Aqui, no À pala de Walsh, estamos em modo de celebração da obra do cineasta sul-coreano, Hong Sang-soo. O motivo principal é, claro está, a estreia comercial, pela Midas Filmes, de dois filmes de Hong, no dia 26 deste mês: Introduction (Apresentação, 2021) e Dangsin-eolgul-apeseo (Perante o Teu Rosto, 2021). Carros, gatos, sacos de plástico e sonhos tão divertidos quanto melancólicos, os ingredientes são banalíssimos e lindíssimos nesta nossa Sopa de Planos dedicada ao universo honguiano.
O plano médio na chapa do carro em Introduction (Apresentação, 2021) é na verdade um contracampo, diferido por uma breve sequência, de um mesmo plano zoom in, lentamente acercando-se da mesma chapa um tanto antes: para um filme de uma hora e cinco minutos, esta breve diferença espaço-temporal, onde se assinala uma Origem e um destino (a chapa do carro) é suficiente para nos tomar de vertigem. É um plano sintético ou sincrético, pois reúne as várias linhas de fuga, encarnadas em personagens e seus contos pessoais, de que Introduction é a foz. O cinema de Hong sang-soo é cada vez mais prismático, multifocal: ele segmenta, difrata e diverge para recompor uma totalidade que, cada vez mais moderna, só nos pode abordar interinamente, e provisoriamente nos toma de supetão como ontem o grande romanesco, aquele de neo-clássico Visconti e late Syberberg, que necessitava de 3 horas para retomar seu curso de Origem. “Nós temos uma estranha sorte, não?”, pergunta na praia a moça que está ficando cega e tentando morrer ao rapaz que, ator em sursis, recusou-se a beijar na boca no teatro para não chocar a namorada – basta o instantâneo de uma placa de carro para aproximá-los numa rota que talvez seja fatal, em todo caso, um escarpado destino que um filme miniaturizado se permite escalar.
Luiz Soares Júnior
Quando olhamos para estas mulheres, o nosso olhar é duplo: por um lado, elas são personagens que integram uma ficção criada por Hong Sang-soo; por outro lado, elas são três mulheres. Estas três mulheres têm a profissão de actriz e representam papéis num filme de Hong Sang-soo. Quando o gato, por seu turno, olha para estas mulheres, ele não tem acesso a essa duplicidade porque não possui (presumimos nós) a capacidade de reconhecer a representação. Quando elas interagem com ele enquanto personagens, ele toma-as como, simplesmente, seres actuantes. As mulheres que elas simulam ser, no filme, e as mulheres que elas são, na realidade, unem-se na visão do gato. A sua natureza dual, no entanto, é a mesma que o gato possui, tratando-se de um ser que — saiba ou não saiba — está a ser verdadeiramente ele mesmo ao mesmo tempo que é imerso num mundo de ficção.
Na verdade, embora não haja muitos animais no cinema de Hong Sang-soo, e embora pareça haver muita linguagem, muito discurso, muita humanidade, tudo isto tem muito que ver com o cinema deste sul-coreano. Os humanos de Hong Sang-soo têm algo de animal, de gato. São gatos treinados, que aprenderam a falar, que assimilaram um conjunto de convenções e que fingem ser humanos para que o cinema dos seres actuantes possa acontecer.
José Bértolo
O filme, um dos mais subestimados de toda a filmografia de Hong, é pontuado por este plano: o da “bela adormecida” interpretada pela magnífica Jung Eun-chae, num papel que faz esquecer a ausência de Kim Min-hee no elenco. A personagem gosta de passar pelas brasas em bibliotecas, o mesmo é dizer: tendo como única ocupação o estudo, Haewon não parece preparada para lidar com as responsabilidades da idade adulta, nomeadamente revela dificuldades em aceitar uma vida levada na ausência de sua mãe, que está de partida para o Canadá com o intuito de desfrutar de uma reforma de sonho. O engraçado – muito mesmo, tão engraçado que roça o desespero mais pateticamente honguiano – é que esta rapariga não apresenta o mínimo traço de timidez, nem parece muito preocupada com o seu futuro académico, nem tão-pouco “perde o sono” com o seu aparente “sem-futuro” sentimental.
