- Ela acabou de receber notícias do seu amante e está a esculpir as iniciais dele na árvore. - Ela parece triste. -Acho que parece determinada. Julie concorda. - E muito apaixonada. - Muito apaixonada. The Souvenir (2019)
Será talvez melhor começar por dizer que, aos meus olhos, o cinema de Joanna Hogg é a epítome de tudo o que diz respeito ao que fica por dizer nas relações humanas, porque se concentra em nos mostrar aquilo que não devíamos estar a ver, aquilo que não está a contar com a nossa atenta presença. Existe, no entanto, uma certa tendência para categorizar o seu cinema enquanto contemplação de privilégio, o olho dos espaços ocupados pela classe média alta. E muitos poderão ser aqueles que olham para o seu cinema através deste funil – não os julgo -, mas tenho que insistir no ampliar da experiência que cobre o desconforto diário que é estar entre pessoas, e que transporta o que diz respeito ao cordão umbilical das classes sociais para uma comunicação bem mais universal, a da estética do realismo e o sentimento que dele deriva. Como caramelo toffee, cola-se ao céu da boca e mostra-nos como podemos ser lidos por outros, em filmes que aparentam ter sido feitos para cada um de nós, individualmente.
Em 2017, uma conversa com amigos jornalistas de cinema durante o BFI London Film Festival surgiu sobre a natureza do cinema inglês contemporâneo. Estacionados na rua Villiers, à espera de mais uma projecção no Embankment Garden Cinema, chegávamos à conclusão unânime de que para além de Mike Leigh, só Joanna Hogg vislumbrava as nuances desajeitadas resultantes da fricção entre humanos com tanto ímpeto, e em tempo real no ecrã. Nesta altura, Hogg não fazia cinema desde 2013, e ainda que The Souvenir (2019) já deveria estar nas cartas, nenhum de nós tinha como saber que tal prenda nos seria oferecida dois anos depois. Da realizadora falávamos regularmente, em nome do trabalho que realizava na cidade de Londres juntamente com Adam Roberts através do colectivo A Nos Amours (amantes de Maurice Pialat) fundado pelos dois, e dedicado à programação, promoção e compreensão de cinema potente, mas ignorado. Três longas-metragens, de 2007 a 2013, tinham sido suficientes para Hogg apoderar-se de uma atmosfera impossivelmente inglesa: áspera e gélida à distância, mas tão delicada se perto dela o suficiente.
A história que se expande entre os seus dois mais recentes filmes, The Souvenir (2019) e agora The Souvenir Part II (2021), marcou um revirar na sua até ali escassa filmografia. Por um lado, encontrou um público muito vasto e heterogéneo, que há muito a procurava sem saber. Por outro, estende a comunicação que fazia através de mise-en-scène, edição e enquadramento para um formato meta-textual obsessivamente autobiográfico – houve uma verdadeira reconstrução do passado de Hogg para os filmes; até os sets, mas não só, foram calculados segundo a sua imagem real, palmo a palmo. Este encontro vulnerável com uma ideia do passado estica o seu já muito curioso processo de direcção de actores e eleva-o a um outro nível. Na falta de um argumento tradicional, os seus actores trabalham segundo fotografias e pedaços de diálogos, dando azo a um ambiente preparado para que a improvisação e experimentação possam ocorrer a qualquer momento. Na criação de uma versão do que pode ser chamado de realidade, aberta a alterações, Hogg expõe-se então ao processo de re-experienciar a verdade de eventos pessoais através das palavras e acções dos seus actores. Nestes dois filmes, viajamos com ela pelo seu crescimento ascendente, de assistente de fotografia para estudante de cinema até à realizadora de televisão e de cinema, que conhecemos agora. Mas a meta-experiência não acaba aqui. É importante referir também que não são só os seus objectos de uma vida passada que ocupam o set. A protagonista, Julie Harte, é interpretada por Honor Swinton Byrne, afilhada de Hogg e filha de Tilda Swinton, que conheceu a realizadora no colégio interno para raparigas, West Heath. This is a family affair.
A ambição de Hogg em perseguir o gesto humano, como as pessoas ocupam espaços diferentes e como se movem e crescem dentro deles, é afinal um dos motores da verdade, seja lá esta qual for.
