O feérico e o demoníaco sempre disputaram o cetro e encarniçaram o cerco do cinema de Adolfo Arrieta; este inventário mediúnico das forças e dos fantasmas que subjazem à transparência mélieriana de seus documentos sobre o imponderável advém novamente à Cena com um promontório de tormento no curta-metragem Le Jouet criminel (1969), a sua adaptação selon la lettre (há outras adaptações selon l’ésprit) do Orphée (Orfeu, 1950), de Jean Cocteau. Quais os fás sostenuti desta orquestração primorosa de elementos em uma releitura feita de anamorfoses que devem tanto ao bronze clássico quanto à estridência maravilhada do dictum barroco?
Um jovem com vocação angelical sequestrado e manietado, um casal mais velho e detentor do Segredo que contempla outro mais jovem e perverso, votado ao culto do interdito como inocentes contemplam uma superfície que irradia luz, um bosque da pegação e o mesmo, agora, da salvação, revoada de pombos e cachorro dublado pelo próprio mestre de prestidigitações ou diretor: sublime esoterismo de topografia mágica percorrida num élan rosselliniano! É a caligrafia sibilina desta Cidade feito enigma que permite a Arrieta ir enredando, arregimentados fios dispersos de uma cintilação faiscante, até ir reconstituindo, pelo atalho hierofântico do amadorismo, a intriga quase maneirista de possessão do Poeta pela Morte apaixonada, em Cocteau. Em Le Jouet criminel, os anjos de Arrieta aparecem-nos transfigurados pela assunção da part maudite batailliana, pelos humores negros e rancores tumefactos de algum aliciamento pelo diabolismo dos elementos, como se da montagem tumultuosa de epifanias magnificentes do cotidiano do Crime do pião o diretor só retivesse o momento luxuoso do crime, acme faustoso de cristalização num gesto de écriture sanguinolenta das forças até então em suspensão atmosférica.
Em Le Jouet criminel, do plano sequência tocado pela Graça da libertação de Jean Marais – o homem velho – nos primeiros minutos do filme até à criminosa alforria do rapaz sequestrado, supra-guiada pelas mãos do Poeta, gênio mediúnico agora a serviço de uma “passagem ao ato” guerrilheira (Marais entrega a Xavier Grandés – o anjo – o revólver que vai libertá-lo do casal perverso, apaixonado em demasia por um desaparecido que a fórceps tentam fazer coincidir com o jovem atual), tudo conduz à ideia de que o filme é uma espécie de Lição resumida e comentada pelas devidas notas de rodapé da carreira de Arrieta até então; síntese suntuosa entre os percursos da cartografia rosselliana pela Cidade redescoberta por olhos infantis; o angelismo epicurista, poiético e a magia de papié maché e cartolina pintada de, respetivamente, Cocteau e Méliés.
Em Le Jouet criminel basta encontrar uma asa recortada e pintada para que esta se torne um anjo: a denotação literal do cinema está a serviço de uma conotação espiritual, metafórica que implica a todos os possíveis papéis neste Theatrum mundi.
Para esta Sherazade bretoniana de que também se mascara Arrieta, em Le Jouet criminel, Paris volta a ser este labirinto surrealista – do Paysan de Paris de Aragon às deambulações encantatórias do Out 1, noli me tangere (1971) e Le Pont de Nord (1981) de Jacques Rivette -, cujas coordenadas entre casuais e causais (causalidade Suprema esta, encimada pelo Segredo ou pelo Jogo dos elementos do Eterno lucreciano) dão as suas cartadas. Em Le Jouet criminel basta encontrar uma asa recortada e pintada para que esta se torne um anjo: a denotação literal do cinema está a serviço de uma conotação espiritual, metafórica que implica a todos os possíveis papéis neste Theatrum mundi, aqui classicamente reivindicado como um espaço-tempo que, embora se sirva de associações encontradas no ferro-velho da duração, não possui sombra de marulho impressionista.
