser um território que vai sendo revelado à medida que os corpos se manifestam, movidos por uma verdadeiramente selvagem economia libidinal, que se funde, mistura e quase “move montanhas” aqui. Entre arrepios muito reais e uma brutal (inclemente e “pornográfica”) violência gore – um regime do “excesso do visível” algo novo em West – vamos descobrindo esse subtexto dramático que, também ele, subjaz à “história da violência” que é a América: primeiro, o modo como a velha e a jovem, duas faces da mesma moeda, fogem de uma vida de clausura e abusos – percebemos que West procura dizer algo sobre a condição da mulher (a mulher com sonhos e desejos) num país corroído pelo machismo mais hipócrita; segundo, todo o filme funciona, desde logo ao nível da montagem, como um resíduo que escorre, que vai-e-vem, entre casas, entre histórias, entre versões do mesmo país – perceberemos, no final, que a jovem luta contra uma vida falsamente puritana que a encaminha para um “destino” semelhante à personagem inenarrável da velha, figura que representa, no seu envelhecimento delirante e escabroso, todas as mulheres que viram os seus sonhos serem esmagados por causa de uma ordem moral profundamente fascista. A velhota aparece, assim, transformada num “autómato sexual”, num “bicho” sem salvação possível.
A subtileza e inteligência em termos de escrita dramática acompanha a inventividade formal do filme, sempre habitando esse espaço fluído, intersticial, no fundo, propondo na sua própria pele a tal “mensagem revolucionária”.
Como aconteceu com Texas Chainsaw Massacre (Massacre no Texas, 1974), talvez a referência mais evidente a ser cozinhada, apesar de me parecer importante citar também The Evil Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 2013) (mais até o brutalíssimo e “fenomenológico” de Fede Alvarez do que o original, outrossim brilhante mas diferente, assinado por Sam Raimi) ou The Visit (A Visita, 2015) de M. Night Shyamalan (visão apocalíptica do envelhecimento baseada numa visita à casa da “grannie” e do “grandpa” esquecidos algures numa terreola americana), à medida que entramos em – e somos sequestrados por – X, mais se vai tornando evidente essa dimensão “documental” presente na representação da mulher (não “uma” mulher, mas “a mulher”). Como se, por via deste “embate com a história”, pudéssemos descobrir não “mais uma” final girl, tropo típico da narrativa do slasher, mas a última das final girls. Senti o final como um verdadeiro grito do Ipiranga, acto político sem a mínima ironia: aquela fuga, depois de todo esse “filme de terror porno” por que passámos – experiência de excessos repleta ou minada por finas subtilezas dramáticas –, tem a força de uma revolução, engendrando toda uma nova categoria de mulher: determinada, destemida, quer dizer, “ao volante”.
O grito estético e político mais retumbante que “ouvi” a fechar uma obra parecida com esta? Bem, nesse particular, ocorrem-me os minutos finais de Death Proof (À Prova de Morte, 2007) de Quentin Tarantino, não somente o maior slasher do século XXI, como também um dos grandes filmes do cinema americano do novo milénio. Tarantino estava só, neste campo do terror, até chegar Ti West e marcar o território do grande cinema de terror (político, comme il faut) com este X, qual alegoria magistral sobre uma sociedade mais ou menos secretamente obcecada com a vaidade, a violência, o sexo, mas, apesar disso ou por causa disso, caracterizada por um medo entranhado pela(s) liberdade(s) – veja-se o episódio delicioso em que a personagem de Jenna Ortega (celebridade do canal Disney aqui sujeita a outro tipo de sevícias) reclama o direito a não ser só “a beata” do grupo; a ser o que as outras são, também, no que é o conflito na história que, no fundo, lança de maneira irreversível o mais absoluto caos no tecido dramático do filme (entre a comédia de equívocos e a fórmula “o terror e uma cabana…”).
A subtileza e inteligência em termos de escrita dramática acompanha a inventividade formal do filme, sempre habitando esse espaço fluído, intersticial, no fundo, propondo na sua própria pele a tal “mensagem revolucionária”, fazendo com que os estereótipos sejam finalmente vencidos pelas personagens, tal como “o género slasher” seja elevado de novo – depois de Hooper e, importa referir também, Wes Craven – à condição de reflexo medúsico de toda uma nação. X é, para mim, tão significativo quanto isto.
