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Amor

De Raquel Morais · Em 10 de Maio, 2022

Para a Rita

Em crónica recente, sobre um outro filme de Roberto Rossellini, falava sobre manifestações do interior no exterior, sobre a relação entre invisibilidade e evidência, latência e erupção, nomeadamente, mas não apenas, a propósito de um vulcão, o Vesúvio. Em Stromboli, terra di dio (Stromboli, 1949), anterior a Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1953), é também de um vulcão que se trata e de como certas coisas se tornam manifestas, tal como a epígrafe do filme, um versículo da Epístola de Paulo aos Romanos, ​​deixa entrever: “Deixei-me encontrar pelos que não me procuravam, manifestei-me aos que não perguntavam por mim”.

Stromboli, terra di dio (Stromboli, 1949) de Roberto Rossellini

Se no centro do versículo está a ideia de revelação, o texto de que é retirado anuncia desde logo o intuito do realizador: colocar no centro do filme o percurso da protagonista, Karin, rumo ao encontro com um deus cristão. Apesar de estimar a investigação que Rossellini faz, em outros dos seus trabalhos, acerca dos valores do cristianismo, nomeadamente a que leva a cabo no seu filme seguinte, Francesco, Giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos, 1950), e a codificação desse sistema de valores levada a cabo neste filme, é-me difícil contornar a minha desavença com Stromboli, por razões que procurarei esclarecer neste texto.

Karin é uma refugiada lituana, cuja ascendência judia é incerta, mas nunca negada, e que, depois de um casamento com um arquitecto alemão, acaba, viúva, num campo de refugiados de Farfa, a norte de Roma, já depois do final da Segunda Guerra. Aí, aceita casar com Antonio, um pescador natural da ilha de Stromboli que foi também prisioneiro de guerra, procurando novamente no matrimónio uma forma de fugir a perseguições e cativeiros. Idealiza Stromboli como um refúgio e não imagina que o que ali vai encontrar é uma nova prisão, materializada na insularidade e na desolação do lugar, mas também na natureza austera dos seus habitantes.

Numa oposição disfarçada a essa austeridade, Antonio escolheu para esposa aquela que imaginamos ser a mulher mais bonita do acampamento de Farfa, mas também a mais indomável. Todo o filme se constituiu, a meu ver, como uma investida violenta no sentido de amansar aquele ser selvagem, dominação que é apresentada em Stromboli como a transformação espiritual de Karin, o reencontro do caminho por parte de quem estava perdido.

Estabelece-se assim o paralelo entre ela e São Paulo, antes Saulo, um dos exemplos mais emblemáticos de conversão ao cristianismo, já que, nascido judeu, é durante as suas actividades de perseguição aos cristãos que deus se lhe anuncia. A sua identidade judaica ecoa na referida epístola, quando se fala de Isaías e da sua pregação ao povo de Israel, sobre o qual o profeta diz, no seguimento do versículo que abre o filme, “Todo o dia estendi as minhas mãos a um povo desobediente e rebelde”. Karin é a personificação enviesada da desobediência e rebeldia de que ali se fala. Existe entre ela e os habitantes de Stromboli, por um lado, um marcado conflito de classe, como ela insiste arrogante e constantemente em lembrar, e que ecoa em traços que poderíamos descrever, de acordo com a mentalidade local, como mesquinhez e ingratidão. O que prevalece, acima de tudo, é a diferença entre a sua natureza indómita e a resignação piedosa dos ilhéus. A tia de Antonio, Rosaria, afirma a certa altura, ser a falta de modéstia o maior pecado daquela mulher. 

A Karin falta de facto a humildade que São Francisco, precisamente, pregava. O que a caracteriza é antes a suas húbris e querer transformar esta mulher num exemplo de conversão é, para mim uma espécie de erro de leitura, por parte de Rossellini, da sua própria personagem, ou, pelo menos, uma tremenda injustiça que lhe faz. A única coisa que Karin eventualmente partilha com Francisco relaciona-se com o louvor de todas as coisas vivas que encontramos no “Cântico das Criaturas”, em que os animais, o sol, a lua, as estrelas, o vento, o ar, as nuvens, a água, o fogo, são celebrados enquanto criação de deus, enquanto manifestação do poder, da graça e do amor divino na matéria. Mas se Francisco afirma o seu parentesco com todos estes elementos – o irmão sol, a irmã água, o irmão fogo – a partir de uma posição de extrema humildade, já Karin, mesmo quando nas cenas finais de Stromboli parece finalmente aceitar não apenas a obediência ao divino mas uma espécie de comunhão com as coisas que a rodeiam, nunca é exactamente humilde: a sua figura é sempre altaneira e cheia de contundência. Digo isto sem laivos de desaprovação.

Karin ama o vulcão, não o teme. O seu horror é um horror emprestado, herdado dos habitantes da ilha. Dentro e fora do vulcão, a matéria revela a capacidade inacreditável de ser múltiplas coisas, de tomar múltiplas formas.

Karin, a participar de algum louvor, terá necessariamente de ser também ela parte da coisa louvada. A sua arrogância é da mesma natureza da de um vulcão ou do mar, uma corrente ininterrupta de vida que não se pode de modo algum limitar, sob pena da sua extinção, como é também o caso dos seres que se agitam no filme, tornados presas em mãos humanas: o coelho perseguido através de um furão, o polvo apanhado sem instrumentos, os cardumes de atum pescados com rede. Karin reage sempre com horror ao ver estas formas de vida interrompidas, lancinadas pela necessidade de sobrevivência ou pela crueldade dos habitantes da ilha, porque é a sua própria força vital que vê morta através delas. Nesse sentido, existe de facto uma irmandade entre ela e os seres, mas uma irmandade diferente da proposta no cântico franciscano, uma irmandade da matéria e não do espírito. Se, de acordo com a lógica do filme, é a revelação no topo do vulcão que permite a Karin perceber, pela primeira vez, a maravilha do mundo, a verdade é que já anteriormente ela tentava encontrar beleza e alimento na matéria desse mundo: pensemos nos tecidos estampados com que enfeita as janelas da casa e que usa para fazer vestidos, na vegetação, matéria orgânica, que cresce entre as rochas e que encosta à cara e aos lábios, no cacto gigante que manda colocar dentro de casa, procurando uma brandura ausente da superfície rochosa da ilha.

