Umarete wa mita keredo (Nasci, mas…, 1932), um dos últimos filmes mudos de Yasujirô Ozu, encena em bom ar de comédia recortes da vida de dois pequenos irmãos, Keiji e Ryoichi (Tomio Aoki e Hideo Sugawara), que se mudam para os arredores de Tóquio com os pais. Nova vida, nova escola, novos encontros e confrontos. Um filme que se projecta com jovialidade nos gestos e olhares amplificados pela mise en scène afinadíssima do mestre Ozu. Foi considerado uma obra-prima de grande maturidade pelo crítico Donald Ritchie que o elogia como peça rara do cinema mudo no Japão tendo em conta, também, que o país perdeu muito deste espólio, causado pelos abalos dos tremores de terra e bombardeamentos de guerra. Ohayo (Bom Dia, 1959), mais tarde, será uma espécie de remake de Nasci, mas… com as devidas transformações sociais, alargado a um bairro e às inovações tecnológicas dos novos tempos.
O título, na versão traduzida, joga com o início de uma frase que fica em suspenso, “Nasci, mas…”, parecendo querer abrir-se a uma explicação interrompida. Ozu parece gostar da conjunção – lembre-se o título Daigaku wa deta keredo (Graduei-me, mas…, 1929), outro filme mudo, a brincar com condições adversativas que se prolongam nas imagens. Em Nasci, mas… o tripé baixo da câmara, à altura das crianças, adquire ângulo privilegiado que se dá à perspectiva dos miúdos que lideram quase tudo aqui – as crianças ocupam o filme, ocupam o espaço narrativo, as acções, o conflito, dando-se a uma representação plena de graça e atitude. Ozu joga com a influência do slapstick nos seus traços burlescos, ao sabor de Chaplin e Keaton, aplicado no tom e na forma, fornecendo às crianças um importante papel expressivo na manifestação dos comportamentos. Há uma certa descolagem de condescendência geracional face à omnipotência infantil que se esbatem na comédia, transferida ao protagonismo dos jovens actores que extravasam sob o efeito de uma encenação cheia de ritmo.
Tudo está em pleno no desenho dos planos e na construção da mise en scène em combustão, na qual se juntam e se isolam os rebeldes dos progenitores, e gira a roda da contestação dos miúdos contra a hipocrisia dos adultos.
O papel das crianças decorre de forma natural numa resposta automática de quem está a chegar a um lugar e é logo confrontado com um bando de crianças a querer medir forças. Roubar o brinquedo ou fazer-se valer da estatura e robustez para intimidar nem sempre é a melhor arma frente à astúcia. Sem ser preciso arrepiar caminho de natureza mais educativa, ou portadora de mensagem, Ozu deixa às crianças a criação da sua própria lei. Perante este mundo novo a bola está do lado delas.
O universo da família, que mais tarde o realizador vai apurar tematicamente com peculiar e rara intensidade, tem aqui a sua inscrição, servindo ainda de pretexto para uma reflexão social e afectiva em tom de comédia. A espontaneidade dos miúdos autonomiza-os nos comportamentos e na forma como mostram os seus desejos mais simples, as preocupações imediatas, os pequenos gestos mais prosaicos, tomando o pulso do filme com gags deliciosos. Logo à partida, confrontados com o bando opositor das outras crianças, os irmãos resolvem o temor que estes lhes provocam faltando às aulas. Não deixam de se exercitar na caligrafia, num processo de auto-aprendizagem e avaliação transversal que chega à nota máxima – a imaginação vale tudo!
Nesta reinvenção, autorizam-se a viver os constrangimentos a que a sociedade das pequenas criaturas os obriga. Os irmãos criam cumplicidades entre eles e arranjam um novo aliado, o vendedor de saké. Assumem-se posições de força no jogo da infância, a competição faz-se para se ser mais forte, mais esperto, mais malabarista; é preciso temperar as hostilidades, para isso, é importante cumprir alguns rituais de iniciação para pertencer ao grupo. Comer ovinhos de pardal (com efeitos nefastos para o cão, cobaia do petisco), conduzir com sucesso o jogo de matar (a um gesto ordenado, a pessoa tem de se estender no chão como morto), cumprir rituais com laivos de crueldade (os tamancos de madeira colocados na cabeça dos derrotados de jogo), tudo vale. Entre correrias à solta, no meio de trilhos de comboio (Ozu e o comboio), passagens de nível, salas de aula das crianças inquietas, salas dos adultos entediados, a câmara movimenta-se; cancelas que sobem e descem, trocas de galhardetes entre os miúdos, e mais lutas. O filme progride em ritmo e graça.