Com este entusiasmo transbordante, te abraço, ansioso por uma resposta, até porque te sei um genuíno apreciador do Ti West. Ah, que saudades tinha eu do seu cinema, de novo em plena forma.
Vai com Deus e não te esqueças de beber líquidos,
Luís Mendonça
Olé Luís,
Desculpa o atraso na resposta. Conto não ter esmorecido o teu entusiasmo com esta longa espera. Devo começar por confessar que, embora me tenha impressionado bastante (e divertido também), não fiquei completamente rendido ao filme como tu. Mas antes de tentar perceber as razões dessa reação, queria contar-te como foi a experiência pós-filme. À semelhança do que te aconteceu, o filme insuflou em mim uma qualquer vontade de saber mais sobre ele, de o compreender melhor (aliás, senti, logo depois da sessão, que o gostava de ver de novo – já que a sua construção é muito inteligente e intrincada). Cheguei a casa e, ao contrário de ti que te lançaste logo à escrita, pus-me a ler várias entrevistas que o Ti West deu nas últimas semanas, a propósito desta estreia (algo que nunca tinha feito). Embora me tenha parecido que o West não é o melhor dos entrevistados (e também que lhe falta um bom entrevistador…), percebi o panorama da produção deste X e algumas das suas opções narrativas e formais.
Primeiro, tomei consciência da sua ausência, que se fazia sentir numa certa modorra que tomou o cinema de terror dos últimos tempos (fora o regresso em forma de James Wan ao género, o ano passado). Nos últimos tempos, o Ti West deixou o grande ecrã e andou pelas séries dos ecrãs pequenos. Depois de um conjunto de pequeníssimos filmes verdadeiramente independentes (que aqui louvámos como alguns dos mais seguros e delicados objetos artesanais do terror contemporâneo – filmes capazes de, sem recursos quase nenhuns, criar pequenos engenhos de medo e tensão que trabalhavam no puro prazer do seu funcionamento: narrativamente era pouco importante se o terror tinha algum propósito), o realizador cansou-se de lutar para conseguir financiar os seus projetos de “autor” e dedicou-se ao “funcionalismo” televisivo, cumprindo, como tarefeiro, argumentos e ditames que lhe eram alheios. Aparentemente, fartou-se de trabalhar (e, imagino, de ganhar dinheiro, o que, como sabemos, foi o método de Orson Welles para financiar os seus projetos pessoais).
Nessas entrevistas, apercebi-me de uma dado que não conhecia e que curto-circuitou a minha experiência do filme (reforçando, ainda mais, a minha vontade de o rever): as duas personagens femininas que protagonizam o filme (Maxine, a jovem de sardas, e Pearl, a idosa solitária) são interpretadas pela mesma atriz, Mia Goth.
Fiquei estarrecido.
Em momento algum isso é materializado no filme mas, ainda assim, perpassa por todo ele a sensação de que há um vínculo profundo entre as duas personagens. Mais, essa opção de casting reforça, subliminarmente, a ideia de reflexo entre as duas (agora que penso nisso, não é por acaso que numa das últimas cenas do filme as duas se encontram, lado a lado, refletidas num espelho) e, mais, de que uma é a projeção futura da outra. Acho que é daí que poderá vir a tua leitura “universalista”, de que se trata de um filme sobre “a mulher”, porque estas duas personagens, divididas mas unidas, representam o papão da velhice que assombra todas “as mulheres”, para não dizer, todos aqueles que se enformam segundo imposições estéticas dos media e da cosmética.
