Consulte: Palatorium do dia 18 de Maio
O mês de Maio não provoca grandes estremecimentos. De qualquer das formas, destacamos The Northman (O Homem do Norte, 2022) de Robert Eggers e o novo de Kogonada, depois de Columbus (2017): After Yang (Depois de Yang, 2021). Ainda está em sala o surpreendente Azor (Azor – Nem Uma Palavra, 2021) de Andreas Fontana (aqui, por Daniela Rôla, e aqui, por João Araújo) e ainda pasta erva fresca Cow (2021) de Andrea Arnold.
Destaca-se ainda o entusiasmo contido em relação a Introduction (Apresentação, 2021), mas bem menos contido em relação a Dangsin-eolgul-apeseo (Perante o Teu Rosto, 2021), os dois filmes do sul-coreano Hong Sang-soo em estreia nacional.
Em matéria de comprimidos cinéfilos, temos: Downton Abbey: A New Era (Downton Abbey: Uma Nova Era, 2022) de Simon Curtis, por Daniela Rôla; Vortex (2021) de Gaspar Noé, por Ricardo Gross; After Yang de Kogonada, por João Araújo; Top Gun: Maverick (2022) de Joseph Kosinski, com Tom Cruise, por Ricardo Gross, que dá quatro palas à sequela do filme original de Tony Scott. E há ainda um olhar de Ricardo Gross sobre Qui rido io (O Rei do Riso, 2021) de Mario Martone.
A estreia de Downton Abbey: A New Era (Downton Abbey: Uma Nova Era, 2022) vem anunciada como um regresso cinematográfico, “só nos cinemas”. Apesar de se tratar de uma alusão ao enredo do filme, não podemos deixar de reparar na ironia desta proclamação, com uma série de televisão a reivindicar os canais próprios do cinema, enquanto algum cinema – do cinema com “C” grande – se perde pelas plataformas de streaming.
Julian Fellowes pega na ideia que tinha já dado contornos ao argumento de Gosford Park (2001), de Robert Altman, trazendo as estrelas do cinema para o meio aristocrático inglês, um território extremamente agreste a este tipo de ofício e de celebridade (no filme de Altman operava o factor de estranheza adicional chamado Hollywood, sendo o produtor de Bob Balaban o cúmulo do desenraizamento). Há um enorme déjà vu na figura de Myrna Dalgleish e na piada feita com o contraste entre o look de estrela e a voz de bairro social, sendo ela uma personagem tirada a papel químico da Lina Lamont de Singing in the Rain (Serenata à Chuva, 1952). Sucede, porém, que, em termos de narrativa, tudo tresanda um pouco a filão esgotado. Problema n.º 1: as piadas intradiegéticas sobre o cinema como métier e como entretenimento acabam por ter um tempo de vida limitado, estando o filme muito dependente da qualidade das boutades que saem da boca de Maggie Smith (apesar de uma das melhores tiradas do filme, um jogo com a palavra “plastered”, não ser da sua autoria). Problema n.º 2: a história parece por vezes não fluir de forma escorreita, com demasiada exposição, ideias pouco convincentes e cenas pelo meio que não passam de breves flashes, numa costura de fraca categoria em contraste nítido com a opulência dos trapinhos que pudemos vislumbrar apenas por breves momentos. Ainda assim, fica o prazer de uma certa sofisticação e esporádica sagacidade, e o gostinho de ouvir citados nomes como Ronald Colman ou Clive Brook.
Daniela Rôla, 18 de Maio de 2022
Sexo, drogas e violência são temas que atraem uma abordagem sensacionalista por parte do cinema, assim como a luz atrai insectos voadores. É provável que ninguém se tenha lembrado de tratar a velhice e a demência de forma sensacionalista, e Gaspar Noé terá visto aí o seu filão. Um filme de que toda a gente se lembrará enquanto vê Vortex (2021), é o Amour (Amor, 2012) de Michael Haneke. As durações de ambos andam ele por ele, mas a sensação que o Haneke nos deixou foi a de ser um filme igualmente cruel, mas bastante mais sóbrio, e com uma agilidade narrativa superior (os filmes podem ser sobre velhos e senis, mas não têm de corresponder em estagnação de cenas, como se padecessem das mesmas enfermidades).
