De 4 a 8 de maio, em Tui, do outro lado da fronteira, junto a Valença do Minho, decorre, mais uma vez, o festival de documentário Play-Doc. À semelhança doutras edições, o maior destaque é dado aos programas retrospetivos – ainda que este ano volte a haver um filme português na mui restrita competição internacional do festival, com apenas seis longa-metragens, Terra que Marca (2022), de Raúl Domingues. Nesta edição, os cineasta em foco são Helke Misselwitz, Danny Lyon, Richard P. Rogers e António Campos, o “cineasta amador de Leiria”. Ao contrário doutras edição, não podendo estar presente no festival, resolvi destacar este programa dedicado a Campos em ano do seu centenário, ainda para mais quando será a primeira apresentação de algumas das novas cópias digitais produzidas pela Cinemateca Portuguesa (que está neste momento a terminar a digitalização integral da obra do realizador – que doou o seu espólio à Cinemateca aquando da sua morte). Este importante marco do ano cinematográfico português resultará portanto em dois textos, este, que agora se publica, dedicada à produção documental de António Campos na década de 1970, e, depois, outro sobre a sua produção ficcional (de curta e longa metragem) a ser publicado aquando da retrospetiva que o Curtas Vila do Conde lhe dedicará em julho deste ano.
Vilarinho das Furnas (1971) começa com uma série de planos de pedras roladas pelas águas do rio. Depois, um homem “nasce das pedras” (como o interpreta José Manuel Costa no ensaio «Filmes Selvagens», publicado no excelente catálogo dedicado a António Campos que a Cinemateca Portuguesa editou em 2000). Trata-se de um inusitado raccord que faz aparecer o narrador do filme como se se tratasse já de um fantasma. Essa aparição confere uma qualidade imaterial ao seu testemunho e de tudo aquilo que nos diz e nos explica sobre os “usos e costumes” daquela aldeia. Essa espécie de comunicação espectral é já o agouro da desagregação anunciada daquela comunidade, causada pela construção de uma barragem que inundará o vale e soterrará “sob o manto de água que lhe deu vida” (como se lê no cartão que encerra o filme) a povoação, as casas, os terrenos agrícolas e tudo mais que aquela gente tinha de seu. Esse paradoxo, que o filme explora, entre o registo do presente com a consciência de um desaparecimento no futuro próximo, é o que confere à primeira longa-metragem de António Campos essa dimensão de impotência politicamente implicada. Há, neste filme, uma espécie de fatalismo estóico que é, até certo ponto, a característica definidora do cinema de António Campos (pelo menos no que respeita à sua obra documental).
Mas regressando à abertura de Vilarinho das Furnas, após essa aparição fantasmática do narrador, a sua voz passa para um off onde permanecerá a maior parte do tempo. A imagem do narrador regressará esporadicamente, para conferir ao filme uma estrutura em capítulos, onde se abordam cada uma das facetas da dinâmica corporativa da aldeia (primeiro o sistema legal, depois as soluções rotativas para o trabalho agrícola e de pastoreio, por fim a mecânica das regas). Só que antes de começarmos a compreender a tipologia comunitária de Vilarinho, Campos propõe um processo de aproximação temeroso à aldeia, que principia pelo levantamento geográfico e pela análise antropológica que Jorge Dias havia realizado sobre essa mesma comunidade. É, portanto, uma aproximação que resulta já de um conhecimento prévio, e Campos denuncia isso através de uma jogo de zoom ins e zoom outs que ora apresentam imagens da aldeia (árvores, casas, paisagem), ora as entrecruza com diagramas, mapas e ilustrações. Desse vai-e-vem entre dois modos de representação (o fotográfico e o iconográfico) sobressai uma qualidade ensaística (construída essencialmente pela montagem) que acaba por pôr em causa as próprias descrições “científicas” da aldeia, questionando-as ou reduzindo-as à insuficiência dramática que as caracteriza.