Mas, como dizia, senti-lhe (sentimos-lhe) a falta. Ver X foi um regresso forçado a um conjunto de filmes que havia deixado arquivados (bem lá no fundo da memória). Voltar ao cinema foi, para West, uma vontade de regressar a uma linhagem que já havia estabelecido, onde The House of the Devil é, claramente, a matriz para esta nova empreitada (o primeiro, em versão minimal, este segundo, em versão já meio maneirista, pontuada pela comédia de terror e pelo barroco do gore). Sinto que só mais tarde (isto é, daqui a vários anos), quando revir os seus filmes de forma retrospetiva e sistemática conseguirei apreciar, por completo, este X. De qualquer modo, há a variação sobre o slasher, que era algo que o realizador ainda não havia abordado: já tinha feito o thriller de terror – Trigger Man (2007) –, o filme de fantasmas – The Innkeepers –, o found footage – The Sacrament (2013) – e o western violento – In a Valley of Violence (2016). Daí que a relação que propões ao filme de Hooper, que é a pedra de toque desse “movimento”, possa ser, afinal, lida como um desejo de West de regressar aos elementos basilares do sub-género (só que agora em versão “meta”, isto é, por um lado, humorística, por outro, analítica).
Pois bem, X, parece-me, é uma alegoria das provações do show business, em particular das provações pelas quais uma jovem atriz tem que passar para ter sucesso.
O que West recupera dos fundamentos do Texas Chainsaw Massacre é a divisão. A do filme em duas metades [que, narrativamente, em X, é explicitada através dos diálogos a partir da partição de Psycho (Psico, 1960) – sendo que depois West nos frustra, ao encenar pouco depois uma cena de chuveiro que tem propósitos meramente higiénicos; aliás, as ligações a Psycho são muitas, a começar pela casa no topo da colina e da figura que espreita pelas janelas, até à ideia de divisão de personalidade – mas já lá irei], a do universo rural interior dos Estados Unidos como desterro longínquo do qual qualquer urbanita não tem escapatória possível (algo que traduz, naturalmente, uma notação política sobre a própria divisão bipolar dos EUA, que opõem costas e interior como “esquerda” e “direita”), e, mais importante, a dimensão dramática (talvez até trágica) dos vilões. É aí que se encontra a outra divisão. No Texas, aquela família demente é extremamente necessitada (materialmente, têm falta de recursos, de dinheiro, de comida, etc.) e os jovens são alegres, despreocupados, e têm tudo (até um futuro soalheiro pela frente). A pulsão para os destruir, para os despedaçar, para os comer é, no fundo, uma vontade de ter o que eles têm e, simultaneamente, impedi-los – à força de uma motosserra – de terem o que têm sem esforço.
Pois bem, X, parece-me, é uma alegoria das provações do show business, em particular das provações pelas quais uma jovem atriz tem que passar para ter sucesso. Maxine quer ser uma fucking star e nada a parará. Se bem te lembras, logo no início, a grupeta jovem sai de uma casa de strip, onde todos trabalham, que é um enorme telão paradisíaco onde se lê qualquer coisa como: “todos os sonhos são possíveis” (telão esse que é – literalmente – a porta de saída da espelunca). Fecha-se uma porta, abre-se uma janela: a “janela de entrada” na indústria do cinema é a pornografia. Daí será um salto para Hollywood, feita promessa publicitária. E é aí que o filme dá a volta e o gancho narrativo do porno se solta, para dar espaço ao outro lado, à face obscura desse sonho estrelado nos montes de Beverly Hills.
Aquela casa na colina, aquela velha demente, tudo aquilo me remete para uma versão de terror hardcore de Sunset Boulevard (O Crepúsculo dos Deuses, 1950). Daí que a ideia de espelho seja tão violenta e a escolha da mesma atriz tão significativa. Mais do que um retrato das mulher subjugadas à vida familiar em ambiente rural (que foi a tua leitura), o filme é o retrato terrível de um futuro inadiável. Embora Maxine mate Pearl, porque ela quer o estrelato a qualquer custo, pise quem pisar, não adianta fugir, tresloucada, pela estrada fora, a cheirar coca, com os cabelos ao vento e as sardas iluminadas à luz do amanhecer… Não há escapatória à velhice, a não ser a morte.
E, por falar em velhice e morte, tenho coisas para te dizer sobre gerontofilia. Mas quero ler o que tens a dizer sobre esta minha perspectiva um tanto ou quanto discordante da tua.
