There’s no business like show business like no business I know (…)
There’s no people like show people, they smile when they are low
Irving Berlin
Há cerca de dois anos, entre os dois primeiros COVIDamentos de 2020, comecei a frequentar umas aulas de “Broadway Jazz”, numa academia de dança em Paris. Com um professor vindo de Nova Iorque e tendo por “colegas de turma” várias dançarinas de cabaret e aspirantes a estrelas de comédia musical – todas com pernas mais longas do que as da Cyd Charisse, verdade seja dita –, não era preciso muito para me sentir intimidada no momento de executar a coreografia semanal… Mas, a pouco e pouco, lá fui apanhando o jeito: no isolar do movimento de uma articulação que nem sabia que existia, no balançar de ancas e no girar de ombros simultaneamente sensuais e nonchalants, no mimar do chapéu à la Fred Astaire e, sobretudo, no agitar vigoroso das jazz hands abertas face a um público imaginário, mas aparentemente implacável. Não havia aula em que o nome de Bob Fosse não fosse mencionado, soando, por vezes, com uma espécie de espora que vinha cravar-se num ponto preciso do corpo para nos lembrar da energia a colocar em cada movimento, ou para nos incitar a “dar tudo” mesmo quando se tratava apenas de atravessar o estúdio a caminhar. “Fake it till you make it”, dizia-nos frequentemente o nosso professor que, apesar de já não se ter cruzado pessoalmente com Bob Fosse, bebera dos seus ensinamentos junto de discípulos do coreógrafo e se mantivera fiel ao seu estilo de dança inconfundível.
Contrariamente aos habitués das aulas de “Broadway Jazz”, que conheciam sobretudo o estilo Fosse através dos espectáculos Pippin’ (1972) e Chicago (1975), foi por via do cinema que eu me cruzei pela primeira vez com este coreógrafo, numa época da minha cinefilia adolescente em que devorava todos os filmes que se aproximassem tangencialmente do universo extravagante e fantasiosoda comédia musical hollywoodiana. Dois dos mais marquantes foram Cabaret (Cabaret – Adeus Berlim, 1972) e All That Jazz (All That Jazz – O Espectáculo Vai Começar, 1979), ambos realizados por Bob Fosse, e os únicos na sua carreira a terem recebido um reconhecimento internacional aquando da estreia: oito Óscares (num total de dez nomeações) para o primeiro, incluíndo o de Melhor Realizador, e uma não menos prestigiante Palma de Ouro, no Festival de Cannes, para o segundo, em ex æquo com Kagemusha (Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, 1980) de Akira Kurosawa. No virar da década em que se confirmava o declínio da comédia musical clássica, com filmes como The Rocky Horror Picture Show (Festival Rocky de Terro, 1975) de Jim Sharman, Saturday Night Fever (Febre de Sábado à Noite, 1977) de John Badham e Hair (1979) de Miloš Forman, obras marginais que se tornariam filmes de culto para as gerações seguintes, All that Jazz destacava-se como o “canto do cisne” de um artista que dedicara toda a sua vida aos palcos.
Por vezes comparado ao filme-monumento 8 ½ (1963) de Federico Fellini, All that Jazz é, nada mais, nada menos, do que um auto-retrato de Bob Fosse, premonitório do “cair do pano” sobre a sua vida e obra.
Aos olhos da crítica, Bob Fosse parece ainda hoje não ter realmente conquistado de pleno direito o estatuto de cineasta, sendo muitas vezes visto como um mero coreógrafo de sucesso que se aventurou em Hollywood, com o objetivo de transpor as suas coreografias a um novo medium ou, simplesmente, de alimentar o seu ego. Pensar assim é esquecer que, para além dos vários números de dança que, desde os anos 1950, coreografou para filmes adaptados de espectáculos da Broadway, como Kiss me Kate (Beija-me Catarina, 1953) de George Sidney e Damn Yankees! (Brincadeiras do Diabo, 1958) de Stanley Donen e George Abbott, antes de realizar a sua primeira comédia musical Sweet Charity (Sweet Charity – A Rapariga que Queria Ser Amada, 1969), Bob Fosse desenvolveu um estilo de realização e de montagem que lhe é tão característico quanto a sua linguagem coreográfica.
Importa aqui salientar que a recente (e excelente!) mini-série Fosse/Verdon (2019), com Sam Rockwell e Michelle Williams nos papéis da dupla epónima, veio de certo modo colmatar uma lacuna no reconhecimento das múltiplas facetas da obra de Bob Fosse, em palco e no grande ecrã. Além de exímia na reconstituição das suas coreografias, a série dá ainda um particular e merecido destaque ao contributo da atriz e dançarina Gwen Verdon (com quem foi casado desde 1960 até 1987) para todas as etapas do processo criativo do coreógrafo e realizador. Curiosamente, os filmes menos conhecidos de Bob Fosse são isentos de cenas de dança, mas manifestam uma perfeita coerência com o resto da sua parca, mas intensa, filmografia: trata-se de Lenny (1974), sobre o polémico comediante americano Lenny Bruce, e Star 80 (Star 80 – A Tragédia, 1983), em torno do destino trágico da modelo playmate Dorothy Stratten), dois biopics que expõem os perigos e as perversões do mundo do show business, que o próprio tão bem conheceu, e cujas consequências viveu na pele.