Esse avanço e recuo face ao espaço da aldeia faz-se segundo um eixo (o eixo da câmara) num movimento retilíneo que estando fora procura o interior, e estado próximo procura o geral. Depois dessa montagem, Campos oferece um plano aéreo da aldeia. Uma avioneta circunda a povoação, e de lá filmam-se os terrenos e os telhados, como um todo. Aqui o movimento é circular e a câmara rodopia em torno da povoação, definido claramente os seus limites. Estes dois movimentos, um axial e o outro angular, materializam a própria relação do realizador com aquela comunidade e, de forma geral, daquela comunidade com o exterior. O circulo define um interior e um exterior, já o eixo marca a entrada e a saída nesse espaço. De fora está um olhar geral e indiferente (que reduz a aldeia a uma curiosidade insignificante, de onde vêm o Governador Civil e o Padre), de dentro estão os “vizinhos”, aqueles que pertencem à “união”, que participam da estrutura corporativa de Vilarinho. A esse respeito, é importante notar que Campos foi bastante mal recebido pela aldeia (permanecendo quase sempre “de fora”), sendo o seu ponto de acesso ao “interior do círculo” o tal narrador (Aníbal Gonçalves Pereira) que, nem de propósito, já havia sido expulso da comunidade dos vizinhos e, entretanto, havia sido reintegrado. Essa mesma instabilidade do narrador (estar dentro, mas também já ter estado fora) reforça a componente espetral que referia a princípio.
Até certo ponto pode dizer-se que Vilarinho é um filme de cerco, só que ao contrário dos filmes de Hawks: o realizador está “geometricamente” do lado dos invasores (ainda que emotivamente se coloque com os invadidos). Como se ouve a certa altura, “só a água nos tirará daqui! A força do povo é tal e estamos unidos de uma maneira que não sairíamos daqui por nada.” Esta força da união dos vizinhos está assente num princípio de exclusão (aqueles que não queiram participar da colectividade são condenados a uma espécie de excomunhão), exclusão que repele todos aqueles que procurem invadir a povoação (até mesmo aqueles que, cheios de boas intenções, como António Campos, pretendem deixar um registo do que foi – enquanto ainda é – aquele lugar). O final do filme é composto por sucessivos zoom outs da aldeia e das pedras roladas que abriam o filme, ouvindo-se na banda sonora um “vai desaparecer tudo”, para depois ficar apenas o silêncio – terrível – e as casas já esvaziadas de mobílias, de gente e até das madeiras do tetos. Essas imagens da aldeia já cadáver à espera de ser soterrada são assombrosas (em particular, fica-me um plano rasteiro que sobe os degraus de uma ruína, como se fosse a subjetiva de um animal abandonado).
O que espanta é a forma como Campos é capaz de traduzir formalmente, no filme, todas estas tensões e contradições, e de como muitas das suas soluções refletem ou comentam a própria natureza das relações comunitárias (que são o grande assunto da sua filmografia – em particular do seu trabalho documental). O recurso ao freeze frame (quase sempre usado aquando dos discursos do padre, como comentário à fixidez da igreja?), à montagem sucessiva de fotografias (lindíssima a sequência da vindima), ou às imagens em negativo (que surge muito próximo de um comentário do narrador em que afirma algo como “o mundo anda às avessas”) são opções tão lúdicas quanto líricas, através das quais Campos procura uma saída do âmbito restrito da etnografia ou da antropologia visual (movimento do qual não se pode retirar Campos, ainda que o seu cinema extravase, em muito, as premissas dessa abordagem).