Um forte abraço,
Ricardo Vieira Lisboa
Olá, olá,
Que bela resposta, meu camarada! A surpresa dessa descoberta das duas actrizes numa é um grandioso twist pós-filme – e foi também para mim com surpresa e êxtase que dei conta do calibre deste desdobramento da actriz Mia Goth [só abona a favor desta actriz, uma presença que guardara, com agrado, do pouco memorável ou agradável Suspiria (2018) de Guadagnino]. Esse facto vinca mais ainda o que une as duas mulheres entre si. E se tu, em certo sentido, te encaminhas para ver X como um Sunset Boulevard do Zeitgest, de uma Hollywood sob o espectro de Charles Manson e em vias de se tornar um antro da prostituição mundial (faustina), não tanto dos corpos, mas de fórmulas narrativas infinitamente recicláveis e de “efeitos especiais” artificiosos e artificiais, que intoxicam e potenciam um certo sense of wonder nos espectadores, eu tendo a olhar para o exercício de Ti West como uma verdadeira arena de experimentação ao nível da montagem: as duas mulheres são uma mulher, as duas histórias são a mesma história, as duas “cabanas” são a mesma “cabana”, as duas Américas são a mesma América… Parece-me muitíssimo engenhosa a forma como West transforma a sua narrativa, e a projecta na história sem a excluir de uma reflexão sobre o lugar e o tempo fílmicos, capturando, com resultados impressionantes (altamente impressionáveis), aquele “ângulo morto” que procuramos evitar (pode ser a velhice, sim, que “nos toca a todos”, no que é a dimensão mais “impactante” e “arrepiante”, porque universal, desta história, mas também pode ser, de facto, um país cindido, à procura de uma unidade mítica mais ou menos impossível).
Acho que X é um filme mais ribombante, um West ao cubo, que, como se diz no futebol, “põe a carne toda no assador”.
O modo como West alterna as histórias, fazendo com que uma transborde para a outra, com que as personagens sejam puxadas – por que força se não uma que é social e histórica? – para uma situação de “breaking and entering”, se calhar não absolutamente desejada por ninguém, pelo menos em termos racionais, poderá ser uma fonte de inesgotável análise e, a meu ver, é já objecto de um fascínio que não se perderá em revisionamentos no curto prazo – X pede para ser visto e depois redescoberto após uma lenta e ponderada reflexão sobre o complexo enredo de imagens e situações-limite que o engendra.
Olhando para o lugar de X na filmografia de West, concordo contigo: é o mais exuberante dos seus filmes; como digo, parece-me ser o seu filme mais tarantinesco – In a Valley of Violence foi a tentativa de produzir um western dentro de uma fórmula minimal e contida de cinema, próxima de The House of the Devil mas com umas explosões tarantinescas de violência que não o salvaram da sensação de termos assistido a um filme derivativo, consumido/anulado, enfim, pela sua “baixa economia”. Recordo que Trigger Man, The House of the Devil e, o mais “mumblecore” e humorístico (sublinhas bem como este X também tem a sua boa dose de humor, a meu ver, algures entre Tarantino e Preston Sturges), The Innkeepers, viviam de poucos e parcos elementos, personagens empáticas presas num sítio qualquer, ameaçadas por algo pouco visível que se escondia por detrás das evidências, do imediatamente visível ou reconhecível. Acho que X é um filme mais ribombante, um West ao cubo, que, como se diz no futebol, “põe a carne toda no assador”.
Mas é curioso: os elementos que ligam e tornam interessante e desafiante esta história continuam a ser da ordem do puro cinema: um gesto de montagem (a maneira como as imagens de “um lado” se vão intrometendo, quase literalmente no tecido das imagens, nas “do outro lado”, ao estilo de um “pisca-pisca” cinético) ou uma posição de câmara [o god’s eye view é elevado a instituição aqui, em cenas como a da aproximação do crocodilo… ou a cena de sexo geronte, com a personagem de Maxine debaixo da cama, o que tem também qualquer coisa de um Panic Room (Sala de Pânico, 2002)]. Enfim, o show principal são os elementos essenciais da linguagem cinematográfica. Continua a ser um filme sobre o espaço off e uma alternância habilidosa entre regimes de “mostração”; uma lição ou uma série de lições assentes na pergunta: como construir um slasher alegórico sobre a América “de ontem como de hoje” assente numa depurada receita de cinema – ideias claras e simples de montagem e a orquestração da mise en scène?
