Drama intenso, narrativa autobiográfica, e obra política, na sua primeira longa-metragem a cores, Valerio Zurlini faz um filme mais negro do que todos os anteriores. Reincidindo na obra literária de Vasco Pratolini (autor de Le ragazze di San Frediano, levado ao cinema em 1955), Zurlini regista com Cronaca familiare (Dois irmãos, dois destinos, 1962) a recordação de Enrico (comoventíssimo Marcello Mastroianni), um escritor desencantado, prestes a deixar o jornal para o qual trabalha, que recebe a notícia da morte do seu irmão oito anos mais novo, Lorenzo [Jacques Perrin (1941-2022), a repetir a colaboração com Zurlini, que no ano anterior tinha resultado no celebrado La ragazza con la valigia (A Rapariga da Mala, 1961)], com quem mantivera uma relação marcada por longas separações, uma vez que tinham crescido em famílias diferentes: Enrico com os pais biológicos, e Lorenzo, cuja mãe morrera na sequência de complicações pós-parto, com os caseiros de um barão vizinho, que pretendeu fazer dele um modelo de pequeno burguês ordeiro e aplicado, segundo os ditames uniformizadores da Itália fascista.
Lorenzo é neste filme o rapaz da mala, sendo que o simbolismo com a mesma é de uma ordem diferente daquela atribuída à personagem de Claudia Cardinale no filme de 1961, uma jovem sem eira nem beira, que se ia ligando a homens e sendo por eles deixada, e cujas únicas posses que tinha cabiam na mala que levava sempre com ela. Já Lorenzo faz da mala que transporta nalgumas ocasiões uma representação do seu mundo mental, bem ordenado, no que contrasta com a vida caótica do irmão mais velho. As memórias de Enrico falam dos momentos decisivos na relação dos dois irmãos. A chegada de Lorenzo, bebé, à casa do barão; o reencontro 18 anos mais tarde, quando Lorenzo escapa de Florença e passa uns dias na casa de Enrico em Roma; os últimos meses de vida de Lorenzo, que não se fixa num emprego, e que busca em Enrico uma orientação para a vida. Os destinos diferentes de Lorenzo e Enrico parecem ter sido definidos pela fortaleza de um que nunca fora poupado às privações da pobreza, e a fraqueza do mais novo, que só conhecerá o frio e o abandono já adulto, o que lhe virá a ser fatal.
Todo o filme de Zurlini obedece a este pacto de dar a sentir a vitalidade do amor destes dois irmãos, algumas vezes incompreendidos um pelo outro, mas que se reconhecerão no estatuto que os faz iguais.
Mas para lá da pungente relação que existe no centro de Cronaca familiare, ou em torno desta, devemos enaltecer o trabalho de Zurlini na caracterização sintética e rigorosa do que era a vida dos populares na Itália de entre duas Grandes Guerras, e aquilo a que podia aspirar uma gente que tinha a condição desfavorecida por perene, e no horizonte último da vida o hospital ou o hospício para esperar a morte.
A dimensão política deste filme nunca é tão contundentemente filmada como na visita de Enrico à clínica para onde transferira Lorenzo (e agora que as suas posses eram mais desafogadas, o cuidado prestado ao irmão procurava também redimir o internamento da avó muitos anos antes, num hospício, quando Enrico mal ganhava para se manter unicamente a si), já Lorenzo delirante e a confundir os episódios da vida em comum de ambos, momento marcado por estes diálogos que merecem ser reproduzidos por inteiro:
Enrico: “Penso que é preciso saber enfrentar a morte. Nesse momento, em que já nada se pode esperar dos homens, se podemos passar sem Deus, é porque não acreditamos.”
Lorenzo: “Mas se já nada se espera dos homens nem de Deus…”
Enrico: “Podes acreditar em ti mesmo, e reconhecer-te naqueles que vais deixar.”
Lorenzo: “É isso o comunismo?”
Enrico: “Também é isso.”
O irmão que se fez sozinho, com os livros, aos tombos e a pulso, carregará a mala do mais novo uma última vez, e a pedido de Lorenzo, que deseja regressar à Florença natal. Enrico despede-se dele junto da ambulância, e decide não mais voltar a vê-lo, porque prefere recordá-lo em vida. Todo o filme de Zurlini obedece a este pacto de dar a sentir a vitalidade do amor destes dois irmãos, algumas vezes incompreendidos um pelo outro, mas que se reconhecerão no estatuto que os faz iguais, e na força que determina para eles destinos diferentes.