Se Vilarinho das Furnas se construía ostensivamente sobre registos sonoros captados indiscretamente (as conversas com o Governador Civil – “não devem abrir muito a boca… devem estar agradecidos” – ou com o Padre parecem registos feitos de forma oculta), montando um contraditório dialético entre o povo e os decisores políticos e religiosos, em Gente da Praia da Vieira (1975), esse contraditório mantém-se, mas passa do off para o on e, por estarmos em pleno PREC, a balança do poder muda, e as figuras singulares (em especial o arquiteto) pouco podem face aos desejos do coletivo. A ironia está no facto de que a seta do progresso, que tudo apaga e destrói, agora é operada pelo povo e não pelos decisores. Isto é, antes os interesse económicos mataram Vilarinho, agora a luta de classes arrasou as “habitações pitorescas” da Praia da Vieira: mas independentemente dos motivos, a sina é sempre uma, o fim de todas as coisas.
Ao contrário de Vilarinho, que era um filme concentracionário, Gente é um filme altamente disperso, mas essa dispersão resulta do próprio sujeito do filme, que o título esclarece – reforçando, de certo modo, o lado “conceptual” dos filmes de Campos. Vilarinho das Furnas é sobre a aldeia homónima, Gente da Praia da Vieira não é necessariamente sobre a dita praia, mas sim sobre as suas gentes que, como é próprio das gentes, se movem e circulam. Por isso, também o filme é formalmente instável e disperso. Começa com imagens da primeira curta-metragem de Campos, Um Tesoiro (1958), filmadas na Praia da Vieira, que embora sirvam pelo seu valor histórico (e apesar de remontadas, e sonorizadas), preservam a sua qualidade ficcional e “surreal”, como lhes chamava Paulo Rocha. Pouco depois de uma passeio pela terra, acompanhando Quiné (colaborar habitual de Campos), que interpreta um papel duplo de encenador de teatro revolucionário e operário fabril, somos arremetidos para outra curta-metragem de Campos, A Invenção do Amor (1965), onde Quiné também entrava e cujo final havia sido, igualmente, rodado naquela praia.
Estes dois extensos momentos de “material de arquivo” ficcional são seguidos por um retrato da povoação (da pesca em particular), um discurso entusiasmado de Quiné sobre a luta jurídica dos pescadores contra o Estado (teatral e dramaticamente encenado na praia, “à volta de uma fogueira”, como se se tratasse de uma história de terror), a demolição de uma das barracas (com entrevistas para a câmara muito ao jeito do cinema revolucionário), uma entrevista ironicamente enquadrada ao arquiteto que havia sido responsável pela “preservação” da tradição habitacional dos pescadores [ele é filmado como figura boçal, encolhido por uma enorme biblioteca, completamente destacado da “realidade” – esta entrevista antecipa, por exemplo, o tom e a desfaçatez de Deus Pátria e Autoridade (1976), de Rui Simões], e ainda uma peça de teatro encenado por Quiné sobre as condições de vida daquelas gentes. Ou seja, nos primeiros minutos de filmes, apresentam-se pelo menos cinco registos diferentes. Esta polifonia instala o filme num território que é simultaneamente rememorativo, íntimo, político, teatral, revolucionário, direto, crítico, justiceiro, e temerário. E, como se isso já não bastasse, quando o “caos formal” já está instalado, o filme muda subitamente de ângulo, passa a ser a cores, e torna-se coeso e uno – algo que se manterá até ao final.
Esta inesperada agregação mimetiza, de novo, a própria reunião do sujeito do filme. Na primeira parte de Gente da Praia da Vieira, tudo é disperso porque o PREC avança em força e todo o país (em particular aquela praia) anda em rebuliço. Os pescadores já não têm muito peixe e são obrigados a procurar emprego na indústria, as casas serão outras, as tradições desfazem-se e refazem-se, e as pessoas dispersam. O filme traduz, formalmente, isso mesmo. Só que então, e por “milagre”, surge uma segunda aldeia, gémea da Vieira, composta por várias famílias de pescadores que haviam migrado da beira-mar para a beira do rio Tejo, Escaropim. Lá preservam-se as mesmas pitorescas casas de madeira e as mesmas tradições da pesca, só que ao contrário das “originais”, estas estão impecavelmente conservadas e as casas mantém a sua traça pictórica, cada qual com a sua cor viva (a mudança para película a cores é, por isso, altamente significativa). Escaropim é o que a Vieira havia sido: um microclima cultural que, por casualidade e reclusão, se manteve (até aquele momento) indiferente à linha do progresso.