Se o filme é sobre a velhice, também é verdade que toda a sua “construção” é de uma frescura e jovialidade que faltam ao cinema de acção e terror em geral. Estou curioso relativamente a Pearl, a prequela, se percebi bem, desta história, que deverá estar a sair, muito em breve. Pergunto-me se levará mais longe o que já disseste, e te preparas para aprofundar, no que diz respeito a esse fenómeno que aqui tem uma espécie de corpo despudorado, bastante afirmativo, e que podemos descrever com expressões tais como “mamas descaídas” e “quedas de cabelo” [not G.I. Jane (1997), please].
Beijo sem placa,
Luís Mendonça
Bom dia compadre,
Dizendo coisas opostas, acho que nos encaminhamos para o mesmo lugar. Eu sublinho a divisão, tu afirmas a complementaridade, eu louvo o choque entre polos opostos e tu descobres as ligações que seguram o todo do filme, mas ambos percebemos que, independemente dos atilhos que agarram as partes, o que importa, no cinema de West, é a graça – a elegância – com que ele captura, amarra e tortura a sua visão do mundo. E, mais uma vez, cada um de nós aponta em direções diferentes (juntos seremos uma criatura estrábica, camaleónica, que tateia, lentamente, o filme): tu reparas na montagem, como culminar dessa ideia de vai-e-vem (o que subscrevo totalmente, é o elemento formal mais vistoso e disruptivo do filme, e provoca uma série de associações muito intrigantes – da ordem do comentário, da metáfora, do elemento onírico, do simbólico, do rememorativo…); eu prefiro, agora, nesta resposta, destacar as preocupações de West com o formato.
Se bem te lembras (com o passar das semanas as imagens já se começam a esfumar – e que bom foi recordar-me, pelas tuas palavras, desse extraordinário plano god’s eye do crocodilo na lagoa: perfeito terror minimal… duracional), o filme começa com um plano muito discreto: uma casa na pradaria, o som de umas sirenes que se aproxima, uns polícias que investigam as pistas (e as postas) deixadas no chão. Só que esse primeiro plano surge em formato 4:3 (1.37), nesse quasi-quadrado televisivo. É um plano pouco entusiasmante para abrir um filme de terror “para adolescentes”: paisagístico, lento, aborrecido. E eis que a câmara começa a avançar, muito calmamente, e se percebe que o formato 4:3 resultava, afinal, de um sobre-enquadramento produzido pela porta do estábulo da quinta, dentro do qual estava a câmara.
A câmara avança, em direção à porta, e o quadro alarga-se, e só quando saímos do estábulo percebemos que se trata, no fim de contas, de um scope (1.90). Esse pequeníssimo e muito subtil jogo de quadros, que abre o filme, é bastante revelador das “oposições” que West coloca em campo, mais ou menos divisivas, mais ou menos agregadoras. São elas, claro, o cinema e a televisão (um travelling em frente de “libertação” do seu trabalho nas séries?); o formato caseiro e o formato comunitário (o filme faz-se contra os que estão em casa, sossegados, e os doidivanas que partem mundo fora para o desconhecido); o tele-evangelismo e o porno de autor (que é como quem diz, entre o conservadorismo e o liberalismo); o preto-e-branco e as cores híper-contrastadas, etc.
Apesar da chacina que “os velhos” de X põem em marcha, chega a ser tocante a questão da impotência dele e do desejo não satisfeito dela.
