E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
cada instante o que perco e não vem mais.
António Franco Alexandre, em Poemas
Galardoado com o prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes, onde foi apresentado em 15 de Maio de 1979, o filme Days of Heaven (Dias do Paraíso, 1978), de Terrence Malick, desviando-se deliberadamente do padrão narrativo ditado pela produção de Hollywood, por um lado, suscitou inicialmente reservas, mas foi depois ganhando progressivamente o apreço da crítica, por outro lado, não deixou de constituir um fracasso comercial a que se seguiu, por parte do seu realizador, um afastamento da produção cinematográfica que durou vinte anos.

Se bem que tenha havido explicações contrastantes sobre os motivos desse “desaparecimento de cena” de um realizador que com os dois primeiros filmes conseguira afirmar os traços determinantes do seu estilo, o testemunho de Nick Nolte contém, talvez, a indicação que vale a pena reter perante tal circunstância, ao afirmar que “Terry é o exemplo perfeito de alguém que cultiva seriamente a sua vocação, como uma coisa preciosa. É mais que óbvio que não se ganha para viver do cinema, tendo feito três filmes em vinte e cinco anos. Do ponto de vista dele, se fosse possível ganhar para viver do cinema, a sua criatividade ficaria sob tal pressão que acabaria arruinada. É pela mesma razão que não se expõe aos media“[i].
Ao ser “frequentemente descrito (como Kubrick) como um cineasta essencialmente europeu, com ritmo narrativo, estilo visual, e opacidade temática mais próxima do cinema artístico continental do que da nova Hollywood”, nem sempre fica bem evidente a importância do seu contributo para a renovação do género épico no cinema dos anos 70 e a singularidade da perspectiva adoptada em Dias do Paraíso relativamente ao tratamento de “certos mitos nacionais ― em particular, a migração para o oeste, o sonho de sucesso pessoal e o choque das economias agrária e industrial”[ii].
A acção do filme decorre numa época e ambiente bem identificados desde o início. Em 1916, o operário de fundição Bill (Richard Gere), a sua irmã Linda (Linda Manz) e a sua amante Abby (Brooke Adams) saem de Chicago para se juntarem aos trabalhadores agrícolas sazonais que se deslocam para as colheitas no Panhandle do Texas. Perante a dureza do trabalho e vendo isso como uma oportunidade para sair da pobreza, Bill impele Abby a ceder aos avanços do dono da exploração agrícola (Sam Shepard), um rico fazendeiro que eles sabem sofrer de doença incurável, com quem ela se casa, sem, no entanto, se afastar de Bill. Carregado de referências bíblicas, a começar pelo título que provém de uma citação do Deuteronómio, 11:21 (“Serão como dias de céu sobre a terra”), nas peripécias que se seguem repetem-se episódios que evocam a expulsão do Paraíso e o exílio de Caim.

De entre as qualidades formais que críticos e estudiosos relevaram no trabalho de Malick, “a grandiosa representação da natureza e o emprego da narração subjetiva em voz off“[iii] serão, talvez, as que mereceram maior atenção.
O filósofo Stanley Cavell que nos anos 60 foi, em Harvard, professor de Terrence Malick, refere-se a Dias do Paraíso em termos que não deixam dúvidas sobre o seu juízo: “Tem-se a impressão de nunca ter visto verdadeiramente a cena da existência humana ― que poderemos designar como a arena entre a terra (ou os dias) e o céu ― inteiramente concretizada desta forma, antes, no cinema” [iv].
Tal afirmação compreende-se melhor tendo em conta que dois dos conceitos mais importantes de Cavell “parecem ter tido um grande impacto na produção cinematográfica de Malick: a presença do mundo no filme através da nossa ausência dele e a correspondência entre filme narrativo e mito”[v], servindo, por outro lado, para sublinhar as qualidades “visionárias” ou “poéticas” frequentemente observadas na sua obra.
Contudo, se o debate continua a girar em torno do que fazer com os seus “cumes de beleza”, para voltar à expressão usada por Cavell, pretendendo avaliar-se “se a iluminação esmerada, as composições pictóricas, os fundidos oníricos e os fluentes movimentos de câmara, combinados com a grandeza épica e o tom elegíaco, compensam suficientemente a elementaridade da narrativa, a bidimensionalidade das personagens e o consequente distanciamento emocional do público”[vi], há quem seja partidário da adopção de “uma postura mais radicalmente esteticista, argumentando que os filmes de Malick são antes de tudo exercícios de poética cinematográfica, explorando as possibilidades do estilo fílmico dentro de formatos narrativos altamente abstratos, e, portanto, não devem ser vistos como dramas convencionais ou como narrativas filosóficas, mas antes como ousados exercícios experimentais em forma cinematográfica”[vii].

