No final da semana passada a comunidade cinéfila recebeu, com tristeza, a notícia da morte de Jean-Louis Trintignant. Figura icónica do cinema europeu do pós-guerra, e cara indestrinçável da Nouvelle Vague francesa, Trintignant sempre foi um actor discreto e subtil, de uma presença fugidia e quotidiana. Esta interpretação do homem comum valeu-lhe alguns dos seus papéis mais lembrados. Embora a sua carreira se pautasse, nos anos 1990, pelo encontro com Krzysztof Kieślowski e, já no século XXI, pela sua recorrência no cinema de Michael Haneke, os walshianos prefeririam lembrá-lo pelos seu filmes dos anos 1960: o extraordinário sucesso comercial que foi Un homme et une femme (Um Homem e Uma Mulher, 1966), de Claude Lelouch, seguido, logo depois, pela elegância de Les Biches (As Rivais, 1968), de Claude Chabrol, e por fim, aquele que é – talvez – o seu desempenho mais lembrado, o de Ma nuit chez Maud (A Minha Noite em Casa de Maud, 1969), de Eric Rohmer. Ricardo Gross, Daniela Rôla e Luiz Soares Júnior conduzem-nos por três filmes onde a essência do trabalho de actor de Trintignant se evidência.

Se me perguntassem pela quinta-essência da feminilidade eu indicaria Anouk Aimée neste filme de Lelouch. A actriz reconheceu sentir-se atraída por interpretar uma mulher que é feminina a mil por cento, desse modo colocando-se aquém da personagem construída por si e por Claude Lelouch, e que dá pelo nome de Anne Gauthier (uma anotadora de cinema). Como todos saberão a história deste filme é a do encontro entre dois viúvos que têm os filhos únicos a estudar num internato em Deauville. Anne e Jean-Louis Duroc (Jean-Louis Trintignant) irão apaixonar-se um pelo outro no decorrer das deslocações no Ford Mustang dele entre Paris e Deauville, e nalguns passeios que farão junto ao mar na companhia das crianças.
Claude Lelouch pontuou o seu filme com olhares e gestos de uma ternura que o próprio reconhecia não ser a sua. Trata-se da versão idealizada de um romance, mas filmado com tão grande sensibilidade e um sentido de frescura do espontâneo que somos levados a acreditar no que acontece em ambos os planos: o idealizado e o da realidade. Para estar à altura da quinta-essência da feminilidade, o que Lelouch e Trintignant apresentam pode também ser tomado pela quinta-essência da masculinidade, em que a personagem dele, um corredor de automóveis, começa por brincar com a sua identidade e o modo como se relaciona com as mulheres.
Um dos elementos que mais nos recorda Jean-Louis Trintignant é a voz. Lelouch fez o filme com pouquíssimos meios e usou uma câmara facilmente manuseável mas que produzia um tal ruído que complicava o uso de som directo. Mesmo nas cenas em que o casal contracena com diálogos entre si, podemos imaginar que tenha sido feita uma dobragem na pós-produção. Da voz de Trintignant, guardamos sobretudo os monólogos interiores nas viagens que Duroc faz sozinho, ao volante, a conduzir sem interrupção entre o Mónaco e Paris, após ter recebido um telegrama de Anne a felicitá-lo pela sua prestação no rally e a dizer pela primeira vez que o ama; e já no final do filme quando Jean-Louis, que se havia separado de Anne depois de um complicado final de tarde em que tentaram dormir juntos, faz o trajecto Deauville-Paris seguindo o comboio onde ela viaja, para lhe declarar o seu amor.
Un homme et une femme é um ícone do cinema. Percebemos algumas referências que terão influenciado a forma do filme, mas nada que tenha sido feito depois se pode ligar directamente à magia que ali se produz. É um objecto único.
Ricardo Gross

Porquê escolher Les Biches, de Claude Chabrol, um filme onde a presença de Jean-Louis Trintignant é tão discreta? Mas não será a filmografia de Jean-Louis Trintignant toda ela feita dessas aparências discretas, elegantes, um pouco enigmáticas?
A sua presença é aí, como aliás em quase todos os filmes da sua longa carreira, uma presença subtil que quase escapa, mas a que não se escapa. Essa característica fugidia é, talvez, a marca mais distintiva de Jean-Louis Trintignant, o que está plenamente alinhado com aquela que era a sua persona cinematográfica, de alguém para quem o estatuto de estrela era algo de incómodo. A cena em que me detenho acontece a uns 20 minutos do final do filme, Frédérique (Stéphane Audran), Why (Jacqueline Sassard) e Paul (Trintignant) junto à lareira, escorregando languidamente pelo sofá, já tomados pelo álcool. Paul é o tipo de bêbedo eloquente, começando a contar a história de um homem que procura descobrir o que é, verdadeiramente, a sabedoria humana. Meio atordoado, o pé da Audran a roçar-lhe a face, acaba por finalmente sucumbir aos encantos das duas mulheres que perante ele se acariciam e afirmar, resignadamente, “vamos para a cama!”. Repare-se como o tom da voz dele muda subitamente, de rapaz sem jeito a contar uma história como defesa (parecendo um pouco atemorizado pela presença masculina de Stéphane Audran), para sedutor seguríssimo de si quando afirma “vous êtes charmantes, mes biches!”.
O obituário publicado pela BFI mencionava, de forma particularmente inspirada, uma “masculinidade tímida, mas sexy”. É, de facto, esse charme discreto de Trintignant que explica o seu brilhantismo, uma generosidade de interpretação que parecia inesgotável, justamente porque havia ali tanto de contido, tanto que jogava com a nossa imaginação. Boa parte do seu magnetismo vinha-lhe da voz (algo que soa a atributo de estrela do cinema clássico – pensamos, desde logo, em Claude Rains e James Mason), resultava de dar o peso devido a cada palavra (as entrevistas concedidas por Trintignant são sempre um deleite, a oportunidade de contemplar a forma como pondera cada resposta, como há vida em cada resposta), uma forma especial de dizer e de deixar espaço para o não dito. Para terminar, não esquecendo que Trintignant foi também produtor de vinho, resta perguntar se alguém tem por aí uma garrafa de Rouge Garance, para que se faça o devido brinde de despedida.
Daniela Rôla