A “bela adormecida” divide a sua vida entre homens mais velhos, aqui representados pela figura genérica – nada genérica, na realidade – do cinema de Hong Sang-soo, o realizador que – coitado… – também é professor universitário. A personagem genérica mais comum no cinema do sul-coreano, está visto, é o mais perfeito irmão gémeo do realizador on screen, aqui representado tanto pelo professor alcoólico incapaz de lidar com o novo papel de pai ou com o desgastado papel de marido como pelo professor mais velho que vive nos States e é “tu cá, tu lá” com Martin Scorsese. A vida interior de Haewon divide-se e os dilemas parecem angustiantes – tudo pesa, pelo que o melhor é deixar-se levar pelo sono e ver como as coisas se desenrolam. Hong nunca destrinça bem o que é sonhado do que é efectivamente vivido, mas Haewon é sempre consistentemente hesitante, desesperada e muito engraçada mesmo (quase burlesca), não importa qual seja a cena da realidade sonhada que protagoniza ao longo deste divertidíssimo filme melancólico.
Luís Mendonça
Imagem banalíssima e belíssima: um casal que se beija, um abraço que produz calor bastante para contrariar os pequeníssimos flocos de neve que vemos pousados na roupa e nos cabelos. O que há de singular nesta imagem é o saco de plástico. O plástico é o elemento do feio, o material que nos habituámos a odiar, mas é também aquilo que traz o romance de filme para o plano da intimidade, do real, do quotidiano. É o amor do nosso tempo: pessoas demasiado ciosas da sua autonomia a ponto de se tornarem incapazes de uma entrega total e apaixonada. Um amor que dispensa o encantamento, tendo que bastar-se com uma expectativa de intimidade. Essa intimidade está ali, naquele objecto de banalidade extrema, naquele prenúncio de uma partilha do dia-a-dia. Ao mesmo tempo, é também uma ameaça. Porque essa proximidade de todos os dias mata aquele impulso inicial, aquele acto apaixonado do beijo inesperado. É o pântano dos dias pairando sobre o amor.
Book chon bang hyang (O Dia em que ele Chega, 2011) é um filme de repetições e este é mais um acto que se repete. Seong-jun beija Ye-jeon subitamente, enquanto ouvimos o barulho irritante do saco de plástico branco que segura na mão. E beijá-la-á novamente pela primeira vez enquanto segura um saco de plástico preto. Ou melhor, ele parece guardar a recordação do primeiro beijo (que é o mesmo beijo), pedindo-lhe desculpa “pelo outro dia”. Ela não guarda qualquer recordação do beijo, pelo que este será para ela indubitavelmente o primeiro. Esta é a genialidade do filme, esta confusão entre actos que se repetem numa nova primeira vez e actos que remetem para actos passados, contrariando a repetição (como quando Boram se queixa das constantes incursões nocturnas de Ye-jeon). O que significa isto para o acto de amar? Significa talvez a mais bela das promessas, a de poder todos os dias voltar a uma paixão inicial e exacerbada. Há aqui eflúvios de Groundhog Day (O Feitiço do Tempo, 1993), dessa maravilhosa e horrível possibilidade de puxar para trás, de refazer em melhor ou, pelo menos, em diferente. Seong-jun encontra uma nova mulher que corporize sua antiga namorada, inventa a personagem Ye-jeon, e isso permite-lhe voltar ao coup de foudre, a um impulso romântico incontrolável, a uma paixão sem o “depois”. É esse o momento mágico que se quer guardar, roubá-lo da sua irrepetibilidade seria obsceno. Por isso tem Seong-jun no final um breve momento de hesitação, não mais de um ou dois segundos, mas ele resiste. Sabe que é necessário partir.
Daniela Rôla