Como se tal precisasse de alguma confirmação, os filmes seguintes vieram demonstrar que entre os recursos do seu estilo, a voz narrante desempenha um papel de grande relevo, “um uso pontual da narração, que muitas vezes não corresponde com o que vemos no ecrã, oferecendo um contraponto complexo ou uma autorreflexão ambígua, em vez de uma revelação psicológica precisa dos estados subjetivos da personagem”[i], acção que, em Dias do Paraíso, é confiada à pequena Linda.
Surgindo pela primeira vez na última imagem fixa, após as vinte e quatro outras sobre as quais corre o genérico de início, pertencer-lhe-á igualmente a última imagem do filme. Assim, por um lado, pode afirmar-se: “Linda é triplamente oprimida ― em termos de classe, idade e sexo. Coloca-se à margem dessa luta, observando e comentando, ou não, conforme a sua escolha. Através do seu comentário fragmentário e parcial, o espectador é colocado perante um mundo que parece estranho e inexplicável, funcionando muitas vezes as suas palavras como um contraponto em relação à narrativa e em contraste com a componente visual”[viii]. Por outro lado, tendo em conta que se trata de um filme, marcado por rupturas inexplicáveis que se inscrevem numa temporalidade après-coup (ou, porque não dizer mesmo que, tratando-se do Paraíso, não há outra forma de o conceber senão como perdido), o a posteriori como temporalidade própria da atribuição de sentido joga-se em grande medida no uso dessa voz off.

Como João Bénard da Costa o diz com absoluta precisão: “E nesse off nos é dito (e nós, além deles, somos os únicos a saber) o grande in do filme: Bill e Abby não são irmãos, mas amantes. E uma das apostas mais radicais de Days of Heaven é a dissolução e a ablução do incesto: não são irmãos, mas é como se fossem”[ix], sendo que aí estão também as premissas em que assenta a justificação para, formando Bill e o Fazendeiro um par de personagens sem espessura, sem passado ou traços característicos, poderem ser irmãos, senão de sangue, de espírito, destinados a ocupar o lugar de Caim e Abel, ao passo que a Abby e a Linda, tendo começado como crianças trabalhadoras, cabe, enquanto sobreviventes, tornarem-se, no final, verdadeiras irmãs.
Há no filme duas épocas de colheitas, sendo que os dias da segunda não são os do céu, mas os do inferno. A praga de gafanhotos devoradores, uma vez mais de clara ressonância bíblica, a paisagem contaminada pela desordem cósmica, terminando no incêndio das searas, as mortes do Fazendeiro e de Bill constituem os episódios mais marcantes. Como sempre, Terrence Malick não se detém no meio, prefere o Éden antes e depois da queda.

