I think we’ve described the landscape of the nineties, where the media is chasing the violence
Oliver Stone
Em entrevistas, aquando da estreia de Natural Born Killers (Assassinos Natos, 1994), Oliver Stone identificou a violência como um dos eixos motores do mapa da América, legado transferido de “pais para filhos” como uma patologia, que ele revolveu, então, numa “sátira, uma distorção para fazer valer os seus argumentos”. Numa perspectiva behaviorista, identifica no humano um “instinto primitivo, forte e demoníaco”, uma predisposição para comportamentos violentos e psicopatologias associadas, que conduz à sobrevivência do mais forte, observável no universo do reino animal, que não reconhece uma fronteira entre o homem e a besta, como “algo que nos une: afinal, todos podemos cometer um crime, pelo que devemos questionar o castigo, a prisão dos criminosos, atendendo a que todos somos um produto da corrupção de um tempo de violência”. Numa notória afinidade com as paisagens ballardianas, Stone denunciou uma sociedade absorvida pela comunicação e pelo poder da imagem (“politic is fashion”), o media landscape como uma esponja, propagada desde os anos 60 no médium televisivo que era, lembramos, a peça central dos lares americanos em JFK (1990) e que na geração seguinte vemos contaminada pelo videoclip, pelos tempos áureos da linguagem MTV, em que as imagens suportavam uma narrativa de três ou quatro minutos, a duração de um tema musical.

Assassinos Natos, então, como uma sequela de JFK, em que pelo meio Stone fechara a trilogia dedicada à insanidade da guerra do Vietname – que também viramos nos ecrãs de JFK -, em Heaven & Earth (Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar, 1993) e antes de se lançar a Nixon (1995), interpretado por Anthony Hopkins, como quem cumpre um caderno de encargos. Se JFK é a paisagem dos sessentas, Assassinos Natos é a paisagem dos noventas, em que a violência se oferece como a tal herança, uma tradição com uma divida generosa e secular para com o western, de Billy the Kid, de Jesse James e de todos os outros assassinos violentos, heróis inúmeras vezes revisitados pelo Cinema, que aqui se materializam em ícones, se fazem imagem, em Mickey (Woody Harrelson) e Mallory Knox (Juliette Lewis).
Num dos primeiros planos de Assassinos Natos, alguém sintoniza um televisor disposto na bancada de uma cozinha, onde vemos por instantes Richard Nixon a abdicar da presidência. Pouco depois de mostrar a dupla Mickey e Mallory em acção, um flashback apresenta-nos os personagens e as suas famílias, numa sequência explorada em modo sitcom, incluindo a presença de uma plateia audível, como uma versão obscena de All in the Family (Uma Família às Direitas, 1971-1979), série transmitida originalmente pela CBS na década de 70, durante nove temporadas. Recordamos, então, que a série trabalhava sobre as fracturas inter-geracionais, com Carrol O’ Connor como peça central a interpretar Archie Bunker, o pai conservador e racista, com comportamentos e diálogos atenuados pela bonomia, no confronto com as ideias liberais da filha e principalmente do genro, um estudante universitário (hippie de origem polaca), sendo que à mãe estava reservado o papel de mediação das contendas. Em tempos sincrónicos com a queda de Nixon, a cisão era evidente, entre uma geração nascida no início do século e que vivera entre guerras e a seguinte, a do pós-guerra, que chegara à idade adulta numa época de grandes mudanças: de costumes, de libertação sexual e do uso de drogas, onde a televisão jogava um papel decisivo.

O pai de Mallory (Rodney Dangerfield) é uma versão grotesca de Archie Bunker. O público responde com aplausos e entusiasmo a esta família distorcida e disfuncional, apresentada à hora do jantar. O pai, que assume a representação de um passado de brutalidade, come macarrão (que lhe sujou a roupa de tomate), enquanto insulta a filha com linguagem obscena e pretende impedi-la de sair de casa, como se ela fosse uma propriedade sua. O tom acentua-se, das palavras às acções, para regozijo da plateia, a do estúdio e a que recebe as imagens da televisão: perante o silêncio cúmplice da mãe, o pai apalpa Mallory e ordena-lhe que o aguarde no quarto, após tomar um banho. Mickey entrará pouco depois no estúdio da sala de jantar, com uma indumentária ensanguentada de talhante, a anunciar a renovação do ciclo de violência, que ocorrerá em frente à televisão: com o pai voltado para as imagens de um combate de wrestling, a dupla faz a primeira morte e Mallory festejará o assassínio do pai como uma actualização em modo cartoon do mito de Electra, em que a mãe também morrerá, mas em que poupará o irmão mais jovem, a garantir a transmissão geracional das imagens de violência, do vai e vem entre o dentro e o fora dos ecrãs, como uma realidade espelhada, uma hiper-realidade.