The Souvenir Part II exacerba ainda mais esta matrioska, fundida em demasiadas caixas, todas de tamanhos diferentes. O continuar da história dobra-se num filme-dentro-de-um-filme de forma mais assertiva, porque estrutural. O primeiro é o objecto-lembrança que é o filme-tese de Julie realizado nesta segunda parte, ao qual a jovem dá-lhe o nome de The Souvenir. O segundo o objecto-lembrança que é o filme de Hogg e como este se deita na lembrança de Julie, a Joanna Hogg de Byrne. Na sua essência, está a intelectualização da vida dramatizada no filme de Hogg como é lembrada, enquanto dentro dele a jovem Julie tenta, também ela, realizar um filme baseado em eventos reais. Mas não acaba aqui. Rever a primeira parte relembra que, na origem do título destes filmes, está um segundo significado que se espalha sobre estes como uma sombra. O nome dos filmes faz alusão à obra de arte de Jean-Honoré Fragonard, The Souvenir (1778), que figura uma mulher num luxuoso vestido de cetim cor-de-rosa, Julie D’Etange, a esculpir as iniciais do seu amante numa árvore. No filme, Julie (não é uma coincidência) sente-se atraída pela obra. Mais tarde, esta vem a tornar-se um símbolo do tempo passado com Anthony (interpretado pelo brilhante Tom Burke), o seu amante e um dandy viciado em heroína. Mais curioso é ainda que a obra de Fragonard é, por sua vez, a destilação de uma cena retratada e retirada do livro de Jean-Jacques Rousseau, Julie (1761). Ou seja, é caso para dizer que, no universo criado por Hogg, onde tudo tem uma razão de ser e cujas pontas acabam sempre fechadas, seja narrativamente ou de forma mais figurativa, este vazar parece imparável. Significados são emprestados e conduzidos para dentro de outras obras como num comboio com várias carruagens, interligadas entre si, sem destino em vista.
Com isto, é importante clarificar que Joanna Hogg nunca procura documentar. Tal como a sua personagem afirma a uma certa altura, no início da primeira parte desta história, o objectivo é realizar ficção através da realidade. No caso de Hogg, auto-ficção. A aprendizagem encontra-se algures entre a experiência de vida do artista e a experiência daquilo que o artista tenta filmar. Quando deixamos Julie no primeiro filme, Anthony faleceu (muito provavelmente de uma overdose) e o olhar de Julie é, para sempre, alterado. No início de The Souvenir Part II, esta está paralisada, sem saber o que fazer com a recordação agridoce do seu amante. Enquanto luta contra a dor da perda, avança com o realizar do seu filme de final de curso, com um argumento sobre a relação tóxica entre eles, mesmo depois de este ter sido reprovado pelos seus professores. Falta de profissionalismo é a razão dada. Ainda no mesmo apartamento em Knightsbridge e ainda a frequentar alguns dos lugares onde a tínhamos antes visto com ele, como o The Grand Hotel, a sua mágoa e suspeita de ter funcionado como um veículo para o vício de Anthony atormentam-na. Julie necessita de aceitar o facto de que no cerne da sua relação, a relação que espelhava tudo à volta dela e que tanto a veio a definir, estava uma Julie que não tinha como confrontar o seu parceiro, que lhe era, essencialmente, um estranho. Dessa falta de poder advém a tragédia que faz qualquer um saltar da juventude para a idade adulta. Mas aqui a tensão de tal movimento pós-tragédia, que quer estabelecer Julie dentro de si mesma, ocorre durante o processo de realização do seu filme-tese, um já habitual braço-de-ferro com a sua auto-confiança. Nele, ela e Anthony são representados por outros alunos da escola de cinema que não conseguem compreender os personagens que interpretam.
“Não podes só ver tal coisa acontecer e não falar sobre isso”, protesta a sua colega, actriz no filme (Ariane Labed), a interpretar uma versão de Julie sem saber ainda. Esta quer ajudá-la a concretizar a versão de eventos em mente, mas interpreta falta de empenho no projecto onde um enterro de forma bem literal está a ser realizado. Frustrada, e sem saber como mais a convencer de que é possível não se saber que o misterioso parceiro é essencialmente um toxicodependente, Julie sussurra-lhe de que foi assim que aconteceu na vida real. “Foi assim que eu o fiz, foi assim que aconteceu. Por isso não digas nada. Tu não disseste nada.” A rapariga fica sem saber como reagir. A produção do filme torna-se tempestuosa.