Assim, para filmar a Vieira, Campos viaja para outra terra, a vários quilómetros de distância, para descobrir em Escaropim o que na tal praia já não existe. Se os contrastes fortes e a luz de verão podem remeter para um território idílico, Campos não cede, nunca, à tentação do panfleto, pelo contrário. Para que se tenha podido conservar o “património urbanístico” foi necessário que se mantivessem, igualmente, estruturas de poder proto-feudais. E aqui Campos regressa à mesma tipologia de Vilarinho, nomeadamente no modo como filma a única loja da aldeia onde se encontra o único telefone (que se quer público) e entrevista o lojista que se escuda em desculpas jurídico-burocráticas para continuar a explorar os pescadores, assim como o proprietário das terras [num depoimento tão alegre e displicente que me remete para o do latifundiário em Torre Bela, de Thomas Harlan, estreado também nesse ano quente de 1975]. Esta moeda de duas faces, onde de um lado está a preservação do património e noutro o conservadorismo e a manutenção do statu quo, é a razão de ser de Gente da Praia da Vieira e a demonstração cabal da habilidade e maturidade de Campos, capaz de percorrer esse terreno minado sem nunca colocar o pé em falso [nesse sentido, o filme partilha o mesmo dilema – ainda que de modos e tonalidades muito distintos – de Colonia e Vilões (1978), de Leonel Brito].
Só no último quarto de hora de filme é que regressamos à Praia da Vieira, agora a cores. O registo é próximo do de Almadraba Atuneira (1961), o mesmo espanto pelo poder do coletivo, onde dezenas ou centenas de pessoas (homens, mulheres e crianças) colaboram numa empresa comum e monumental, a pesca. Mas depois desse rejubilante esforço comunitário, desse muitos alqueires de carapau, o foco passa a ser, na última sequência do filme, o novo barquinho de pescadores, intitulado “Os Jovens”, composto e operado por uma nova geração (que se fizera adulta já em liberdade – ou praticamente), cheia de genica, alegria e confiança no futuro.
Eu, que nunca tinha visto o filme (e que o pude agora ver na nova e belíssima cópia digital produzida pela Cinemateca Portuguesa no âmbito do projecto FILMar), senti os olhos marejarem-me quando aqueles rapazes (que podiam bem ser os meus pais, ou os meus avós) conseguem, por fim, arrastar as redes para o areal, e comemoram com um litrosa fresca ali mesmo, à beira-mar. E, nem de propósito, ouvi no outro dia o realizador Gonçalo Lamas afirmar: “há filmes que envelhecem bem, como o vinho do Porto, e outros que são uma cerveja bem tirada num dia de verão – uns não são melhores que os outros”. Os filmes de António Campos (pelo menos estes documentários dos anos 1970, e em particular este Gente da Praia da Vieira) conseguem ser a duas coisas: envelheceram extraordinariamente bem (ganharam texturas e aromas vários), mas guardam a frescura estaladiça de um fino bem fresquinho.
Entre um filme e outro, isto é, entre Vilarinho e Gente, surge Falamos de Rio de Onor (1974). Digo “entre”, porque é realizado cronologicamente entre um e o outro, mas também porque nesse filme há, de facto, uma posição intermédia, que serve de ponto de ligação entre os outros dois filmes. O primeiro filme era sobre uma aldeia indivisível, construída sobre o signo da união, o último, sobre duas povoações unidas pelo sangue e pelos costumes das gentes mas separadas por vários quilómetros. Pois bem, Rio de Onor é sobre uma “ex-aldeia-comunitária”, à imagem e semelhança de Vilarinho (aliás, o filme parte mais uma vez, como acontecia em Vilarinho, de um livro de Jorge Dias, Rio de Onor, comunitarismo agro-pastoril) onde todas as regras de redistribuição e todos os sistemas de exclusão garantiram o definhamento da povoação. Isto é, três anos depois, e numa povoação raiana, António Campos descobre como a rigidez do sistema corporativo que o havia excluído na rodagem de Vilarinho acabou por excluir muitos dos próprio onorenses, obrigados a emigrar. E com a sangria das gentes novas, toda aquela organização comunitária deixou de ser sustentável.
