Love… Love is a most complex emotion. Human beings unpredictable. No logic to emotions. Without logic, there is no rational thought. Without rational thought there can be much romance, but much suffering.
Na sua autobiografia, Apropos of Nothing, Woody Allen relata-nos os acontecimentos que estiveram na origem da ideia para Alice (1990). Acometido pelo aparecimento de pequenos quistos nas pálpebras, algo que estava a tornar a sua vida um inferno, e depois de diversas tentativas de tratamento não muito bem-sucedidas, o realizador decidiu aceitar a sugestão de uma amiga e consultar um médico de Chinatown. Com a vantagem de não ter que se deslocar até ao consultório, o médico viria até ele. O médico lá aparece na sua penthouse da 5ª Avenida e, após uma breve observação, afirma que a glândula está bloqueada. Saca então de uma caixinha de prata de onde tira um bigode de gatinho que se prontifica a inserir no canal lacrimal. Conclusão: não, a “medicina criativa” não surtiu efeito. O único resultado foi uma repreensão do médico legítimo, por ter deixado alguém enfiar um bigode de gato no canal lacrimal.
Mas isto é a vida real. A imaginação levava-nos já por outros caminhos milagrosos. Esses são os caminhos que Alice (Mia Farrow) irá percorrer. Alice vive uma vida de senhora bem casada da alta sociedade de Manhattan, entre compras na 5ª Avenida, idas ao salão de beleza, massagens e organização da agenda social do casal. A sua única preocupação parece ser uma dor de costas persistente e irritante que teima em não desaparecer.
Mas o olhar de Alice perde-se por vezes, há algo mais a ocupar a sua cabeça. Esse “algo” é um caso amoroso ou, mais concretamente, aquilo que Alice acredita ser um “caso”. Uma troca de olhares com um outro pai na escola dos filhos, uma brevíssima troca de palavras. Na cabeça infantil de Alice, o facto de Joe (Joe Mantegna) elogiar o livro que ela deixou cair, dizendo que Edna St. Vincent Millay é material altamente romântico, quase constitui uma infidelidade.
São vários os elementos que traduzem o lado infantil de Alice. Desde logo aquele encantador chapéu vermelho (um prop descoberto por Santo Loquasto e Woody Allen num balcão do Bloomingdale’s), mas também outras peças do guarda-roupa: a gola de colegial, a bandelete no cabelo, a camisola com motivos pueris. Mas atenção: esta infantilidade deve ser interpretada no melhor dos sentidos, como significando ingenuidade, avidez, um deslumbramento pela ludicidade da vida, uma incapacidade de ser cruel.
À primeira vista, Alice encaixa perfeitamente no mundo da alta sociedade nova-iorquina, uma peça decorativa sempre em vermelho e negro, como se fosse um bibelô oriental. Vemo-la a entrar e sair das lojas da Krizia e do Valentino, vemo-la depois no salão de beleza, o sítio mais bitchy que é possível conceber, onde são partilhados todos os mexericos que circulam pela cidade, todas as informações sobre quem vai para a cama com quem [era assim em The Women (Mulheres, 1939), de George Cukor, é assim no filme de Woody Allen]. Talvez seja esta a infantilidade num sentido mais pejorativo, uma vida sem verdadeiro propósito e alheada daquilo que se passa no mundo real.
Depois de várias recomendações do seu círculo de amigos que apontam para o mesmo nome, Alice decide-se a procurar o Dr. Yang, para tentar resolver a tal dor de costas persistente. A visita ao consultório na Chinatown mais não é do que o cair no buraco de uma outra Alice, a de Alice no País das Maravilhas (para uma indígena da Park Avenue, uma incursão pela Chinatown deve já ser underground q.b.). O Dr. Yang coloca em frente à sua paciente uma espiral em rodopio (que nos transporta também para as riscas do Gato de Cheshire) e sob hipnose deixa-a falar daquilo que a apoquenta, concluindo que os problemas de Alice não estão nas costas, mas antes na cabeça e no coração [o místico intervém aqui à semelhança do que sucedia em The Curse of the Jade Scorpion (A Maldição do Escorpião de Jade, 2001)]. Tudo se resolverá com umas ervas que ela deverá tomar antes de ir buscar os filhos à escola, antes de novo encontro com Joe.
É preciso elogiar o talento de Mia Farrow na construção da versão desinibida de Alice. Tudo não passa de um baixar de voz, de um sorriso controlado, de uma languidez ao dizer “I just love the sax”, como uma criança que conhece um segredo prestes a ser revelado. Ouvimos “sax”, mas pensamos outra coisa. E Joe pensa exactamente o mesmo que nós.
Fazer dramalhões sobre personagens desgraçadas pode ser a via mais rápida para gerar consensos e louvores, mas poucos são os realizadores que, como Woody, conseguem abarcar a confusão de drama e de humor que é a vida.