Tal passagem continua a levar-me de volta ao momento em que, numa entrevista, perguntei à realizadora francesa Mia Hansen-Løve se achava que a protagonista no seu mais recente filme, a meta-narrativa Bergman Island (A Ilha de Bergman, 2021), atinge um equilíbrio enquanto mãe e escritora, ao que a realizadora me perguntou a minha opinião primeiro, em vez de responder logo. No seu silêncio inicial e depois na realização da sua pergunta de volta para mim, diz-me sem dizer de que falávamos agora de Mia, mulher e mãe, e não só de Mia, realizadora. Eu digo-lhe que sim e ela sorri, deitando os olhos em qualquer outro sítio menos nos meus. São estes momentos do que fica por dizer, anunciar e denunciar que definem o universo-cebola do artista e sua composição. E se The Souvenir se revia no crescer de Julie, face à distância e constante mentira de um primeiro amor, o mais ardente de todos, The Souvenir Part II é uma viagem até à compreensão de Julie enquanto artista, e como a artista e a mulher se acabam por misturar da mesma forma que a realidade e a construção dela. No final de The Souvenir Part II, Julie já não está interessada na vida como ela acontece, mas, em vez disso, fica-se pela vida imaginada, tida como real. Não é isso que ela é sempre? A ambição de Hogg em perseguir o gesto humano, como as pessoas ocupam espaços diferentes e como se movem e crescem dentro deles, permanece um dos motores da verdade, seja lá esta qual for. E a realizadora injecta algum desse naturalismo no grão da película, ainda que a sua verdadeira pureza já se encontre no próprio acontecer do objecto.
Esta potência, quando completada pela imagem de Fragonard, à qual regressamos uma e outra vez durante The Souvenir e The Souvenir Part II, recorda o princípio do funcionamento do cinema enquanto cápsula.
Estes dois filmes juntos – um necessita do outro da melhor forma possível -, desenham-se numa figura em 3 (sentam-se sempre em três momentos-chave) e oscilam entre as ondas do vício, da classe média alta, da criação artística e da percepção tida e alterada que todos temos uns dos outros, e especialmente de quem somos e de quem procuramos ser. “És um ser humano com vida para viver. Esse é o teu trabalho”, diz-lhe a terapeuta. Ela ainda está a tentar entender como é este viver da vida se desenrola exactamente. Mas uma coisa é certa: todos nos tornamos uma parte daqueles que amamos. Hogg certamente também o será. Se tal oportunidade fosse alguma vez proporcionada, eu programaria o perfeito filme de Dorothy Arzner, Merrily We Go To Hell (Quando a Mulher se Opõe, 1932), como complemento para esta história-recordação. Joan acredita no amor e como este transcende todas as coisas. Até o alcoolismo de Jerry, o marido. Tal como Anthony, Jerry comete a pior crueldade de todas: esconde o seu íntimo de quem o ama mais. Joan aprende, como Julie nunca aprendeu, e acaba por desistir dele. O amor dela existe mais rapidamente aí, nessa resposta.
Esta potência, quando completada pela imagem de Fragonard, à qual regressamos uma e outra vez durante The Souvenir e The Souvenir Part II, recorda o princípio do funcionamento do cinema enquanto cápsula. O cinema-objecto e o objecto apresentado dentro do cinema. Em In the Mood for Love (Disponível para Amar, 2000), de Wong Kar-Wai, o amor nunca revelado entre os protagonistas é segredado para dentro de um templo e tapado com barro. E em A Ghost Story (Sombras da Vida, 2017), de David Lowery, M deixa um papel com uma nota escrita numa fenda da parede da casa onde viveu com C, antes de lhe passar tinta por cima e a abandonar para sempre. É nos corpos das coisas que a memória vive, pode ser guardada e depois partilhada. O último plano do filme assim o confirma. Julie cresceu e Hogg também cresceu com ela, no decurso da produção destes dois filmes. O acto tão propositado da realizadora em deixar uma versão do seu amante, dela mesma, das cicatrizes deste amor condenado e do crescimento que, através dele, foi concretizado, dentro dos dois filmes é o da imortalização e da sua transferência para outros. Closure. A partir daqui, Hogg poderá continuar em frente com a sua filmografia.
The Souvenir Part II é um verdadeiro triunfo.
The Souvenir (2019) está disponível na plataforma Netflix Portugal.