Noé apresenta-nos quase desde o início um split screen que quer significar as existências separadas de um casal que habita a mesma casa, à medida que a mulher (extraordinária Françoise Lebrun) vai perdendo o juízo. A tramontana do marido também não se recomenda: a ambicionar levar a cabo um livro sobre o cinema e os sonhos; e a catrapiscar as atenções amorosas de uma companheira de tertúlias pouco mais nova que ele. Estas bengalas ficcionais, como também aquela que diz respeito à vida do único filho do casal, um toxicodependente que não sabe como lidar com o quadro de desastre iminente na casa dos pais, até permitem que o filme ganhe algum fôlego, mas Noé deixa-se logo a seguir ficar refém de um acumular de cenas de género cinema do real, que mais não fazem que espectacularizar os sinais de decadência do quadro familiar.
Como corolário destas mais de duas horas de litania pela velhice desmemoriada, Gaspar Noé ainda mostra um sentimento bastante necrófilo em relação ao cinema, requintando-se com a máscara mortuária dos icónicos protagonistas (o homem do casal é interpretado pelo realizador italiano Dario Argento), e o enumerar de tudo o que acaba e que inclui a sétima arte nos seus variados suportes. Gostávamos mais do Noé explicitamente violento e niilista dos primeiros filmes. Este pingo de sentimentalidade soa a sonso ou deslocado.
Ricardo Gross, 18 de Maio de 2022
A questão central no novo filme de Kogonada é uma hipótese interessante: e se fosse possível reconstruir a vida de alguém através de pequenos instantes, vídeos de três segundos, momentos escolhidos pelo próprio para serem gravados (um por dia), seria possível ficar-se a conhecer essa pessoa, seria possível, através dos momentos que este escolhia registar, chegar a um conhecimento profundo dessa pessoa? E se esse alguém fosse afinal um robot (o Yang do título), e se as memórias criadas ao longo da sua vida fossem escolhidas por uma inteligência artificial, seria possível perceber as suas motivações, encontrar alguma humanidade nesses instantes e escolhas? After Yang (Depois de Yang, 2021) está no seu melhor quando Kogonada segue este caminho de espécie de filme-ensaio, quando compõe uma vida através de pequenos instantes efémeros, mas esta é apenas uma parte menor do filme, e Kogonada não parece acreditar nessa possibilidade como suficiente para segurar o filme só por si, criando em paralelo uma narrativa mais convencional, sobre a história de uma família a lidar com a perda da presença desse robot no seu quotidiano, como parte da história familiar.
Se no filme anterior, Columbus (2017), o que mais impressionava era não só o olhar inventivo de Kogonada na forma como utilizava o cenário para contextualizar uma história, e como acrescentava uma vitalidade emocionante a uma narrativa tradicional (um filho a enfrentar a possibilidade da perda do pai, e de uma filha que não quer sair de casa para não deixar a sua mãe fragilizada), aqui a história mais convencional serve apenas para esvaziar o filme de vitalidade. Colin Farrel e Jodie Turner-Smith interpretam um casal preocupado com o futuro familiar, e se poderia ser interessante equiparar a sua falta de emotividade e expressividade ao olhar neutro de um autómato (como se eles próprios fossem robots), ou a uma incapacidade sentimental generalizada que se desenvolverá no futuro, esta espécie de existência anestesiada tal como retratada apenas funciona para criar uma barreira e criar distância em relação ao espectador – ao que não ajuda uma fotografia bastante artificial-digital e um arco narrativo (do afastamento entre o casal depois da perda de um filho, por exemplo) bastante visto. Salva-se a aparição e a personagem interpretada por Haley Lu Richardson, uma espécie de interesse amoroso de Yang, mas de Kogonada esperava-se mais.