Na subida ao vulcão, Rossellini mostra-nos a protagonista em disputa com os elementos, vergada sob eles, envolta pelo fumo do vulcão, derrotada na sua tentativa de alcançar o outro lado da ilha. Adormece vencida pelo cansaço e acorda no dia seguinte, de corpo estendido debaixo do sol, como na cena inicial em que viaja de barco rumo a Stromboli. O final do filme marca a sua segunda chegada à ilha, através de uma resolução que me parece ser apenas uma das respostas possíveis à situação em que a personagem se encontra. Uma dessas respostas é aquela que Karin descreve ao longo de todo o filme, e que consiste em ver apenas a feiura e a aridez de Stromboli e das suas pessoas, em temer, constantemente aquilo que descreve como o terror de um vulcão sempre activo, a desolação e negrura de uma ilha que mais depressa ela diria ser do diabo do que de deus. A resposta de Rossellini, prometida no título, é por assim dizer uma segunda via, a da modéstia, do reconhecimento da sua condição de pecadora e de acolhimento da graça divina.

O que me parece ficar em falta é uma espécie de terceira via, uma que permitisse a Karin acolher uma beleza não pura. Essa terceira via, que me é difícil descrever, encontro-a num conto de Clarice Lispector, “Amor”, da colectânea Laços de Família (1960), em que a protagonista, Ana, tem uma espécie de epifania contrária à de Karin, uma crise, como lhe chama, que lhe desordena o mundo em vez de o ordenar. Ana é uma dona de casa que procurou serenar a “exaltação perturbada”, a “felicidade insuportável” (20) que associa à sua juventude, através da construção cuidadosa de uma certa ordem diária. Protege-se daquilo a que chama uma certa hora perigosa da tarde (19), em que as coisas parecem perder a harmonia, a unidade, o sentido, ocupando-se para isso em tarefas que possam de alguma forma “tornar os dias realizados e belos” (20), assegurando a manutenção de um propósito.

Um dia, voltando das compras no autocarro, vê um homem cego de pé na paragem, a mascar pastilha elástica. Entrever o negrume em que o homem se encontra mergulhado, negrume coberto de uma suavidade e de uma sofreguidão (23) que Ana reconhece (as mesmas que Karin encontra nas folhas tenras e traz consigo), desestabiliza de modo inesperado, esmagador, imparável o mundo daquela mulher. A imagem mais clara do irromper dessa desordem é a dos ovos partidos no colo da personagem, as “gemas amarelas e viscosas” a pingar “entre os fios da rede” (22), a estrutura que Ana tão aplicadamente compusera. “Expulsa dos seus próprios dias” (22), ela vê-se como as pessoas que a rodeiam na rua, “tão livres que elas não sabiam para onde ir” (23).

Ana é “atingida pelo demônio da fé” (26) e o que explode, o que irrompe, como as gemas e como a lava, é o espanto (20) da mulher perante o pulsar das coisas e o prazer intenso de as olhar (23). Subitamente, “o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu”, um mundo que ama “com nojo” (26), com um amor que não é o “sentimento com que se iria a uma igreja”, um amor sensual, lânguido, que se deleita na podridão das frutas, das flores, na sombra, no “trabalho secreto” (24) do Jardim Botânico, espécie de éden e de inferno simultâneos, porque, como se diz no final do conto, o amor tem em si uma espécie de inferno.

Talvez uma dos aspectos mais desconcertantes de viver numa ilha onde existe um vulcão activo seja, não a iminência sempre presente de uma erupção de maior magnitude, mas a espécie de indistinção entre a lava e a rocha arrefecida. Se as diferentes temperaturas as tornam diferentes, não deixa de ser também verdade que o interior e o exterior do vulcão são feitos da mesma substância. E é esta promiscuidade que provoca, parece-me, o estranhamento que inquieta Karin, perplexa perante o facto de que a matéria rígida, solidificada que pisa é também a massa espessa, densa, fervente que borbulha debaixo de si. Esse magma é a lembrança constante de um outro estado possível, como a “vida cheia de náusea doce” que alastra na tarde de Ana, como a lava viscosa que se espalha. Karin ama o vulcão, não o teme. O seu horror é um horror emprestado, herdado dos habitantes da ilha. Dentro e fora do vulcão, a matéria revela a capacidade inacreditável de ser múltiplas coisas, de tomar múltiplas formas. É dessa capacidade que nasce o espanto que acomete Ana, mergulhada de repente numa  vastidão que a acalma em vez de a perturbar (24). Voltando ao versículo do início do filme – “Deixei-me encontrar pelos que não me procuravam, manifestei-me aos que não perguntavam por mim” -, caberia dizer que às vezes encontramos coisas que tomamos por outras e que demoramos muitos anos a conseguir compreender.

As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Stromboli, terra di dio é parte dessa lista.

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Raquel Morais

“Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam/ para não criar, todas as noites, o problema da opção/ e evitar a humilde perplexidade dos moradores?/ Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,/ que tortura lançam no Méier!”

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