What New York City is to us has this real lostness. There’s this reverb to it that only exists because you are constantly surrounded by people
Josh Safdie, in The Wall Street Journal, Maio 2010
No contar da história Americana do que foi a BBS (iniciais de Bob Rafelson, Bert Schneider e Steve Blauner, que dirigiram a produtora), que esteve na origem de uma fertilidade audaz em tempos de agitação sócio-política no final dos anos 60 e inícios dos anos 70 (Richard Nixon e o caso Watergate, a Guerra do Vietname e a implosão do studio system em Hollywood), há um nome que, por razões talvez óbvias, é colocado de lado nos vários ensaios ou textos que vão aparecendo ao longo dos anos sobre os rascals da Nova Hollywood. Não é Peter Bogdanovich, nem Bob Rafelson, claro, nem Dennis Hopper ou Jack Nicholson, que se estreou na realização naquela altura com Drive, He Said (O Amanhã Chega Cedo Demais, 1971). Mas Henry Jaglom, uma descoberta que igualizo ao acenar do vizinho do prédio em frente durante o bizarro período de confinamento. Ele sempre lá esteve, mas nós não sabíamos. Nem dele nem dos seus filmes destrambelhados, ignorados até então, já para não dizer pobremente analisados.
Tido como um “forte candidato para o prémio do pior de todos os tempos”, ou assim o dizia a New York Magazine em 1976 numa pequena vinheta que procurava descrever em poucas palavras o filme-estreia do “amador mas grandiloquente” Jaglom, A Safe Place (Refúgio Seguro, 1971), só mais recentemente se voltou a falar dele aquando do lançamento de uma colecção Blu-ray da The Criterion Collection que homenageava a “America Lost and Found: The BBS Story” com cópias digitais restauradas dos filmes protagonistas. E ao contrário do que muitos esperariam, porque ligeiramente fora do ethos da BBS – o filme é a articulação de um existencialismo que se expressa através de uma subjectividade crepitante à la Alain Resnais – lá está Jaglom com a sua primeira longa-metragem, dentro dos únicos sete filmes produzidos debaixo da asa da produtora subsidiária da Columbia Pictures. Tinha-se construído ali uma comunidade empenhada em difundir um renovado naturalismo, mostrar a “América real”, e no processo elevar os filmes a eventos, e os seus realizadores de cineastas a autores. Nos alicerces ainda habitava a memória do cinema clássico americano, mas este tinha entretanto sido alvo de modificações via laivos estilísticos do cinema de autor europeu, onde o verdadeiro só podia ser o real e o real, envolto na intoxicação da contracultura auto-consciente e anti-guerra, vivia da nostalgia não-melancólica do futuro.
Uma das minhas histórias preferidas continua a ser o acordo entre Nicholson e Jaglom em que o primeiro só concordou em representar no filme do segundo em troco de uma televisão a cores (Jaglom não lhe conseguia pagar um salário).
O caso de Jaglom, o único não-Americano dos autores (nascido no Reino Unido), não era tanto o de descobrir a América a que Easy Rider (1969) se refere, aquele mote geracional sobre o estado das coisas, mas fincava-se em encontrar um outro nenhures. Com um monólogo também ele interior, cru e presciente à sua maneira, Jaglom distingue-se dos demais pela inconsistência na sua linguagem fílmica. Da sua estreia em diante, a agilidade visual do cineasta baseia-se numa torrente imparável de consciência por digerir. Ou visto por outro prisma, acede a um “ver extra-cinemático”, nas palavras do professor de cinema e literatura Peter Hogue. Numa versão algo desafinada mas bem mais curiosa daquela que Woody Allen prossegue com senso e disciplina no decurso da sua prolífica carreira, Jaglom ocupa-se de capturar as pretensões da vida vivida e as várias crises existenciais que se vêem entrelaçadas na guerra entre os sexos. Embora realizadores, colocam mulheres no centro dos seus filmes, onde o discurso enaltecido é, ainda que empático, distante daquele que a reputação feminista (no caso de Jaglom) sugere.
Conhecido maioritariamente pela sua proximidade a Orson Welles, uma figura constante na sua vida, desdobrada no papel de mestre – Welles apareceu pela última vez em público num filme do amigo, Someone to Love (Alguém para Amar, 1987) – é importante saber desde já que Jaglom permaneceu um outsider, continuamente atacado por espectadores e críticos, que tanto amavam os seus filmes como os repudiavam com fúria. E foi dentro deste barómetro de constante rejeição e flops de bilheteira que o cineasta continuou a fazer filmes consolidando as suas muitas obsessões no facto de que o importante era concretizá-los. Nada mais o incomodava. Aliás, numa entrevista com o realizador Caveh Zahedi, este menciona que traz sempre consigo as melhores piores críticas aos seus filmes, nomeadamente uma da People Magazine a que ele achava piada – “Se este filme fosse um cavalo, matá-lo-ia.”
