São muitos os percalços que a crítica enfrenta para continuar existindo. Não é exagero dizer que a crítica é uma brava sobrevivente. Ao contrário do que muitos pensam, esses percalços não mudaram muito com o passar do tempo, ao menos para a crítica cinematográfica. Os de hoje são praticamente os mesmos de 70 anos atrás, época em que os Cahiers du Cinéma surgiram para afirmar, com uma boa dose de coragem e afronta, a pobreza do cinema francês de então e a superioridade do cinema americano. Tais percalços são agora repaginados para uma época em que a informação surge em estilhaços, e por isso é uma época de maior cinismo, embora seja também de maiores possibilidades para a crítica.

Aqui vale um desvio. Estamos aproveitando essas possibilidades? Quando penso que hoje há muito mais críticas mulheres, negros e negras, vozes que antes mal conseguiam se manifestar, chegamos à conclusão de que sim, aproveitamos as possibilidades como podemos. Quando percebemos, contudo, que os mesmos vícios conteudistas e os mesmos preconceitos ideológicos continuam vicejando em boa parte das críticas escritas atualmente, e que a mediocridade continua reinando soberana (em parte porque a maior vitória, contra o neoliberalismo que infesta esquerdas e direitas da sociedade, esteja longe de acontecer), vemos que ainda há muito a se fazer. Pouco tempo atrás se disse, aqui no Brasil, que mulheres não precisavam entender de cinema. Que teriam direito a exercer a crítica simplesmente por serem mulheres. É uma ideia de fundo misógino, mas aparentemente foi encarada por muitos como um sinal do empoderamento feminino, dadas as distorções que machucam o pensamento cinematográfico (não só neste lado do Atlântico, percebo).
Que não haja confusão. Em todas as oficinas de crítica que ministrei desde a primeira, em 2008, a maior parte dos melhores exercícios foram escritos por mulheres. Como não encontraram espaço no mundinho masculinizado da crítica, recorreram então à academia, quando possível, ou ao anonimato, por cansaço. Isso precisava mudar, e finalmente está mudando. Mas é necessário fazer ajustes para que a mediocridade não ocupe o espaço de críticas realmente talentosas, por mais que ainda seja muito mais fácil ver homens brancos medíocres ocupando esses espaços, alguns deles com um oportunismo raso por não conseguirem falar de forma, estética, estilo, mise en scène, coisas que abominam.
Desconheço boa crítica que coloque sempre a forma acima de tudo, mas também desconheço boa crítica em cujas palavras não se encontra uma discussão séria a respeito da forma da obra a ser criticada.
Volto ao caminho principal. Um percalço que está mais vivo e pernicioso do que nunca é aquele que joga a discussão formal para debaixo do tapete e se restringe à análise do discurso. A estratégia é óbvia: muito mais difícil é falar de forma fílmica do que de discurso. Aí críticos tolos ou mal intencionados costumam dizer que ter preocupação formal é coisa de recalcado, de formalista (essa ofensa terrível para eles), de quem só vê importância na forma, ou de quem coloca a forma acima de tudo. Desconheço boa crítica que coloque sempre a forma acima de tudo, mas também desconheço boa crítica em cujas palavras não se encontra uma discussão séria a respeito da forma da obra a ser criticada. Falar de forma pode não ser o mais importante, mas é incontornável se a questão é falar de cinema (ou de qualquer outra arte). Pois é a forma que molda o que vemos, que apresenta o discurso, que introduz o pensamento. Sem a forma, não há pensamento que dure mais do que tapinhas nas costas.
Por vezes, um filme faz conteudistas gritarem mais alto, entrincheirados pela ilusão do discurso em arte. Desta vez foi Medida Provisória (2020), de Lázaro Ramos. Não gostar do filme, eventualmente até identificar problemas de estrutura, significa que o crítico é racista. Mesmo quando os problemas apontados são especialmente formais. A chantagem do filme que já nasce blindado porque apoiado pela defesa dos medíocres. Ruim para o filme, ruim para o cinema, pior para a crítica.
Para que existir crítica se ela não puder ir de encontro a um discurso expresso num filme específico? É a morte da crítica, e o consequente fortalecimento do reino dos medíocres.