Para tornar-se um personagem do álbum de maravilhas de Arrieta, basta chegar e pegar seu figurino, decorar uma fala feita mais de elipses que de enunciações e ocupar um espaço no espaço do campo; a magia nasce do esbarrão de um plano no outro, de uma lembrança fugidia ou sincronização avulsa entre um encontro e outro, um diálogo e um corpo entrevistos: tudo procede segundo a lógica de condensação do sonho, como nos é dado entrever (mais do que a ver), no segundo encontro entre Marais e Michèle Moretti – a mulher que corre. Raccordado hipnoticamente pelas notas esparsas de um Scarlatti ao piano e pela bola giratória luminosa, sobre o rapaz, atualmente sequestrado, mas que na diegese mágica do filme Marais casualmente encontrara no bosque que abre Le Jouet criminel, Moretti diz ao partner que sabe que ele se importa com Grandés, e que não precisa se incomodar em vê-los juntos porque “ele” também gosta dela. E logo depois, encoberta da cama pelo giro centrífugo da bola vertiginosa, ela lhe diz ainda: “Você se lembra? Você se lembra?”
Em Le Jouet criminel, Arrieta não deve se importar em designar expressamente o como e o porquê desta interrogação quase onírica, à força de secretamente associativa; tudo permanece no limbo do fora de campo do imaginário e da memória infans do espectador, cúmplice eminente desta prestidigitação que, como a entrada de Orfeu pelo meio aquoso do espelho no Hades da paixão mortífera, tudo pode vir a ser, desde que raccordado pelo afeto adequado, pela coincidência vidente nascida de uma cintilação obscura, a princípio, mas que há de encontrar sua devida ressonância na duração, textura e diapasão do Segredo. O espectador comparece com o tool funcional de tudo suturar e preencher, desde que respeitados o ritmo e a figuração do ser misterioso que nos aparece a cada contracampo. Pois o que seria da grande Arte sem a ressonância, musical e elíptica, do fora de campo, cujo disegno apenas nos é oferecido pelo filme naturans-processual como, à semelhança das noites do conto de Scherazade, fosse este indispensável tool para espaçar ou diferir o momento, este sim triunfalmente decisivo para a significação da hora da Morte (mas já não mais estaremos aí…a Revelação, como The end dos filmes, é para um Outro).
“E então, o que você espera?” Ele te espera; este é o mot d’ordre, dado pela Mulher, para a prestidigitação ontológica que Cocteau reservava para fulminantes ressurreições de olhos vítreos e saltos para adiante: o Poeta veste-se verticalmente com uma blusa que se ajusta miraculosamente à sua figura, como as anamorfoses possíveis entre o original de 1950 e sua refilmagem selon l’esprit agora transferissem o milagre do corpo morto, reanimado pelo pneuma da inspiração poética (é sempre bom lembrar que não é à toa que a Morte ou Maria Casarés se apaixona pelo poeta Orfeu, no filme de Cocteau: é a Morte a musa inspiradora seminal do artista, o sentido de seu pertencimento ao mundo urdido pela metáfora, ou ao simbólico), para o corpo do vidente, que possui igualmente um contrato com a Morte, agora vindicativa sob a égide da Justiça: é ele, o Poeta, quem deve entregar a arma fatal ao imberbe anjo. A chave de que tudo talvez fosse um sonho é dado pelo contracampo colorido de um céu com nuvens passageiras e pelo ar dorminhoco do raccord de direção do olhar com que Xavier Grandés se volta para Orfeu, que jaz ao pé de sua cama.