A violência surge associada, então, a essa noção de hiper-realidade, de indistinção entre paisagens reais e ficcionadas, um continuum de imagens, um cerco de monitores, onde os protagonistas se afirmam porta-vozes das ideias de Oliver Stone, um reino animal em que as criaturas não se libertam da sombra do homicídio. Da mesma forma que o media landscape não permite separar as imagens reais, Mickey diz que ninguém é inocente de homicídio, bastará vislumbrar a floresta, encarando, então, a violência como um destino, uma maldição que se aloja na alma, algo que tomara do pai. Tal como discorria do visionamento de JFK, há uma predilecção para a importância do directo televisivo: a detenção de Mickey e Mallory, a entrevista dos heróis criminosos na prisão, o motim e a sua fuga. Há uma obsessão no registo destes acontecimentos e na sua difusão em directo nos ecrãs, como se isso lhes conferisse uma importância decisiva, ou por outro lado, como se a inexistência das imagens esvaziasse de sentido esses eventos, os declarasse inexistentes.
Desde o genérico inicial que Assassinos Natos aponta a definição da América como um mapa de simulacros numa história de violência, cuja unidade de medição é a imagem, que conduz à concepção de mitos, de ícones com um alcance quase religioso.
Há uma notória continuidade estética que transita de JFK, na perversidade atribuída às reconstituições e na ideia de zapping infernal e sarcástico, onde convivem imagens bem iluminadas e de cores calibradas, com planos de tons baços e cinzentos, entremeados por transições rápidas que podem abarcar pequenos episódios de manga. A montagem é, então, um instigador de ângulos distorcidos (a evidenciar a distorção psicológica dos personagens, das suas intenções e acções) e de câmara ao ombro, de planos de curtíssima duração e quase esvaziados de relevância, assemblados com escalas mais abertas no espaço e na profundidade de campo, mas que, tal como a estética da MTV, assume o close-up como uma espécie de plano charneira da narrativa, a que se volta recorrentemente.
O personagem que divide o protagonismo com o casal Mickey & Mallory é Wayne Gale (Robert Downey Jr.), que interpreta um elemento preponderante do media landscape: o jornalista, aqui editor de um programa – American Maniacs – que se dedica a explorar a galeria de heróis criminosos do período que sucedeu ao assassinato de Kennedy, onde se encontram Charles Mason, Richard Ramirez ou Charles Whitman. Na sequência em que Gale é apresentado no filme, ele surge a abrir uma porta a pontapé, como se exteriorizasse a violência contida no médium televisivo que ele produz. Tanto o espectador como o protagonista Mickey identificam traços de psicopatologia em Gale, com claras afinidades com as definições de violência da dupla de criminosos e por isso os protagonistas estão sempre disponíveis para imporem lições morais a Gale, que se julga superior e sofisticado, mas que será vergado, liquidado na sua condição de mero repórter, descartado e substituído pela câmara, a derradeira e decisiva testemunha do percurso dos assassinos, que resistem assim à condição de propriedade dos media e do público. Os diálogos entre esta tríade estão pejados de asserções e reflexões estéticas, em que os personagens dissertam sobre a importância do media landscape, a filosofia das imagens, o seu valor e significado: durante o motim em directo para a televisão, que conduziria à fuga da prisão, num atravessamento de uma coluna de guardas armados, Mickey pergunta ao jornalista se ele quer veracidade, como se enumerasse os pressupostos do Cinema Directo, inaugurado por Primary (1960).