Se Vilarinho era um círculo fechado (morto, mas hirto), Rio de Onor é uma forma geométrica que se rompeu na sua inflexibilidade. E, por isso mesmo, é também uma aldeia agora aberta ao exterior, desejosa daqueles que a desejam. Campos foi muito mais bem acolhido pelas pessoas, e todo o filme transparece essa cumplicidade. Em certa medida, Rio de Onor constitui o futuro inevitável de Vilarinho, caso este não tivesse sido inundado. E sendo o futuro de Vilarinho, é o passado da Praia da Vieira, isto porque sendo uma aldeia raiana está dividida geograficamente em duas (o lado português e o lado espanhol – ao qual a Guarda Civil não permite que Campos aceda), mas culturalmente unidas por uma mesma cultura e por um dialeto comum (em vias de desaparecimento). Nesse sentido, o título é, mais uma vez, bastante significativo: Vilarinho filma a aldeia, Gente filmas as gentese Falamos de Rio de Onor assenta na fala, na língua, na conversa, na comunicação.
A introdução de uma “turista de Lisboa que vai passar uns dias de férias da Rio de Onor”, como catalisador da ação, é uma opção narrativa que se funda na ideia diálogo (funcionando a atriz como um evidente alter ego de Campos). Ela chega e fala com as pessoas, e as pessoas falam com ela, explicam-lhe e confessam-lhe os seus problemas e dificuldades. Ao contrário do narrador de Vilarinho, que falava num só sentido (de “dentro do círculo” cá para fora, através do “eixo da câmara”), aqui a comunicação é feita de igual para igual. A figura da turista ocupa o espaço do plano com o mesmo nível de importância das pessoas (ainda que quase sempre de costas para a câmara), e estas dispõem-se diante dela, ora sentadas no chão, ora encostadas a um muro, ora de pé numa sala, e trocam considerações sobre a aquela localidade (há até um momento em que já nem é preciso recorrer à figura da turista e duas senhoras, com os seus molhos de palha às costas, sentam-se diante da câmara e refletem sobre as agruras da nova geração, obrigada a emigrar).
A centralidade da fala é reforçada pela “aparição” (outra, também ela um tanto ou quanto fantasmática) do próprio António Campos, que surge, no final do filme, proferindo diretamente para a câmara o título, “Falamos de Rio de Onor”. Esta necessidade de dar o contracampo derradeiro (o do próprio realizador, dono do olhar) e que este se faça através da palavra dita é a confirmação que de o diálogo e a língua são o centro dramático e estético de Rio de Onor. Daí que seja da máxima ironia que a sequência mais longa do filme seja um monólogo, do padre, que na homilia cita profusamente o livro de Jorge Dias e advoga um regresso à organização comunitária de Rio de Onor, como quando o antropólogo a tinha conhecido, no início dos anos 1950. E se a ironia pode passar despercebida (porque a oratória do padre é competente – ainda que cheia de contradições), numa revisão do filme apercebi-me que enquanto ele fala, já Campos introduziu, subtilmente, a faixa sonora do plano que lhe cortará o pio, o som de um machado que, golpe a golpe, corta um castanheiro grosso e altaneiro. As castanhas caem ao chão, e logo depois toda a árvore. Novo corte e já vai o carro de bois cheio de tarolos e entra uma narração que entoa um poema onde se ouve a estrofe “que feliz cadáver que até cheira bem”.