O jouet criminel, ou pequeno objeto mortífero que Ele dera para ele, se raccorda agora com a narrativa de Florence Delay – a mulher do foyer – para o marido, nos contando literalmente aquilo que Arrieta nos dera a ver eliticamente: que um quarto branco e um gesto depurado também podem ser o lugar para pactos e transfigurações entre o visível e o invisível, como para trocas e conversões de que o fora de campo, e portanto o campo imantado de magia da cabeça do espectador, podem vir a ser o meio privilegiado. Este é o convexo e complementar outro lado do espelho, de que Le Jouet criminel nos mostra as urdiduras e estilhaços, sem jamais reconstituir de todo (este é o seu gênio, aliás: o Segredo) a totalidade significante. Num tour de force de figurino e gesto onde se figura o desafogo espiritual, denotado por uma adaptação vertical da roupa de anjo ao corpo já nem tão imberbe de Grandès, Arrieta filma os preparativos para a desforra do prisioneiro; como dito acima, em Arrieta basta nos apossarmos da asa de cartolina e do manto branco edênico para virarmos anjos; e à solenidade te deum da possessão do jovem pela roupa imaculada corresponde um murmúrio de stacatti, martelados de maneira modulada pela trilha em surdina, pois para todo momento decisivo, coextensivo à Morte e à Liberdade, onde o cinema se deixou fecundar como a Virgem pela palavra de Gabriel, deve corresponder uma mise en scène e cadre adequados; na semi-transparência tumefacta de interdito com que Arrieta filma a possessão do jovem sequestrado pelo arcanjo vingador se insinuam, num minimalismo digno de gênio, as coordenadas de um destino.
Antes da aparição final do arcanjo vingador em que se tornara o querubim jovial para o casal nu (La fin du couple), rolam pelo filme estilhaços de uma festa prenhe de curiosidade insidiosa pelo rapaz vestido de anjo (planos de cochichos e apontar de dedos aqui e ali), prova de que ele não era “coisa deste mundo”; mas a metáfora se fizera carne, e habitava enfim entre nós: a denotação fulgurante do cinema de Arreita consiste antes de tudo nesta possibilidade, formalmente cristalizada pelo uso das elipses e do contracampo túrgido de efeitos de prestidigitação, de que a equação literal ou denotativa “asas de cartolina + manto branco edênico + revólver em punho” possa vir a ser traduzida segundo a conotação metafórica, numinosa, “que não é deste mundo selon la lettre” do Anjo do Apocalipse empunhando uma espada de maldição.
Como nos estudos iconográficos de Erwin Panofsky, é necessário uma istoria anterior à figuração em campo, contexto alegorista de que tudo no campo vai extrair luz; aqui, este fora de campo do preenchimento iconográfico reside unicamente na memorabilia acumulada pelo imaginário do espectador: esta espada (o revólver) pode ser a de Salomé ou a de Judite, mas o essencial a reter é o seu gume iridescente de luz, que vai trazer à Terra Justiça e reconciliação (ao filme). O decisivo ato final se urde e se forja dentro da minha cabeça. Para acabar, digo que o cinema nos mostrou muitas cenas de despertares de sonho, mas poucas tão originais/originárias (pensemos por analogia no sonhar acordado suscitado pelas associações de imagens de mestres videntes do cinema mudo, como Murnau e Feuillade) como este sono desperto aqui: no contracampo dos tiros dados contra a parede, vemos o anjo com a asa de cartolina amassada sobre a cabeça, um fio de sangue coagulado, alvo de um outro tiro, um arremate sonhado dentro do sonho; depois o campo da parede salpicada de furinhos espessos e, finalmente, o Grandés de olhos recém-abertos, abalroados de sono ainda.
Arrieta filma a noite até seu fim e desenlaces tintos de negrume, mas é para a manhã que surge e suas ações comezinhas que ele reserva a tela preta, com o trinado estridente do telefone ao fundo; o cinema, como tudo aquilo que realmente significa ou importa, é o lugar de uma infinidade de que a imagem foi a máscara fatal e atávica, e portanto eterna.
Le Jouet criminel é exibido no dia 6 de Junho (19h30) na sala Luís de Pina na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito da retrospetiva e carta branca dedicada a Adolfo Arrieta.