Os tempos estão de feição para a presença das vacas no cinema, parece. Primeiro tivemos o First Cow (First Cow – A Primeira Vaca da América, 2019), de Kelly Reichardt, em que a realizadora pegava no romance The Half Life, de Jonathan Raymond, e o dotava de uma vaca protagonista, exemplar único, digno de admiração (quase devoção). Agora temos Cow (2021), de Andrea Arnold, em que a protagonista vive, tão solitária quanto a vaca americana, entre centenas de outras vacas numa quinta do condado de Kent, em Inglaterra.

A vaca cujo destino acompanhamos chama-se Luma e desempenha nesta vacaria duas funções: dar leite e parir. Vemo-la, justamente, logo no início do filme, no momento em que mais um vitelo está prestes a nascer. Logo após o nascimento, ela inicia o demorado e paciente trabalho de limpar o vitelo, lambendo-o de ponta a ponta, mas este é um contacto breve, já que ele rapidamente é retirado para um outro local, longe da mãe, sendo alimentado por uma teta de plástico.
Cedo nos é mostrado que não devemos confundir a vida destes animais com a aquilo que nos habituámos a conhecer da vida dos animais domésticos que povoam as nossas vidas. Estes são animais pesados, até mesmo no seu andar, com algo de majestático, vagarosos, ameaçadores, não só pelas suas dimensões, mas também pelo seu fulgor – algo que podemos, desde logo, ver na sua respiração, audível e visível, um bafo denso que ocupa o ar, mas também no coice que atinge a câmara, recordando-nos que este não é um ser “fofinho” ou “queridinho”.
Andrea Arnold sempre nos habituou a uma certa forma de filmar a natureza, ainda que em ambientes causticamente urbanos, abarcando-a na sua totalidade, por vezes descendo quase até ao solo, numa espécie de tatami shot não-doméstico. Numa perspectiva que, por vezes, se assemelha ao trocar de olhares entre dois amantes numa cama, a câmara de Arnold deixa-se enamorar pelo elemento natural. Assim sucedia já numa das suas primeiras obras, a curta Wasp (2003), e também, de modo particular, em Wuthering Heights (O Monte dos Vendavais, 2011), perseguindo a ligação umbilical de Catherine às paisagens do Yorkshire. Catherine é, ela própria, parte da natureza que a viu crescer, que viu crescer o seu amor por Heathcliff. Ela é agreste como os montes que percorre e a atmosfera que a rodeia.
Sem nos apercebermos, começamos a acreditar que conhecemos Luma, começamos a estabelecer paralelos com outras vidas, começamos a encontrar nesta história os sinais de qualquer outra narrativa com personagens humanas.
Há, por isso, uma certa relutância da câmara em aceitar a intromissão de humanos no enquadramento. Nos primeiros momentos do filme, o foco pertence inteiramente a Luma, não havendo mais do que algumas vozes e imagens desfocadas de humanos em redor. Mas, pouco depois, somos relembrados do sítio em que estamos, um centro de produção de leite. A vida de Luma tem um propósito: produzir. E é quase possível sentir uma certa melancolia nesta vida, algures entre a desperate housewife e o métro-boulot-dodo. Ela dorme, come, faz o difícil trajecto até ao posto da ordenha e volta ao curral, apenas com breves excursões até ao pasto, algo que deixa de ser possível durante os meses de Inverno, quando os campos ficam cobertos de neve.
Parte da rotina de Luma, num processo que acompanhamos repetidas vezes, é a recolha do leite. A vaca avança para um espaço exíguo, onde os seus movimentos são constrangidos, e a ordenha começa. Esta complexa estrutura metálica pode ser descrita como uma espécie de spa-panóptico, onde as vacas vão ouvindo música enquanto são mungidas por um robot. A música que se ouve neste espaço é toda a banda sonora do filme, uma selecção musical que poderia ter saído do Spotify de um qualquer adolescente. Mas há um momento em que a música adquire uma especial gravitas, quando escutamos The Fairytale of New York, tornando o Natal especialmente penoso e a voz de Shane MacGowan especialmente tocante. Não há momento mais triste do que este, comportando um sentimento de solidão absoluta, de abandono extremo, justamente no momento em que tal é mais doloroso [por esta altura, estamos dispostos a ver em Luma os mesmos padecimentos sentimentais de um qualquer humano, pelo que a sua tristeza podia ser a mesma tristeza de Jack Lemon em The Apartment (O Apartamento, 1960)].
Aliás, o acompanhar desta rotina desperta no espectador uma vontade de olhar para o focinho da vaca e nele tentar descortinar sentimentos, é a própria câmara que nos impele a isso. Na verdade, a montagem do filme parece tomar um partido claro quanto ao significado do mugir da vaca, fazendo crer que Luma chama pelo vitelo que lhe foi retirado. Ao contrário de outras mães da filmografia de Arnold, a vaca Luma parece mais capacitada para ser mãe, um instinto maternal que, tudo indica, permanece inabalável apesar de todas as adversidades. Considerando toda a galeria de relações familiares falhadas que encontramos no cinema de Andrea Arnold, talvez haja um ciclo que se fecha entre a dor da mãe de Red Road (Sinal de Alerta, 2006) e a dor da mãe de Cow.

E agora a pergunta que não pode deixar de passar pela nossa cabeça: se esta vaca se chama Luma, como se chamam as outras vacas? Não seria de todo credível que os donos ou os trabalhadores de uma unidade de produção de leite em grande escala se dessem ao trabalho de atribuir um nome a cada uma das vacas da vacaria. Afinal, vemos Luma repetidamente em ambientes sobrelotados, perdida numa floresta de patas, a lembrar os alinhamentos de pernas infinitos à la Busby Berkeley. Será que há algo de especial nesta vaca? Será que ela é mais produtiva do que algumas das suas “colegas de trabalho”, esta working girl que já pariu por seis vezes? É uma pergunta que fica sem resposta, mas bem sabemos que não há documentário que não tenha a sua dose de desonestidade, por pequena que seja.
Cow não é, no entanto, apenas feito de melancolia bovina. Num momento de especial inspiração e humor, Andrea Arnold alude à cena de sedução de To Catch a Thief (Ladrão de Casaca, 1955), aquela em que os olhos de Cary Grant divagam entre o decote de Grace Kelly e os diamantes que o adornam. Aqui, a cena de sedução tem como protagonistas Luma e um touro que se vai dela acercando, passando rapidamente à acção, enquanto vemos os foguetes de passagem de ano rebentarem em segundo plano.
Sentimos, porém, que a vida começa a pesar a Luma (ou a sua história começa a pesar-nos?), mais ainda do que o mero peso do leite no seu corpo, um corpo que começa a ter dificuldade em não escorregar na lama que cobre o chão. Sem nos apercebermos, começamos a acreditar que conhecemos Luma, começamos a estabelecer paralelos com outras vidas, começamos a encontrar nesta história os sinais de qualquer outra narrativa com personagens humanas. Mas chega o momento em que somos despertados do embalo e em que, abruptamente, somos recordados do sítio em que estamos. E surge uma voz na nossa cabeça que diz: “é a economia, estúpido!”
[…] de Andreas Fontana (aqui, por Daniela Rôla, e aqui, por João Araújo) e ainda pasta erva fresca Cow (2021) de Andrea […]