A questão da superioridade dos respectivos progenitores vem ao de cima. Os modelos paternais são colocados na balança; para cada um, o seu pai é o mais forte. É inequívoco.
Ozu encena um jogo curioso de paridade nos gestos entre os irmãos, coreografando mimeticamente alguns dos seus movimentos. Também em grupo os miúdos, quando espectadores de uma situação, vão-se inclinar para o mesmo lado da acção, movimento que dá uma imagem reveladora de aliança consertada – aumentando a graça pelo reforço formal. Nestes espelhos de comportamento vemos uma verdadeira coreografia de brincadeiras e humor. A ideia da repetição e o mimetismo dos gestos vão produzir belos efeitos sob a permanente lucidez do olhar subtil de Ozu, que contrapõe laços e estratos socais, crianças em força e adultos que não escapam, também, à sua própria infantilidade.
Nasci, mas… é por vezes considerado o Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Zero em Comportamento, 1933) japonês, visto pelo raio libertário de um mundo posto nas mãos desafiadoras das crianças que não dão tréguas e lutam com os seus próprios meios. O espírito de Aniki Bobó, (1942), de Manoel de Oliveira pode também aqui pairar, e diz-se espírito porque há um ar que se agita, experimentado na pele de uma infância desabrida, semelhante ao olhar vivaz de Oliveira. Há ainda quem fale de um neorealismo precoce de Ozu, nesta experiência de vida dos miúdos em correria de crescimento.
Ozu na progressão narrativa de Nasci, mas… vai chegar a um ponto culminante quando os irmãos descobrem as palhaçadas do pai para agradar ao patrão, num filme amador visto em casa de Taro (filho do patrão). Tudo cai por terra e o pai admirado sai do pedestal – Ozu não gosta de heróis, Ozu o grande “destronador” (Mark Cousins) de figuras de pedestal, faz eco das suas ideias. Sem alarde como lhe é característico.
O filme fica mais denso e a revolta das crianças vem impiedosa, o confronto é de mestre: uma greve de fome é logo avançada. Os irmãos levantam as suas vozes pequenas e sem dó contra o pai, não toleram a humilhação, uma tamanha subserviência nas suas cabeças não tem lugar. Ozu não ilude as razões e faz do acontecimento um gatilho para serem projectadas razões do mundo dos crescidos, das hierarquias, do poder, do trabalho e das dependências, em contraponto com a perspectiva livre e descomprometida dos miúdos. Os planos na imagem dão tudo numa mise en scène brilhante que coloca a primazia da revolta nas mãos das crianças: virar as costas aos adultos que não merecem a sua face – plano que põe os miúdos à entrada de casa, sentados em frente ao caminho de ferro.
A rebeldia é uma lição a tomar e um movimento de crescimento. Tudo está em pleno no desenho dos planos e na construção da mise en scène em combustão, na qual se juntam e se isolam os rebeldes dos progenitores, e gira a roda da contestação dos miúdos contra a hipocrisia dos adultos. E tudo faz sentido. Filme bem disposto, gracioso e rebelde, a piscar o olho a assuntos mais sérios, sem esquecer a frescura e a resposta espontânea destes meninos pequenos que avançam com um olhar livre para questões maiores e estendem, em troca, boas razões aos crescidos para alguma reflexão.
Nasci, mas… é exibido no dia 14 de Junho (21h30) na sala M. Félix Ribeiro na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no âmbito do ciclo de cinema Ervas: Yasugiro Ozu visto por João Miguel Fernandes Jorge e Rui Vasconcelos, que decorre de 9 a 17 de Junho, em diálogo com a exposição e a publicação homónima.