O romance entre Alice e Joe vai avançando lentamente porque, passado o efeito das ervinhas mágicas do Dr. Yang, Alice volta ao seu estado normal, cheio de inibições e receios. Mas as repetidas visitas ao consultório da Chinatown e as diferentes ervas e poções vão produzindo um outro efeito, cavando um pouco mais naquilo que provoca em Alice uma enorme insatisfação (mais do que infelicidade). Desenovelando a história de The Purple Rose of Cairo (A Rosa Púrpura do Cairo, 1985), diríamos que, enquanto Cecilia queria saltar para a vida de sonho que via no grande ecrã, Alice anseia conseguir penetrar no mundo real, pretende algo mais do que a vida de sonho a que parece condenada. Alice começa então a revisitar o seu passado, as suas escolhas, o exemplo dos seus pais, um antigo grande amor. É o processo de maturação de Alice, a percepção de que aquilo que foi vivido no passado condiciona aquilo que é a sua vida no presente.
Na mais bela sequência do filme, Alice convoca o fantasma de Ed (Alec Baldwin), um pintor, seu antigo namorado e porventura o grande amor da sua vida. Ao contrário de Doug (William Hurt), o marido de Alice, que sente que a salvou, pelo simples motivo de que as suas aspirações profissionais nunca a levariam muito longe, Ed fala dela como alguém com muitos sonhos para realizar, alguém ainda a descobrir as suas potencialidades. É extremamente terna a conversa entre os dois, ambos imersos na luz azul da noite, depois planando sobre a cidade de Nova Iorque, fazendo lembrar os amantes voadores do quadro de Marc Chagall. É uma viagem carregada de melancolia que nos mostra que a ternura é algo que parece estar ausente da vida presente de Alice. A relação com o marido é demasiado utilitária, desprovida de afecto, os filhos são constantemente acompanhados pela nanny, as amigas são impiedosas.
Não é difícil perceber aquilo que a leva a criar uma ligação romântica com Joe. Alice é, justamente, atraída pelo seu estilo de vida mais boémio – o seu métier de músico de jazz, as águas-furtadas debaixo de chuva, a escapada para um restaurante em pleno dia, o vinho que ele escolheu (só porque era o meia caro da lista). E Joe será o companheiro da brincadeira de crianças, os dois tornando-se invisíveis, também eles fantasmas, para espiarem as conversas dos outros (ou, no caso de Joe, ocultamente espreitar Elle Macpherson no gabinete de provas), numa sequência que só poderia ter saído da cabeça de alguém que se sente em casa na screwball comedy, remetendo para o par Cary Grant e Constance Bennett em Topper (O Par Invisível, 1937). Mas a invisibilidade permite também chegar a conclusões de adultos. No caso de Alice, testemunhar a traição do marido. No caso de Joe, chegar à conclusão de que ainda continua apaixonado pela ex-mulher.
Daí ser este um filme que condensa a essência de Woody Allen. Conforme referíamos mais acima, Alice não é muito diferente de Cecilia, apesar de pertencerem a extremos opostos da escala social. Há nelas uma mesma ânsia por algo de recompensador, algo que verdadeiramente preencha as suas vidas, um companheiro que as olhe directamente na alma. Para Cecilia, esse homem existe apenas na ficção. O amor a que ela se entrega e que não a desilude é o cinema. Quanto a Alice, terá na sua mão a derradeira poção do Dr. Yang, uma poção digna dos deuses, que lhe permitirá conquistar definitivamente o homem por quem quer ser amada: o marido Doug ou o amante Joe. E é nesse momento que ela irá descobrir que a escolha será seguir o seu próprio caminho. É essa a generosidade de um realizador que verdadeiramente ama as suas personagens, que lhes dá espaço para crescerem. E, apesar de todo o absurdo da vida, vale a pena continuar, enquanto mantivermos a fé naqueles pequenos momentos redentores [pode ser algo de tão singelo quanto uma escapadela vespertina para ir ver Duck Soup (Os Grandes Aldrabões, 1933) no cinema, como sucedia em Hannah and Her Sisters (Ana e as Suas Irmãs, 1986)].
Fazer dramalhões sobre personagens desgraçadas pode ser a via mais rápida para gerar consensos e louvores, mas poucos são os realizadores que, como Woody, conseguem abarcar a confusão de drama e de humor que é a vida. Lembram-se daquela piada sobre uma família em que eram todos pobres? O pai era pobre, a mãe era pobre, os filhos eram pobres, o mordomo era pobre, o jardineiro era pobre, o motorista era pobre… O comentário das amigas de Alice à sua nova vida não anda longe desta piada, quando afirmam que ela deixou tudo para trás – abandonou o marido, o cozinheiro, o motorista. Parece haver tanto de irreal, tanto de ingénuo, na nova vida de Alice quanto na sua vida anterior. Mas ali a vemos, depois de regressada da Índia, de jeans e casaco verde-tropa, pronta para ser uma nova Madre Teresa de Calcutá. Um final cheio de humor, mas também cheio de esperança. Aquilo que Alice encontra, finalmente, é a sua autonomia. Alice cresceu.