Mas, claro, o que salta à vista em Rio de Onor são os planos das cearas, com aquela mulher que amamenta o recém nascido filmada à Pudovkin, e, depois, a sequência do nascimento do bezerro, entrecortada com aqueles extraordinários grandes planos do olhar espantado de uma criança (que têm a intensidade de um Flaherty). Só que tudo sem nunca realmente citar qualquer um desses realizadores (como se Campos ali tivesse chegado por sua própria inspiração). No fundo, aqui revela-se, de forma clara, a tese de José Manuel Costa de que o cinema de Campos existe alheado de todas as correntes numa “exterioridade a um tempo ou a uma escola cinematográfica” (mas uma exterioridade participativa, porque os filmes de Campos são, também, muito agarrados ao momento em que foram feitos, à realidade que testemunham e, por vezes, transfiguram). A sua formação autodidata, a sua exclusão do sistema de produção e do circulo (outro) do Novo Cinema, a sua diferença de classe, a sua reclusão geográfica e a sua postura moral, tudo isso favoreceu a construção de um obra verdadeiramente independente (a todos os níveis) e amadora (em todos os sentidos).
E muito embora o seu cinema e a sua atitude tenham sido mal compreendidas à época, certo é que o lastro que António Campos deixou para o cinema (documental) português é impossível de desmerecer. Ao ver ou rever estes filmes dos anos 1950, 60 e, especialmente, 70, não pude deixar de me ir recordando de vários outros realizadores, de gerações posteriores, que não sendo herdeiros diretos, muito devem ao cinema de Campos (mais até do que de António Reis e Margarida Cordeiro – que deixou mais lastro nos ficcionistas – e certamente mais que Ricardo Costa, Leonel Brito, Rui Simões, Noémia Delgado, Manuela Serra, Fernando Matos Silva ou Manuel Costa Silva, tudo documentaristas particularmente ativos nos anos 70 e 80). A filiação mais óbvia está, naturalmente, no cinema de Catarina Alves Costa [que estudou a obra de Campos e realizou o documentário Falamos de António de Campos (2009)], especialmente nos seus primeiros trabalhos do final dos anos 1990. Depois, todos aqueles que filmaram a submersão da Aldeia da Luz, aquando da construção da barragem do Alqueva, são devedores de Campos, em particular o filme sobre a “aldeia gémea” dessa, por Catarina Mourão. E até que ponto a “auto-recoreografia” dos primeiros filmes em Gente da Praia da Vieira não antecipa a mesma opção nos filmes finais dos amigos Paulo Rocha e Manoel de Oliveira? E o dispositivo “conversacional” de Falamos de Rio de Onor não tem qualquer coisa do cinema de Paulo Carneiro?
Mas, claramente, o ponto de contacto mais forte do cinema de Campos com o cinema português contemporâneo encontra-se na obra de Manuel Mozos. Muitos dos filmes de Campos são (ou acabaram por ser, de forma retospetiva) registos de um desaparecimento. É o caso da Almadraba Atuneira, que filma a última companha do atum feita a partir da Ilha da Abóbora (no Algarve), que seria engolida definitivamente pelo mar no inverno seguinte; até certo ponto isso acontece (como já referi) com Um Tesoiro e A Invenção do Amor, recuperados em Gente como forma de “ilustrar” o que havia sido aquele lugar até ao período da revolução; ou Leiria 1960 (1960), que seria igualmente recuperado num filme posterior, mas que retrata a cidade natal do realizador no ano do título segundo as estratégias visuais e narrativas das sinfonias urbanas dos anos 1920 ou 30, isto é, como se tudo aquilo estivesse desaparecendo no próprio ato de filmar. Até certo ponto o cinema (documental) de Mozos, em particular Ruínas (2009) e, agora, Atrás dessas Paredes (2022), são uma espécie de resposta, ora desiludida ora cínica, ao cinema (documental) de Campos, no que toca a esse fascínio triste pelos “cadáveres que até cheiram bem”. Também Mozos é um cineasta do desaparecimento e é no retrato da decadência que ele(s) vê(em) florir uma memória ou brotar a acidez da repugnância.