Mas nada disto é sobre o cinema intolerável de Henry Jaglom. Pretendo aqui dar a conhecer uma outra cara do seu cinema. Claro que, segundo os ditos da Hollywood que encomendava “filmes de género”, se Harry Cohn tivesse que ver os filmes de Jaglom, certamente teria tido tanta comichão no rabo que acabaria por sair da sala de cinema antes daquele primeiro diálogo amortecedor (existe sempre um). Os filmes de Jaglom são, antes de mais, constituídos por um conjunto de idiossincrasias associadas àquele tempo e à inépcia do cineasta on the job. Uma das minhas histórias preferidas continua a ser o acordo entre Nicholson e Jaglom em que o primeiro só concordou em representar no filme do segundo em troco de uma televisão a cores (Jaglom não lhe conseguia pagar um salário). Num só gesto, toda esta parafernália – as críticas, as sessões de cinema abandonadas, as entrevistas impossíveis –, eleva o grau de irresistibilidade para com um realizador que mexe ovos quando os podia virar em omeletes.
Assim dito, encontrar Can She Bake a Cherry Pie? (1983), (surgido em conversa por muitos, tendo em conta a presença de uma jovem Frances Fisher e um cameo de Larry David no filme), foi depurar num mau filme a possibilidade da descoberta de uma pérola ignorada do cinema nova-iorquino do início dos anos 80. Tendo como ponto de partida a estátua de bronze de Alice no País das Maravilhas, que se encontra no Central Park em Nova Iorque, é-nos sugerido um cair por uma toca em direcção a um mundo que se delineia num círculo à volta da misógina canção de folk Billy Boy, através da qual nos é dado a entender de que estamos perante uma familiar cuvete de uma comédia romântica desajeitada. Não é o caso.
Eis uma rápida premissa. Quando o marido de Zee, uma aspirante a cantora (Karen Black), se separa dela abruptamente, Zee percorre as ruas de Nova Iorque a falar sozinha com o abandono daquele que não sabe o que fazer consigo mesmo. Eli (Michael Emil), um homem divorciado mais velho, um executivo de um pequeno negócio, cozido do mesmo tecido perpendicularmente neurótico do estereótipo do homem judeu na cultura popular, conhece-a numa esplanada de um café enquanto esta sofre de um adorável colapso nervoso. Depois de lá conseguir pedir o que quer comer, três sobremesas embebidas em chocolate, e de o seu incansável choro estancar, os dois vão a uma matiné com Fred Astaire – The Band Wagon, A Roda da Fortuna, 1953) – e Eli questiona-a sobre sexo. Zee não está interessada. Até aqui, tudo bem. Quando, mais rapidamente do que não (tendo em consideração os tiques controladores e francamente gordurosos deste), Eli lá acaba em casa dela uns dias depois onde tenta monitorizar o seu batimento cardíaco através de um oxímetro preso à orelha durante o acto sexual, sabemos que estamos perante algo difícil de engolir, mesmo que deliciosamente arguto.
Desenhado como um desabafo hiper-ácido daquele que tem tanto e nada para dizer ao mesmo tempo, e quer muito que desse tanto e nada transpareça uma qualquer sabedoria, é fascinante como o filme deixa de conseguir esconder que não sabe bem como fazer qualquer uma destas e parte dessa incapacidade para assim a conseguir vencer.
Mas não fiquemos por aqui. Enquanto isso, uma paranóica (será?) Zee sente-se perseguida por um homem e Eli pensa demasiado, mas nunca sobre as coisas certas como o fumar da namorada. Há monólogos electrizantes sobre o período menstrual e como durante esses dias comer é como “engravidar pela boca”; diálogos sobre a ilustração da vida em quartos; comparações entre espirrar e ter um orgasmo; momentos peculiares em que Eli explica a sua técnica viril de se colocar de pernas para o ar durante um tempo indeterminado. Há também um enredo secundário, que ajuda a arrumar o filme, e que inclui um jovem actor, o seu pombo e a namorada (Frances Fisher) que passa o tempo a ler Anaïs Nin num esforço de ignorar os avanços deste em relação a outras raparigas (não é uma coincidência; Nin não poupava elogios ao trabalho de Jaglom, nomeadamente em A Safe Place, sobre o qual escreveu uma crítica no seu livro de ensaios In Favor of the Sensitive Man and Other Essays (1976) – “Aqueles que não consigam compreender este filme irão conduzir-se a si mesmos e a outros ao lugar seguro da inexistência.”).