A história que antecipou o guião de Assassinos Natos foi escrita por Quentin Tarantino. Se o percurso de um dos mais importantes cineastas da América contemporânea se fez à sombra da tradição e do património de Hollywood, dos seus lados b e das arqueologias dos videoclubes, o uso abundante da música popular e da sua intercepção com as imagens é um dos seus trunfos, que se expõe no filme de Oliver Stone como uma espinha dorsal que o estrutura e o conecta com o sistema nervoso central que o imagina. Desde as primeiras cenas que o uso abundante de música, muitas vezes diegética, se enrola com as imagens insinuando um acelerador da dicotomia sexo-violência (como fugas vazadas do inconsciente), que coloca os personagens a dançar, a princípio numa aproximação entre gerações (uma das virtudes do património da música popular), mas que resultará num ritmo tribal que embala a concretização da violência. Os personagens apropriam-se das canções, tal como o filme que as integra e as entrelaça com a sonoplastia, como um objecto único, indissociável. Os refrões são usados como uma interpretação da cena e antecipação do guião, de acções futuras dos personagens; na detenção de Mickey & Mallory, esta decreta o destino de Jack Scagnetti (Tom Sizemore), o polícia psicopata, na letra cantada por Nancy Sinatra: “These boots are made for walkin’ / And that’s just what they’ll do / One of these days these boots are gonna walk all over you.” São escassas as imagens que não se revestem de música, com uma intencionalidade notável nas associações, uma permanente tecedura, que coloca os personagens a existirem dentro do significado das letras e do ritmo das canções.

As canções contribuem também para o enriquecimento das personagens e a sua ambiguidade, em que mais uma vez se destaca a interpretação de Mallory por Juliette Lewis, um corpo ainda a sair da adolescência, uma inocência quebrada dois anos antes em Cape Fear (Cabo do Medo, 1991) no assédio de Robert De Niro à colegial Danielle. “Born bad / Its such a sin / Born bad / Its such a sin, I guess I’m born naturally born bad”: Mallory na cela da prisão, observada por Jack Scagnetti, é-nos revelada com a candura e a fragilidade de uma criança, mesmo que conheçamos o seu percurso de assassínios, como se por instantes a história da sua vida e dos seus desejos nos fosse confiada. E no genérico final do filme, Leonard Cohen cantará The Future, como uma acta de Assassinos Natos e dos anseios dos protagonistas: “Give me back the Berlin Wall / give me Stalin and St. Paul / I’ve seen the future, brother / it is murder / Things are going to slide…/ slide in all directions / Won’t be nothing… / won’t be nothing you can measure anymore / I’m the little jew / who wrote the Bible / I’ve seen the nations rise and fall / I’ve heard their stories, heard them all / but love’s the only engine of survival.”
Desde o genérico inicial que Assassinos Natos aponta a definição da América como um mapa de simulacros numa história de violência, cuja unidade de medição é a imagem, que conduz à concepção de mitos, de ícones com um alcance quase religioso. Nessa primeira assemblagem de imagens, encontramos lugares impregnados de ficção, simulações da realidade, como Las Vegas ou Monument Valley, num cruzamento com o mundo animal e notícias de assassínios. Num percurso que procura sair das grandes cidades, para encontrar bares e motéis de beira de estrada, numa América do fim do século XX, mas ainda conectada com o território do século anterior, saído da Guerra Civil e sustentado nos códigos do western, na lenta imposição das premissas da lei e da ordem. Uma narrativa que traduz, então, com ambiguidade, a vontade libertária, em que um descapotável pode atravessar um imenso continente, como o cavalo fazia, e depois o cavalo de ferro, na expansão para oeste que as imagens da história do cinema documentaram. Enquadrados num cenário de western, os personagens são colocados numa relação horizontal entre animais e elementos da rebelião da natureza, como na cena exemplar da primeira fuga da prisão em que o deserto assiste ao desencadear de um tornado, de movimentos abruptos de cavalos e serpentes.
Uma das características que populariza o rasto de Mickey & Mallory é a premissa de deixar sempre alguém vivo: em cada lugar é preciso que alguém conte a sua história, imprima a sua imagem. O casal de assassinos cumpre, assim, a longa tradição civilizacional de contar histórias, que traçará um corredor do tempo desde o western (procurados “dead or alive”) até a um mundo global que os idolatra como estrelas de rock. Um dos entrevistados diz-nos que eles são “o melhor do assassínio em massa desde Charles Manson”, evidenciando a tal indistinção entre as paisagens da realidade e dos desejos emperrados no nosso inconsciente: “Não acredito no assassínio em massa…não me interpretem mal. Respeitamos a vida humana. Mas se eu fosse um assassino em massa, seria como Mickey & Mallory (…)”, que integram “os grandes nomes dos EUA – Elvis, Jack Kerouac, James Dean, Jim Morrisson, Jack Nicholson”.

