Com frequência, chegamos perto do final de um filme e o seu clímax sumariza a transformação (ou impotência para ela) dos protagonismos que vamos seguindo na terra-ficção ou terra-terra, que é como quem diz, um espaço de real que é ficcional no seu recorte. O culminar desta obra ficcional de Sergei Loznitsa talvez possa dar um passo em frente. Na cena final, com a morte da equipa de cinema que se preparava para fazer um filme sobre a “vida pacífica das pessoas do Donbass” conclui-se algo pelo fim da representação. Uma ficção atingida pela morte verdadeira e que depois é filmada (re-mediada) pela câmara de repórteres que acorreram ao local e – claro – pela câmara do realizador. Um conjunto de camadas de intermediação que, mais do que televisionar uma guerra, a transformam numa guerra de símbolos contra símbolos, “verdade” contra “verdade”. O poder do tiro, mas sobretudo o poder da palavra.
É essa a premissa do cineasta ucraniano: trabalhar a sátira no seio da tragédia, como forma de salientar essa dimensão populista que, diz Peter Sloterdijk, adaptando uma célebre frase de Rasputine, procura fazer uma verdade a partir da mentira. É um pouco isso, parece-me, que é o Donbass (2018) de Loznitsa: um espaço onde o roubo de toucinhos, o lançamento de baldes de merda nas carecas de políticos, andam a par do lançamento da palavra “fascista” e das explosões e mortes reais. É esse o significado do estilo por vezes histriónico e do decadentismo grotesco que abrem a porta da fabricação da mentira para reais ganhos de natureza bélica e política.
Independentemente do mérito das sátiras, e elas são bem desiguais de sequência para sequência (por exemplo, a cena do casamento parece provir do mais excitável dos filmes de Kusturica), o filme etiqueta-se, ironicamente, como “Manual de Sobrevivência no Donbass em 12 Lições”. Mais do que uma descontrução da lógica do manual do auto-ajuda, esse deixa anunciar que estamos de volta, afinal, à casa de partida: isto é, à lógica da representação. É por isso que creio que a já aludida cena da morte da equipa de cinema é um sinal embutido no interior do filme de uma certa contradição. Com uma mão proclama o fim da possibilidade da representação, mas com a outra vai, criteriosamente, seleccionar e encenar, ficcionalmente, 12 momentos, inspirados em factos reais, que permitam pincelar isso que chamamos de “moisaico” de uma realidade. E é aqui que, creio, o filme acaba por fracassar.
E é por causa desse índice de “reconhecibilidade” que Donbass se contradiz. Um filme que proclama a detonação da representação, mas que, desde o primeiro minuto, é representativo da vida dos que vivem a guerra do Donbass.
Estamos diante de sequências que nos “representam” a tortura de “supostos fascistas” às mãos dos civis embriagados pela propaganda do regime; assistimos a roubos chamados de expropriações; visitamos abrigos anti-bomba onde vivem partes da população afectadas pela guerra; dão-nos a compreender o dilema geracional entre pais e filhos, uns de um lado e outros do outro; acedemos à corrupção e talento para o teatro dos políticos, e por aí fora. A encenação pode vestir-lhe as roupas do absurdo, mas são sequências de corpo-representativo de uma situação global.
De uma certa forma, é o olhar documental de Loznitza que ainda cá está, viajando por entre estes momentos. Mas com uma diferença importante. Olhe-se, por exemplo, para State Funeral (2019), estreado comercialmente entre nós no ano passado. Bem sei que são filmes muito diferentes, e nem pretendo fazer uma comparação entre os dois. Apenas cotejar um ponto particular. Muito embora a montagem deste documentário sobre o luto que a nação soviética fez aquando da morte de Estaline aponte para uma reacção global a um evento marcante, cada fragmento, cada rosto, cada pessoa, cada cena possui em si uma certa totalidade e independência. É depois o espectador que pode ou não construir essa simbólica ideia de uma totalidade ou mosaico.
Infelizmente, não se passa o mesmo com Donbass. Cada uma das cenas escolhidas por Loznitza funciona como fragmento de um modus vivendi no seio de um conflito, mas antes de tudo tem em si inscrito a potencialidade do todo. Isto é, antes de, primeiro, procurar ser único e fragmentário em si mesmo, ele vive de se integrar num todo reconhecível como “retrato de uma guerra absurda e postiça”. E é por causa desse índice de “reconhecibilidade” que Donbass se contradiz, afinal. Um filme que proclama a detonação da representação, mas que, desde o primeiro minuto, é representativo da vida dos que vivem a guerra do Donbass. É essa contradição que faz das personagens de Donbass a verdadeira carne congelada nos frigoríficos que vemos nos primeiros minutos.