Em duas entrevistas, aliás as únicas, concedidas por Malick na sequência da saída do seu primeiro filme Badlands (Os Noivos Sangrentos, 1973), podemos ler, com ligeiras diferenças, as seguintes afirmações, em que encontro indicações sobre como lidar com o segundo tempo, o tempo do paraíso perdido.
“Holly [em Badlands] é de certa forma a personagem mais importante; pelo menos tem-se um vislumbre de como ela é. E eu gostava mais de personagens femininas do que masculinas; elas são mais abertas às coisas ao seu redor, mais demonstrativas”[xi].
“Na adolescência é-se mais aberto. Há coisas em que se pensa e que depois se prefere esquecer. (…) O que me interessou [em Bonnie & Clyde] foi como os assassinatos comprometeram a jovem. Hoje é difícil comprometer uma jovem. Não estamos já numa época como a de Jane Austen, em que ter um caso era o suficiente para comprometer uma jovem. Hoje é preciso pelo menos um assassinato para obter o mesmo resultado: ela perde o equilíbrio”[xii].
Também Stanley Cavell revela no prefácio de The World Viewed uma forma de ver o segundo tempo, ao dar-se conta de uma mudança inesperada na sua forma de lidar com a experiência cinematográfica de que o seu livro iria ocupar-se. Com efeito, no momento em que, diz ele, “dispunha das palavras em que podia confiar para dar conta da minha experiência do cinema, tive a impressão que era a altura de adoptar um procedimento sistemático, para o que devia encontrar meios de visionar e revisionar uma boa quantidade de filmes…”. Não foi, contudo, esse o caminho que depois seguiu perante a constatação de que “via agora menos filmes do que já vira antes, e que queria ver ainda menos, ao mesmo tempo que as recordações dos velhos filmes e dos amigos com os quais os tinha visto, não deixavam de se impor”[xiii].
O enigma que subjaz ao que do primeiro tempo “se pensa e que depois se prefere esquecer”, segundo Malick, e ao que justifica a confiança no “desejo de uma linguagem comum com o cinema” sustentado, para Cavell, na experiência fílmica passada, encontra nas palavras deste último, sobre como lidar com as recordações, uma via aberta: “interesso-me tanto pela forma como uma recordação se perdeu, quanto me interesso pela razão pela qual as recordações que permanecem se produzem no momento em que se produzem”.
Acrescento, ainda assim, uma outra réplica. Num texto de extraordinária acuidade, Elena Ferrante, percorrendo o caminho de Dante, mostra que muito cedo aprendeu que “sem amor, nenhuma saudação de ninguém e, por conseguinte, nenhuma salvação nossa, tanto no céu como na terra, era possível para nós, pelo que expormo-nos, corrermos o risco, era inevitável”. A decisiva transformação da hierarquia do feminino operada por Dante, que pode ser sucessivamente observada nas Rimas, na Vida Nova e na Divina Comédia, através dos traços constituintes da beleza, ou das competências susceptíveis de embelezar a mulher, acompanha a sua invenção poética dirigida à sua criação, a gentilíssima Beatriz, cometido a “dizer dela aquilo que nunca foi dito de nenhuma”. Não bastava, no entanto, “uma violenta atracção pelo feminino, uma acentuada sensibilidade de mulher” para levar a cabo semelhante empreendimento. Como Elena Ferrante acrescenta, “a nova hierarquia do feminino baseada na capacidade de compreender” encontrará a sua mudança radical, ultrapassando a distinção “pela beleza e pelo silêncio”, ao fazer Beatriz “sair do mutismo” dando provas, na Divina Comédia, de um saber fora do comum e de uma autoridade indiscutível: “nos modos como fala é amante, mãe e, surpreendentemente, almirante”. E se é de uma costela sua que Dante extrai “o possível das mulheres”, imaginar-se Beatriz foi certamente um risco e a salvação[xiv].
[i] Alberto Crespi, ed., «Lavorare con Malick. Conversazione con quattro interpreti», Cineforum, n. 382 (1999): 12.
[ii] Lloyd Michaels, Terrence Malick (Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2009), 2, 41.
[iII] Michaels, 6.
[iv] Stanley Cavell, La projection du monde: Réflexions sur l’ontologie du cinéma, suivi de Supplément à La projection du monde, Nouvelle édition (Paris: Vrin, 2019), 245.
[v] Michaels, Terrence Malick, 15.
[vi] Michaels, 40.
[vii] Robert Sinnerbrink, Terrence Malick Filmmaker and Philosopher (London and New York: Bloomsbury Academic, 2019), 18.
[viii] Sinnerbrink, 36.
[ix] Anne Latto, «Innocents Abroad: The Young Woman’s Voice in Badlands and Days of Heaven, with an Afterword on The New World», em The Cinema of Terrence Malick: poetic visions of America, ed. Hannah Patterson (London and New York: Wallflower Pres / Columbia University Press, 2007), 94–95.
[x] João Bénard da Costa, «Days of Heaven / Dias do Paraíso (1978)», em Escritos sobre Cinema, vol. 4.o, Tomo I (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2021), 318.
[xi] Michaels, Terrence Malick, 104.
[xii] Michel Ciment, «Entretien avec Terrence Malick», Positif, n. 170 (Juin de 1975): 31.
[xiii] Cavell, La projection du monde, 28.
[xiv] Elena Ferrante, «A Costela de Dante», em As Margens e a Escrita, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2021), 89–110.