Em Les Dames du bois de Boulogne (As Damas do Bosque de Bolonha, 1945), adaptação segundo o roteiro de Jean Cocteau de um trecho do Jacques, o fatalista, de Diderot, Robert Bresson inicia o filme com um verdadeiro programa jansenista a ser reelaborado pelo ulterior jogo de esconde/esconde, ou de alternantes revelação e ocultamento deste mundo de máscaras: “Não existe amor; apenas as provas de amor”. Esta práxis afetiva, este dictum materialista ou realpolitik sensorial que coloca a aparência aletheia como anterior e fundamento da essência tem na obra-prima Ma nuit chez Maud, de Eric Rohmer, a sua versão dúplice do mesmo dilema espiritual. Digo dúplice porque agora a máscara se recorta segundo a cartolina pintada de uma loira “inocente” feita para casar e de uma morena “pecaminosa” divorciada; ou não?
O filme vai trabalhar esta dicotomia entre pecado e redenção segundo uma dualidade que habita o coração daquele encarregado da escolha, do livre-arbítrio, que aliás segundo o desenvolvimento da transparência minimalista da fé e arte jansenista foi o grande espinho na carne da teologia católica nos tempos modernos: “(…) é porque sou cristão que me insurjo contra o rigorismo de Pascal (…) se isso é ser cristão, então eu sou ateu”. Entre o Acaso e o livre arbítrio, a aposta de Pascal é negada (ou antes: suprassumida, ou negada e ultrapassada) por alguém que cultiva, como o personagem de Trintignant, a austeridade do gesto e o inquisitivo enviesado dos olhares, mas que não hesita em, como nos mostra o plano sequência filmado de dentro do carro, em perseguir como caçador a presa, na personagem de Barrault, porque afinal é necessário estar atento para apreender a chance que a Graça divina nos oferece. A vida segundo o pari de Pacal é este cristal urdido pela aliança entre o Acaso e o livre arbítrio, em que o ganhador da aposta ungida de Graça é aquele que crê em Deus, uma vez que a princípio é indiferente crer ou não; só a eternidade vai dar a cartada decisiva, e esta é alheia às escaramuças da liberdade humana. Cabe aqui ao cinema, arte materialista do julgamento, o lugar de Deus, aquele que julga a todos sem jamais ser objeto do olhar do Outro.
Como todo grande filme, Ma nuit chez Maud é um teorema perfeitamente confeccionado segundo os ângulos da regra de ouro, mas o decisivo na edificação de seu sentido são suas curvas e anfractuosidades, aquilo que é o índex de sua situação num mundo sempre muito bem situado (França burguesa, católica, intelectualizada), muito claramente indicado pelo découpage e uso da câmera, sempre intermediário, entre certo hieratismo clássico e desenvoltura fluida moderna da filmagem em locação e do uso certeiro do plano sequência em momentos decisivos para a revelação do caráter ou intenção dos personagens. O plano sequência da perseguição ao objeto do desejo no início do filme, ficar ou não essa noite na casa de Maud, os intermezzi filosóficos com o amigo entre o café e o uísque, e os estados intermediários de humor todos, segundo a sibilina vocação de Trintignant para revelar escondendo, manifestar ocultando, etc..
A beleza de Ma nuit chez Maud está nesta reconciliação irreconciliada (as anfractuosidades, os ruídos, a captação dos pedregulhos do real), e é o ator Trintginant quem, com sua transparência marulhada por olhares onde tudo – décor, partner de cena, o infinito de Pascal e a finitude da paixão por Maud – tudo se dá a ler; a ler? A grande arte de Trintignant neste filme é que seus olhares sournois não apenas refletem o que veem, mas dão a ler: um grau acima, é Trintgnant quem, com seus três quartos de perfil cabisbaixo e frontalidade discretamente acintosa de révelateur de um estado de coisas – é ele que é encarregado por Rohmer de nos induzir a crer, como Pascal a seus discípulos de Port Royale, que o mundo vasto e ressoante de correspondências, de rimas e aliterações só nos é dado infinitamente quando lido, quando visto uma segunda e decisiva vez, a chance da Graça capturada pela livre ação humana. Num filme cheio de palavras, conversation pieces e hermenêuticas, o olhar do austero ator nos convoca para adivinhar as forças vivas e os atalhos sinuosos que todo significante a princípio contém, sua Origem na vida vivida e não apenas representada. Estes olhos que espiam e jamais se furtam à espreita do topos do Outro são os olhos que nos revelam, sob os pespontos alinhavados deste teorema cristalizado, a oportunidade de Graça que todo grande filme deve conter para permanecer vivo em nossos corações e mentes. A foto que ilustra este texto nos mostra o ator sendo simpaticamente julgado, numa captura de seu perfil, por sua potencial amante, Maud; ela tenta dar conta deste enviesado olhar de menino assombrado que, à espreita de todos os outros, nos revela o inaudito do Real sob o ponto de vista de uma fresta entreaberta na carne da existência.
Luiz Soares Júnior