Só que – e aí é que a “crocodilo torce a presa” – West é um virtuoso e delicia-se com a utilização do formato largo associado ao recurso de lentes de grandíssimo-angular que deformam o espaço e as personagens. Esse recurso, que poderia ser puramente visual (e como tal meramente estético), tem um propósito conciliador (como a “tua” montagem “pisca-pisca”): num plano desses, cabe tudo. Numa primeira instância, cabem todas as personagens, naquela carrinha; mais tarde, cabe o ecrã televisivo dentro do formato largo, quase sempre num belíssimo jogo de profundidades de campo, que religa o próximo do televisor com o distante, que se passa por detrás dele ou ao seu redor. Esse olho de peixe (olho de Deus, olho de crocodilo) reúne tudo e distende o espaço numa revisitação amplificada do real [o ano passado Soderbergh havia feito algo parecido no excelente No Sudden Move (2021)]. Acho que é aí que se revela a natureza profunda deste filme: uma espécie de câmara de ressonância do presente, cheia de ecos dos idos anos 70, reverberando em uníssono todas estas melodias atonais e contraditórias que formam os states (e que nos formam a todos).
Mas talvez a mais violenta dessas contradições, e que é a génese de X, seja fazer de um teen slasher (um produto aparentemente vocacionado para adolescentes imberbes) uma ode ao sexo na terceira idade. Esse é, a meu ver, a grande façanha deste filme. Primeiro, porque é aí, no sexo entre idosos, que se encontra um dos últimos tabus que falta derrubar (matar, torturar, amputar, violar, já nada disso diz nada ao jovem espetador que cresceu a ver torture porn e snuff films – recordo-me, perfeitamente, de ver, quando tinha 13 anos, o vídeo do enforcamento do Saddam Hussein no Youtube). E esse choque – essa consciência que o “verdadeiro terror” é ver os avós, ou até aos pais, a foder – é bastante revelador da dessensibilização mediática que sofremos, e da nossa incapacidade de encontrar a beleza noutros corpos que não aqueles cosmeticamente retocados (ou naturalmente jovens).
O que impressiona, em X, é o modo como esse casal aterrador (os vilões, de facto, do filme) se vai revelando – aos poucos – em toda a sua fragilidade e ternura. Aliás, é de salientar o modo como estas figuras aparentemente frágeis têm dominado os papéis dos “vilões” em alguns dos melhores filmes de terror dos últimos anos, penso, claro, no cego de Don’t Breathe (Nem Respires, 2016), do já referido Fede Alvarez, ou no jogo de inversões e expectativas elaborado por David Fincher em Gone Girl (Em Parte Incerta, 2014). Apesar da chacina que “os velhos” de X põem em marcha, chega a ser tocante a questão da impotência dele e do desejo não satisfeito dela. West interessa-se, genuinamente, pelo carinho que os liga e quer filmar esse afeto de forma explícita. Sente-se a tusa geriátrica dele e, mais importante, dela. O terror está, afinal, na repulsa dos jovens (e da sociedade) perante o desejo sexual de um velho. E o que move a violência é, exatamente, a rejeição e o desejo reprimido – a esse respeito a sequência da “conchinha” sanguínea entre a Pearl e a Maxine é uma obra-prima (e retrata – de modo bem literal – a convivência dos opostos, de novo num plano fixo, longo e lentíssimo).
Ou, como diz o xerife, na última linha de diálogo do filme, referindo-se ao filme-dentro-do-filme, “That Must’ve Been One Goddamn Fucked Up Horror Film”. Fucked up indeed.
Diz coisas,
Ricardo Vieira Lisboa
Caro Ricardo,
Pedes-me para dizer coisas, quando pareces ter esgotado o território desta conversa, numa súmula e desenvolvimento perfeitos – os meus agradecimentos por isso, por, digamos assim, me aproximares mais ainda da “pele do filme”. É por aí que ele também me toca, mas não enfatizei tanto e tão bem quanto tu: o confronto com a imagem medúsica da nossa velhice.