João Araújo, 18 de Maio de 2022
Top Gun: Maverick surge 36 anos depois do filme original (Top Gun – Ases Indomáveis, de Tony Scott) e é simultaneamente uma sequela e um remake deste. Tom Cruise tinha 24 anos e tem hoje 60. Na edição de Maio 2022 da revista Cahiers du Cinéma, alguém chama a atenção para o corpo inoxidável do actor americano, e essa promessa de eterna juventude é o grande milagre do novo filme, cuja promoção fez questão de destacar o treino militar do elenco que interpreta os pilotos de topo da Força Aérea encarregados de uma missão de altíssimo risco (dir-se-ia mesmo uma missão impossível), bem como o realismo das manobras que reduziram os efeitos especiais ao mínimo indispensável, mantendo-se o protagonismo até final, de regresso ao aconchego do hangar e do amor, por parte do capitão Pete ‘Maverick’ Mitchell (Tom Cruise).
Cruise alia-se uma vez mais a Christopher McQuarrie, seu parceiro que tão boa conta tem dado na colaboração de ambos, do primeiro Jack Reacher (2012) aos filmes da série Mission: Impossible (a começar pelo Missão Impossível: Nação Secreta, de 2015), e que é um profissional versátil que imprime a sua marca nos argumentos, produção e realização: sendo que em Top Gun: Maverick o realizador é Joseph Kosinski (o de Oblivion, de 2013, com Tom Cruise, entre outros títulos). E assim Top Gun: Maverick, mantendo intacto o espírito do filme original, atribui-lhe nesta segunda aventura uma espectacularidade que rivaliza com as peripécias enfrentadas por Ethan Hunt e a sua equipa.
Mas o elemento realista das proezas aéreas e a dimensão messiânica do rebelde aviador seriam menos extraordinárias se o filme de Cruise & Kosinski não tivesse a capacidade de nos fazer sentir “young at heart” durante duas horas e um quarto. É mais do que um sentimento de nostalgia. Este filme rejuvenesce-nos momentaneamente enquanto o vemos, e através desse efeito ilusório mais perfeito que qualquer proeza física ou tecnológica, sentimo-nos projectados na figura inoxidável de sorriso inolvidável que é a de Pete ‘Maverick’ Mitchell.
Ricardo Gross, 29 de Maio de 2022
Mario Martone (n. 1959) pode ter perdido para Paolo Sorretino (n. 1970) o ceptro do mais internacional dos cineastas napolitanos, mas ninguém lhe tira a dianteira no que respeita ao número de filmes realizados, que têm lugar naquela cidade. Martone sabe do que filma, e em se tratando de um homem com passado no teatro, imaginamos que poucos poderiam rivalizar com a sua bagagem para contar a história do comediante Eduardo Scarpetta (1853-1925). Com ajuda da Wikipedia consegue-se situar a acção do filme nos primeiros anos de 1900, período vizinho do tratamento paródico introduzido por Scarpetta em relação à peça La figlia di Iorio, de Gabriele D’Annunzio, que lhe valeu um processo em tribunal por plágio, que Scarpetta venceu, mas que o filme liga ao ocaso da sua relevância enquanto artista.
Mario Martone filma as histórias de Scarpetta no palco e nos bastidores, e também a atribulada vida privada do artista, com as suas três mulheres, e uma carrada de filhos legítimos e ilegítimos, que Scarpetta arranjou maneira de tornar reféns dos seus espectáculos, legitimando-os a todos no processo artístico, embora só reconhecendo a paternidade daqueles que tivera com a esposa oficial. Qui rido io é um retrato de um pater famílias, cuja personalidade seca tudo em volta, e que Martone encena com registos idênticos dentro e fora de cena. Não querendo discutir a relevância de Eduardo Scarpetta, parece-nos que se trata de uma personalidade e de um criador de difícil exportabilidade. O seu teatro revisteiro pareceu-nos mauzinho (compreensivelmente datado…), e o empenho dos actores no filme não transcende um nível de caricatura mesmo quando se trata de comporem personagens da vida real.
A popularidade e o talento de Toni Servillo, no protagonista, e a vitalidade do idioma napolitano fazem mais pelo projecto, que o verdadeiro interesse da pessoa e da história de Scarpetta, e do tratamento respeitoso no sentido de académico, com que Mario Martone os filma.
Ricardo Gross, 29 de Maio de 2022