Lightyear (Buzz Lightyear, 2022), de Angus MacLane, é daqueles filmes que sofre com o peso da obsessão pelos franchises cinematográficos que grassa em Hollywood. A primeira coisa que se soube quando este filme foi anunciado através de um tweet de Chris Evans, o actor que dá a voz ao protagonista Buzz Lightyear – conhecido por ser um dos famosos brinquedos da saga Toy Story, que deu à Pixar asas para voar enquanto estúdio nos anos 1990 – é que seria um spin-off dos filmes, quatro já produzidos entretanto, e que a história giraria em torno de Buzz, mas não o brinquedo, antes o homem chamado Buzz em que depois o brinquedo se baseou. Era um pouco difícil pensar em que medida seria necessário fazer-se um filme sobre o humano-em-que-o-brinquedo-é-inspirado, mas a Pixar já conseguiu fazer filmes sobre a importância da tristeza, o que é a nossa alma ou o nosso propósito da Terra (mais do que uma vez), por isso se alguém conseguiria tornar esta premissa em algo interessante seriam eles.
Ao mesmo tempo, parece um gesto que tresanda a apaziguamento de accionistas: o tipo de coisa que faria brilhar os olhos dos donos das acções da Disney não com corações, mas cifrões. “Até ao infinito e mais além”, especialmente quando a ideia é pegar numa das mais adoradas séries de filmes (para crianças e adultos) e fazer uma espécie de “reverse-engineering” em que o resultado está em contraste tonal com o original. O que é uma pena. O que poderia ter sido um filme de aventuras divertido, se bem que com uma temática complexa (às vezes pesada) e conceitos específicos em relação a viajar no espaço, fica com um peso desnecessário ao ser associado às personagens de Toy Story. Tivesse sido um filme original e teria certamente beneficiado com isso.
No fim de contas, não é tanto um filme sobre o homem-que-inspirou-o-brinquedo. O filme explica em dois intertítulos iniciais algo que o marketing não conseguiu durante anos. É, antes, o filme preferido de Andy (o humano de Toy Story e o futuro possuidor de Buzz, o brinquedo), que o fez desejar ter Buzz Lightyear, o Ranger do Espaço, como brinquedo. A partir daí, só a catchphrase (e mesmo assim, num contexto tão diferente e com uma entonação tão distinta que nos perguntamos se será bem assim que funciona), Buzz ser um Ranger do Espaço e ter aquele fato é que mantém a ligação com Toy Story. O resto é uma história sólida-mas-não-surpreendente-assim sobre um astronauta, perdão, Ranger do Espaço que aprende que tem de viver com os seus erros e não deixar que a vida lhe passe ao lado, quando está tão focado numa missão que pode ter perdido a sua razão de ser.
Lightyear é o Interstellar da Pixar. Lida com um personagem que tem em cima de si o peso de salvar a humanidade, o que implica abdicar anos da sua vida, perdendo assim tudo aquilo que é vivido na sua ausência.
Os últimos filmes da Pixar — Luca (2021), de Enrico Casarosa, Soul (Uma Aventura com Alma, 2020), de Pete Docter, Turning Red (Estranhamente Vermelho, 2022), de Domee Shi – têm algo de muito especial que os distingue, não só de outros filmes da Pixar, ou de outros filmes animados, mas de outros filmes. A delicadeza de Luca é das coisas que mais me cativou em 2021 e em Soul cativaram-me os conceitos e a animação incrivelmente detalhada e realista. Turning Red tem como pano de fundo, talvez pouco subtil, a ideia de período e emoções femininas e tiro o meu chapéu a quem deu espaço a Domee Shi (que tinha feito a bela e estranha curta-metragem Bao) para fazer um filme sobre coisas tão raramente postas no grande ecrã de forma sincera. Lightyear não tem a mesma força, mas lida com temas espinhosos – o que o retira, pelo tom, do universo onde estaria ancorado.
A premissa é tudo menos simples: Buzz e Alisha são dois Rangers que estão numa missão de exploração do espaço com mais de mil cientistas numa nave que parece apelidada carinhosamente de Nabo. Ao encontrarem um planeta com recursos potencialmente interessantes para os humanos, decidem explorar a ver o que encontram. No entanto, o que encontram é um planeta bastante hostil à sua presença. Ao tentarem fugir de criaturas e vinhas que se comportam como tentáculos, Buzz danifica o Nabo ao ponto de ficarem presos no planeta. Culpando-se, o herói promete arranjar uma solução (que implica matemática complicada para produzir um cristal que permita que se atinjam velocidades estonteantes no espaço). Começam a ser feitos testes que Buzz, como piloto, se dedica a realizar até terem o resultado desejado. Contudo, isso implica perder em quatro minutos de voo espacial, quatro anos da sua vida (se isto parecer o tempo de produção de um filme animado, não é pura coincidência). A velocidade a que ele viaja, nos testes, faz com que o tempo flua de maneira diferente para ele e para as pessoas no planeta. Quando regressa da primeira vez, o choque da descoberta (que não devia ser um choque para astronautas, cientistas ou Rangers do Espaço…) só reafirma a sua necessidade em corrigir o erro de estarem no planeta hostil por sua causa. Mas à medida que Buzz tenta desesperadamente completar a sua missão (com a qual talvez só ele se preocupe), a vida de Alisha (e de todos os outros habitantes) vai correndo. Ela conhece a mulher da sua vida e tem uma família. E Buzz não está presente.
No meio disto, há, claro, personagens deliciosos e divertidos. A Pixar sabe bem como os criar. Sox, o gato-mecânico de apoio emocional que é um genial canivete suíço ou Izzy, a aspirante a Ranger do Espaço que tem medo do espaço são dois dos factores charmosos do filme. As ideias mais poderosas resultam em algo bem mais convencional quando um bando de robots vem pôr em perigo a colónia humana que se formou neste planeta de vinhas com consciência. Os Rangers do Espaço agora são apenas uma equipa de aspirantes sem grande jeito, mas mesmo assim terão de lutar contra o domínio de Zurg. Lightyear é (tematicamente falando) o Interstellar da Pixar. Lida com um personagem que tem (ou coloca) em cima de si o peso de salvar a humanidade (ou os humanos que lhe são próximos) e tem uma missão que implica abdicar anos da sua vida, enquanto vai perdendo tudo aquilo que é vivido na sua ausência.
Com a ajuda de alguns novos amigos e a neta da sua antiga companheira de aventuras, bem como o gato mecânico – não esquecer o gato mecânico – consegue aprender algumas lições necessárias acerca da necessidade de viver com o falhanço e de se adaptar à mudança dos tempos. Quando estamos em plenas aventuras espaciais, o filme é bastante divertido. Mas talvez divertido esteja aquém daquilo que se espera de um filme da Pixar. E se este é o filme preferido do Andy, por que é tão insosso? E já que estamos a fazer perguntas… que raio tem tudo isto a ver com Toy Story?