O terror – ou porventura outro género qualquer – ainda não soube encarar esse “fantasma”, tão ou demasiado real, que é a chamada “terceira idade” e, pior ainda, “o desejo na terceira idade”. Recentemente, Shyamalan, com The Visit mas também com o falhado Old (Presos no Tempo, 2021), procurou tocar no assunto, tentando transformar cada ruga numa fonte de drama e horror. Aqui, há um verdadeiro “estremecimento”, muito humano e, por causa disso, gerador de um “novo erotismo”, nas cenas em que Pearl assedia o marido ou o seu alter ego jovem, a actriz aspirante a fuckin’ star, buscando uma second chance depois de ter sido puxada para o sinistro culto religioso [esta realidade das seitas obceca/assombra Ti West desde sensivelmente The House of the Devil, culminando no found footage The Sacrament, uma espécie de Elmer Gentry (O Falso Profeta, 1960) do século XXI, pré-Midsommar (Midsommar – O Ritual, 2019) ou… entre a América do Tea Party e a América de Trump]. Estou curioso para ver como – ou “se” – esta dimensão ainda é levada a jogo na prequela, uma vez que, supostamente, ficaremos a conhecer a backstory de Pearl.
Insuflar de humanidade personagens que são usadas num xadrez tão sangrento, violento e crítico como este não é tarefa fácil, naturalmente.
O lado enternecedor e humano, que encontramos nas personagens de Ti West, não é coisa pouca. Talvez seja isto que o afasta de um Tarantino – realizador que reduz quase tudo, incluindo as personagens, aos seus exercícios de estilo, mais ou menos políticos – e o aproxima da tradição do mumblecore. Soube deste regresso do Ti West num almoço com Joe Swanberg, aquando da sua passagem por Portugal. Foi aí que me confidenciou que West estava pronto para o aguardado comeback ou, então, e finalmente, para confirmar o seu valor, enquanto a grande promessa do cinema de terror, depois dos excelentes The House of the Devil e The Innkeepers. A empatia pelas personagens – jovens adultos mais ou menos à deriva, representantes de uma certa geração deslocada, “à rasca”, com a qual nos podemos identificar – é o ingrediente mágico nessas obras, a meu ver. Aqui, há um lado de mosaico, típico do slasher movie, mas a verdade é que a atenção dispensada ao “mundo interior” de quase todas as personagens é notável – a relação entre o realizador, interpretado por Owen Campbell, e a sua namorada, encarnada por Jenna Ortega, é mostrada de maneira pontual, mas o suficiente para percebermos que as relações que West leva a jogo são mais complexas do que no habitual teen movie de terror. Insuflar de humanidade personagens que são usadas num xadrez tão sangrento, violento e crítico como este não é tarefa fácil, naturalmente. Talvez tudo isto resulte dos ensinamentos colhidos no drama indie (adulto e sussurrante) que tem como figura de proa o camarada Joe Swanberg (cujos filmes de terror, de facto e hélas!, precisam, como do pão para a boca, deste magistral domínio sobre a linguagem cinematográfica).
Enfim, toma lá uma pergunta final, daquelas bem complicadas: como perspectivas o futuro deste realizador, deste cinema?
Abraço,
Luís Mendonça
Luís,
Não é preciso recordar-te (porque te sei pio e casto) que o futuro a Deus pertence.
West desconfia de si, desconfia dos filmes e talvez desconfie do cinema.
Mas a contar com o próprio filme de West, o futuro do realizador não augura nada de bom… Achas que é por acaso que o primeiro morto do filme é, nem mais nem menos, a personagem do realizador? Esse que se armava todo em “desconstruidão”, mas quando a “imoralidade” lhe bateu à porta, quis zarpar para outra bandas e acabou estendido no chão, desfeito à facada, com o seu sangue derramado por toda a parte e pintando tudo de vermelho (há qualquer coisa de Argento ou de Fulci nessa primeira morte…). Acho que West desconfia dos realizadores. Desconfia de si, desconfia dos filmes e talvez desconfie do cinema. O que é um excelente ponto de partida: dá-lhe mais espaço para confiar nas personagens e nos espetadores.
Creio que é daí que partirá esse futuro Pearl, desse enamoramento pela personagem que construiu; uma vontade de a conhecer melhor, de passar mais tempo com ela, de se tornar cúmplice dela, e das suas diabruras (ele, e nós, que participamos de tudo, sentados no cadeirão do cinema).
Aguardemos.
Ricardo Vieira Lisboa