Por vezes comparado ao filme-monumento 8 ½ (1963) de Federico Fellini, All that Jazz é, nada mais, nada menos, do que um auto-retrato de Bob Fosse, premonitório do “cair do pano” sobre a sua vida e obra. Cinco anos após ter sofrido um primeiro ataque cardíaco (durante a montagem de Lenny e os ensaios para o espectáculo Chicago), Fosse sentiu-se impelido a fazer o balanço do seu percurso profissional e pessoal, obrigando-se a afrontar, por via da criação artística, os seus vícios (sexo, drogas, trabalho…) e o seu medo da morte. Para isso, inventou para si um alter ego tão detestável quanto genial – Joe Gideon, magistralmente interpretado por Roy Scheider, uma escolha surpreendente tendo em conta que até então este havia apenas interpretado papéis de “duro” em policiais e thrillers como The French Connection (Os Incorruptíveis Contra a Droga, 1971), Jaws (Tubarão, 1975) e Sorcerer (O Comboio do Medo, 1977) – e rodeou-se das “mulheres da sua vida” – mais precisamente, a ex-mulher e cúmplice de todas as horas que, no filme, é Audrey Paris (Leland Palmer), a filha adolescente Michelle (Erzsébet Földi), e a eletrizante Ann Reinking, que interpreta o seu próprio papel de amante “oficial” e dançarina de eleição, sob o nome de Kate Jagger.
Outros corpos femininos cruzam-se no caminho de Joe Gideon – os das dançarinas que o seu olhar de predador “despe” nas audições e ensaios, e que se tornam amantes de uma noite ou pouco mais –, mas são as três acima mencionadas que constituem o seu porto de abrigo e razão de viver, apesar de serem aquelas que mais vezes desiludiu. Por fim, há ainda uma quarta figura feminina, interpretada por uma resplandecente Jessica Lange, cuja aura envolve todo o filme, paradoxalmente ameaçadora e angelical. Habitando o subconsciente de Joe Gideon, num cenário que lembra o Kit Kat Klub de Cabaret e combina a estética onírica de Jean Cocteau com o estilo kitsch de Giulietta degli spiriti (Julieta dos Espíritos, 1965) de Fellini, esta entidade puramente fantasista personifica, na verdade, a Morte, adquirindo toda uma outra dimensão à luz dos eventos reais que sucederam a realização do filme: sem que Bob Fosse o pudesse saber, All that Jazz prefigurou a sua morte, sete anos mais tarde, em circunstâncias em tudo semelhantes àquelas que conduziram ao fim do seu alter ego cinematográfico.
Se a fantasia não é um ingrediente estranho à economia narrativa da comédia musical, servindo nomeadamente para justificar a ingerência de momentos cantados e dançados capazes de suspender a progressão do enredo, o uso que Bob Fosse faz destes momentos não se reduz a uma simples aplicação das convenções do género. Para alguém que vivenciou o esforço e a frustração, o suor e as lágrimas, necessários para se vingar na Broadway, o caráter irrealista e supostamente naturalizados dos números musicais clássicos, que irrompem de forma espontânea e ligeira no quotidiano, não é mais concebível. Muitas das sequências coreográficas de All that Jazz são, assim, reservadas a espaços ou contextos claramente teatrais ou teatralizados, como audições e ensaios (a abertura ao som de “On Broadway”), apresentações públicas (o número “Take off with us / Air-otica”, cujo caráter abertamente erótico choca os produtores do novo espectáculo de Joe Gideon) ou destinadas a um círculo privado (por exemplo, aquela com que a amante e a filha do coreógrafo, de cartola em riste, o presenteiam na sua sala de estar). Tais cenas permitem revisitar a tradição do backstage musical em voga nos anos 1930, ao mesmo tempo que, ao exporem de forma bastante crua os bastidores da criação coreográfica na Broadway, assumem uma dimensão documental inédita na história do género.
De certa maneira, é legítimo dizer que as coreografias fossianas são já eminentemente cinematográficas, na medida em que parecerem ser concebidas como uma cadeia de gestos fragmentários e de close-ups visuais e sonoros, cuja sucessão é calculada ao milímetro.