Se o detective Scagnetti, também escritor de policiais, é uma imagem corrupta da herança de Hollywood, do noir e da brutalidade dos personagens dos filmes de gangsters, há outro personagem com notórias afinidades com este: o director da prisão de alta segurança, Dwight McClusky, interpretado por Tommy Lee Jones. No encontro dos dois na prisão, Stone acumula trejeitos dos personagens com ângulos desviados da diagonal saudável, numa luta de galos e de grosserias. McClusky, ao referir-se à entrevista a Mickey na prisão diz “we can’t say no to the media”, sendo que pouco antes Scagnetti tinha teorizado sobre uma cultura de fast food onde prosperam os psicopatas. Os diálogos e as acções nos corredores contíguos às celas revelam que estes dois personagens são de forma evidente o miolo de um continuum de cenários de violência para o qual eles pretendem olhar com ironia, como se fosse possível distanciarem-se do objecto de estudo. Scagnetti revela, então, que a mãe fora assassinada por Charles Witman, o psicopata do Texas, que coloca no centro da conversa o universo sulista e um dos actos fundadores da hiper-realidade: o assassinato de Kennedy em Dallas.

Recordamos que Tommy Lee Jones interpretara Clay Shaw em JFK, um membro da aristocracia de New Orleans que o gabinete do procurador conseguiu implicar e levar a julgamento na conspiração, no golpe de estado que tombou o presidente. Scagnetti diz, então, que “quando matar Mickey & Mallory será mundialmente famoso como Jack Ruby”, que assassinou em directo para a televisão Lee Harvey Oswald. É a ambição de alcançar o estatuto de ícone imagético, que liga estes personagens, a de imprimir as narrativas de violência, da História emitida pelos media, a que se junta o jornalista Gale, obcecado com a fama e a celebridade que podem advir da entrevista com Mickey (a ser difundida na noite do Super Bowl), algo de único no património do media landscape, só aproximável à entrevista de Elton John à Rolling Stone a assumir a bissexualidade, ao registo dos Rolling Stones em Altamont pelos irmãos Mayles ou as entrevistas entre Nixon e Frost. Esta ambição de Gale estende-se à influência na linguagem televisiva, a ordenar aos montadores onde cortar e onde inserir os close-ups, obcecado com o poder das imagens e a sua influência no receptor, que se estende até ao momento da sua morte, quando grita em desespero “Cut, Cut, Cut”, perante as espingardas prontas a deflagrar de Mickey & Mallory.
Tínhamos nomeado na crónica dedicada a Empire of the Sun (Império do Sol, 1987), a concretização de planos que expressavam de forma notável as ideias de J. G. Ballard, na definição de media landscape: enquadramentos que resolviam o conflito entre as histórias de Hollywood e as paisagens reais, em que o tempo se diluía, como nas praias e na Persistência da Memória de Salvador Dali. Em Assassinos Natos, a princípio, a América interior e a sua paisagem parece uma possibilidade de contra-campo das paisagens dos media, mas depressa percebemos que Mickey & Mallory estão contaminados pelos ecrãs, o que um grupo de ameríndios concretizará ao vê-los como demónios. Essa impossibilidade de fuga será projectada, numa ideia com afinidades à de Spielberg.
Em ecrãs-janela, num zapping de um motel, associado ao movimento sexual dos corpos de Mickey & Mallory, assistimos à projecção de imagens de violência que participaram da História do século XX: guerras, assassinatos, marchas militares, campos de concentração, retratos de Estaline e de Hitler. Mas, em algo que também se repetirá no quarto de motel de Scagnetti, por entre retratos da História, há imagens de animais da savana e o Tony Montana de Al Pacino em Scarface (Scarface – A Força do Poder, 1983): o mundo exterior e os nossos desejos, o passado e o futuro, a ficção e as paisagens da nossa mente, um todo que se unifica no espectáculo nas janelas projectado pelo media landscape.