Desenhado como um desabafo hiper-ácido daquele que tem tanto e nada para dizer ao mesmo tempo, e quer muito que desse tanto e nada transpareça uma qualquer sabedoria, é fascinante como o filme deixa de conseguir esconder que não sabe bem como fazer qualquer uma destas e parte dessa incapacidade para assim a conseguir vencer. De forma síncrona e com o intuito de seguir uma linearidade narrativa, este intercala desde o início o mundo de Zee com o de Eli, andando de trás para a frente entre um e o outro, sempre de forma demasiado ríspida e mal suturada; uma montagem visível. É-nos dado a entender que estes se tornam protagonistas de uma história de amor, o que nunca transparece do ecrã, na verdade. É de notar também que parece existir uma urgência em criar um tom ritmado que nunca realmente se adapta a si mesmo – vem-me à cabeça a sofredora e hilariante imagem de um homem a tentar abrir um buraco no fato de borracha apertado que tem vestido. No entanto, quando Black olha de frente para a câmara depois de descobrir fotos suas na parede de um homem, todos estes muitos fios começam-se a interligar.
Todos sabemos que a noção de pertença àquela cidade e ao seu nenhures é nada mais do que uma canção desafinada a ser tocada por alguém que não tem sequer consciência que a está a tocar. E diga-se o que se disser, Can She Bake a Cherry Pie? fala-nos desta canção, enquanto se afirma como o mais fascinante dos desastres.
Maioritariamente concentrado no estudo observacional sobre a fábrica da vida da rua, o filme foca a maioria das suas sequências em esplanadas de cafés filmadas do outro lado da rua, onde os personagens parecem passar o seu tempo a dissertar o que estão a sentir, livres das preocupações mundanas dos trabalhadores e da hustle and bustle em redor. Através da noção do olho (câmara escondida) da cidade, a psique do filme é estabelecida já tendo em vista o derradeiro meet-cute entre estes dois estranhos seres, terrivelmente vulneráveis e disponíveis em Greenwich Village. Duas pessoas que vivem tão imersas dentro delas mesmas que se torna fácil para o filme agarrar-se ao encanto de os ver a entrelaçarem-se durante crises de comportamento, para daí conseguir destilar o seu sumo. Um sumo grumoso e pulposo; verdadeiro. As pequenas acrobacias transicionais, muitas vezes desnecessárias, o recurso a zooms voyeuristas, POVs e planos de sequência com um movimento circundante e incerto, podem querer esticar as dimensões do filme, mas o que já ali está, aquela abertura desenfreada às particularidades das suas personagens, é o que constituirá a sua memória.
Se há filmes que falam sobre o cinema dentro das pessoas, há outros que zumbem, chiam e até cantarolam esse imaginário, sendo só assim capazes de se aproximarem com mais força do nevoeiro que é o seu tempo emocional, continuamente por equalizar. Can She Bake a Cherry Pie? é este olhar sobre os que vivem rodeados por outros. Só na cidade poderia um discurso maníaco não ser questionado (e ainda bem!). Zee sente alguém a segui-la e estará errada? É curioso como até no último acto do filme – chegados aqui sabemos que este não passa de uma forma que Jaglom arranjou de transferir os seus inflamados rants sobre a vida para o mundo – este permanece indeciso no que diz respeito aos códigos de gramática cinemática. Jaglom atribui-lhes um significado próprio e acaba a prender o filme por arames (assim o consegue), associando uma apetência psicogeográfica da perda na cidade a uma preocupação do filme em ver, e ser ou não visto, que é entretanto revelada. A vida está sempre a acontecer. Dentro do seu frágil vocabulário, este encolhe os ombros a esta realidade, faz de papas bolo e consegue sair do outro lado com um filme vigoroso onde a espacialidade do tempo se dilata ou comprime de acordo com o romantismo da ansiedade que este, em vez de representar ou procurar figurar como Allen, tenta recuperar.
Com efeito, não se poderá concluir que Henry Jaglom fez deste (ou de qualquer outro dos seus filmes) um ensaio sobre Nova Iorque, mas caso o espectador esteja aberto a ouvir, há uma reverberação que percorre esta sua quarta longa-metragem. O filme assegura, em estrutura e sentimento, o cinema vivo e cómico, eternamente por polir e acabar. Uma particularidade muito específica da influência BBS. E no seu rescaldo, esquecemo-nos até que é sobre Zee ou Eli. Ou sobre as carreiras de Jaglom e Black; o filme faz referências directas a ambas – A Safe Place aparece na televisão a uma determinada altura, enquanto a actriz de Five Easy Pieces (Destinos Opostos, 1970) abandona a linguagem sexual Hollywoodiana. Só a música que deles ressalta é que passa a importar. Todos sabemos que a noção de pertença àquela cidade e ao seu nenhures é nada mais do que uma canção desafinada a ser tocada por alguém que não tem sequer consciência que a está a tocar. E diga-se o que se disser, Can She Bake a Cherry Pie? fala-nos desta canção, enquanto se afirma como o mais fascinante dos desastres.