De forma semelhante, ao passo que, nos filmes clássicos, a ocorrência de saltos temporais, na forma de flashbacks ou flashforwards, é normalmente sinalizada por efeitos de fade in / fade out, sobreposições e outras distorções visuais e/ou sonoras, Bob Fosse evita recorrer a essas normas e inventa novas estratégias de exploração da temporalidade dos seus filmes, onde passado, presente e futuro podem coexistir num mesmo plano. Assim, torna-se impossível situar temporalmente as aparições do Anjo da Morte, bem como alguns números coreográficos na forma de alucinações, como aquele, evocativo dos caleidoscópios de girls emplumadas à maneira de Busby Berkeley, que ocorre durante uma cirurgia de coração aberto; impossível, também, perceber se todo o filme se passa “na cabeça” de um Joe Gideon moribundo, que revive o seu passado através de uma sucessão de números de dança, e que nem no leito da morte abdica de encenar uma espectacular despedida, sob os holofotes de um estúdio de televisão e rodeado de dançarinas voluptuosas em bodys impressos com o desenho de veias e de artérias…
Esses élans megalómanos roçam por vezes o mau gosto; mas Fosse assume o lado kitsch do filme, argumentando que, afinal de contas, a morte será sempre algo desagradável. Detalhe importante: a imagem de All that Jazz é da responsabilidade do diretor de fotografia Giuseppe Rotunno, colaborador frequente de Federico Fellini nos anos 70, cujo desenho de luzes ousado e exploração das cores ligeiramente saturadas, associados ao grão da película, realçam a dimensão burlesca do filme.
Para o protagonista e para o próprio Bob Fosse, o que conta é o instante presente, já que é no presente que o desejo (de sexo, de sucesso ou de um enésimo cigarro) se manifesta, e logo se consome. Mas esse presente é também ele múltiplo, chamando a si toda uma série de outros instantes, de outros desejos mais urgentes, capazes de provocar curto-circuitos onde coalescem pulsões de vida e de morte.
A sequência de abertura de All that Jazz é particularmente sintomática desse acumular de “instantes presentes” que acabarão, mais tarde ou mais cedo, por implodir. Numa série de planos breves e incisivos, assistimos ao ritual matinal de Joe Gideon, coreografado ao som do primeiro movimento do concerto “Alla rustica” de Vivaldi: a ingestão de um cocktail de gotas de colírio, pastilhas efervescentes, cigarros e comprimidos de Dexedrine, culmina numa confrontação com o espelho e com o mote, proferido sem grande convicção: “It’s showtime, folks!” Esta cena é retomada cinco vezes ao longo do filme: enquanto os planos mostram as mesmas ações, dando a impressão de que se trata de uma simples repetição, o ritmo e a ordem destes vai variando, de modo que, a cada vez que o espectáculo da vida do coreógrafo retoma sob o olhar do espectador, sentimos o seu desgaste crescente e o abismo que se aproxima. Mas the show must go on…
Também elas compostas de múltiplos “instantes presentes”, as coreografias de Fosse opõem à fluidez e à harmonia comedidas da dança clássica uma panóplia de movimentos isolados, trejeitos sincopados, balanços lascivos, sons percurssivos feitos com o corpo… De certa maneira, é legítimo dizer que as coreografias fossianas são já eminentemente cinematográficas, na medida em que parecerem ser concebidas como uma cadeia de gestos fragmentários e de close-ups visuais e sonoros, cuja sucessão é calculada ao milímetro. Esta estética da discontinuidade é sublimada pela montagem do filme que, preferindo a proximidade de um olhar escopofílico à distância “bem-comportada” dos planos de conjunto, põe a nu as marcas do esforço físico e as energias pulsionais que agitam os corpos, num misto de entrega e de urgência.
A dança, como a vida, é por definição efémera; e é na urgência com que um dançarino dispõe do seu corpo e se entrega à dança que a sua natureza mortal se torna palpável. Enquanto coreógrafo, a dança impele Joe Gideon/Bob Fosse a viver hic et nunc, aqui e agora; mas enquanto realizador, ele vê no cinema uma “máquina do tempo” poderosa, que lhe permite revisitar o passado e redimir-se. Ao longo de All that Jazz, o protagonista é constantemente confrontado à iminência da sua morte, mas prefere ignorar as inúmeras chamadas de alerta do seu corpo à beira do colapso, da mesma forma que recusa todas as versões da montagem do seu filme dentro do filme, ao ponto de este se tornar uma verdadeira obsessão. Em vários momentos, vêmo-lo na sala de montagem assistir repetidamente a uma cena em particular, na qual um artista de stand-up enumera com sarcasmo as cinco fases do luto: raiva, negação, negociação, depressão e, por film, aceitação. Apoiando-se na dimensão auto-reflexiva desse monólogo que ecoa através das vivências de Joe Gideon, a estrutura de All that Jazz acaba por seguir essas mesmas cinco etapas. A morte, essa, será inevitável. E será espectacular.
All that Jazz – O Espectáculo Vai Começar é exibido nos dias 20 (19h00) e 26 (17h00) de maio, no âmbito do ciclo Palmas de Ouro de Cannes, no cinema Medeia Nimas, em Lisboa.