Junho tem sido um mês pouco entusiasmante, e mais que isso, um mês em que a quantidade de estreias nas salas comerciais tem provocado uma fortes dispersão entre os walshianos: uns preferem o mainstream americano, outros concentram-se nos filmes português que estreiam quase todas as semanas, e outros atentam mais sobre o cinema de autor que por aí grassa. Certo é que a tabela está despida de grandes consensos ou dissensos. Talvez seja um reflexo dos tempos que correm, das múltiplas chamadas de atenção, talvez seja o tempo que convida para fora da sala de cinema, ou ainda, o simples e feliz facto de que os cinco que aqui pontuam serem, realmente, muito diferentes entre si.
De qualquer modo, é importante frisar quatro textos mais longos que foram saindo nas últimas semanas, onde se propõem olhares mais profundos sobre os filmes que ainda se encontram em sala: Ana Cabral Martins escreveu com efervescência sobre Top Gun: Maverick (2022), Carlos Natálio desiludiu-se com Donbass (2018) e Ricardo Vieira Lisboa reviu-se em Vieirarpad (2021) e revirou-se com Um Corpo que Dança (2022).
Em matéria de comprimidos cinéfilos, temos: duas cápsulas de Ricardo Gross, uma sobre o “filme do meio” português Revolta (2022), de Tiago R. Santos, e a desilusão sobre Un autre monde (Um Outro Mundo, 2021), de Stephane Brizé; e uma drageia de Daniela Rôla sobre a dança e o país a propósito de Um Cropo que Dança, de Marco Martins.
Lisboa, num futuro próximo. As sucessivas vagas da Covid-19 e as restrições impostas criaram um clima de instabilidade social que levou à revolta da população nas ruas, de forma violenta. À medida que os motins assumem uma cada vez maior escala, a pontos de ser exigida a intervenção militar externa, um casal convida dois amigos (Cristóvão Campos e Margarida Vila-Nova) para jantar, onde serão revelados segredos que põem em causa a relação de Paulo (Ricardo Pereira) e Cristina (Teresa Tavares). O realizador Tiago R. Santos constrói em Revolta (2022) um exercício de estilo, em modo huis clos, e em tempo real, que sugere o cruzamento entre as peças teatrais de Patrick Marber – Closer, adaptada ao cinema por Mike Nichols no filme Closer (Perto Demais, 2014) – e de Yasmina Reza – Le Dieu du Carnage, adaptada ao cinema por Roman Polanski como Carnage (O Deus da Carnificina, 2011) –, com a envolvente abstracta de uma ameaça (que podia ser ainda menos explicitada) e uma coda bem ao jeito dos filmes de John Carpenter (cineasta por diversas vezes citado nos diálogos do filme).
Saúdem-se o exercício e o estilo que o argumentista e realizador pretendeu imprimir à sua longa-metragem de estreia, e saúdem-se sobretudo as figuras femininas mais fortes que eles, como é apanágio da obra do pai de They Live (Eles Vivem, 1988) e Ghosts of Mars (Fantasmas de Marte, 2001). Em particular, Margarida Vila-Nova volta a impressionar numa personagem que pode ser a mais cínica ou a mais realista das quatro. O que contribui para que o filme não seja totalmente conseguido decorre do compromisso entre o naturalismo e a estilização dos conflitos e da linguagem, naquilo que talvez seja um amontoado de referências já demasiado vistas. As partes de Revolta não se articulam convenientemente para um resultado mais coeso, e ficamos com um filme desigual no seu carisma e no arco da sua narrativa implosiva. Uma última nota de elogio para a fixação que Tiago R. Santos mostra pelos pés femininos. Já era tempo de termos este tropo tarantinesco no nosso cinema.
Ricardo Gross, 1 de Junho 2022
Hesitei bastante antes de partir para este texto curto. Stephane Brizé é dos meus cineastas favoritos em actividade, e poderei rever a minha opinião num próximo visionamento. O que penso agora é o seguinte. O filme anterior de Brizé, En guerre (Em Guerra, 2018) terminava com uma morte violenta; e Un autre monde é um filme mortificado do início ao fim. A sua génese está na primeira colaboração entre Stephane Brizé e Vincent Lindon: um belíssimo melodrama a meias com um filme social que é Mademoiselle Chambon (2009). Durante a sua promoção, Brizé assinalava que Lindon é uma figura que tanto podia fazer um operário como um empresário, que seria igualmente credível. Na trajectória de ambos, e ao terceiro filme em que se debruçam sobre o mundo do trabalho, Lindon chega finalmente ao papel de director de fábrica de uma multinacional. O realizador nunca escondeu que o seu coração está do lado do proletariado. Têm sido as figuras principais das suas ficções e agora que o foco de dirige para quem manda (embora nunca ninguém mande absolutamente, existe sempre um grau hierárquico superior a quem têm de prestar contas), a curiosidade prendia-se com o modo como seria apresentado o seu anti-herói (Philippe Lemesle, interpretado por Lindon).
É um homem que sofre permanentemente. O filme começa com um casal entrincheirado e os advogados que debatem um acordo de divórcio. Philippe deixara a casa conjugal e vive num hotel. Brizé repete as imagens dos rituais diários da personagem: os medicamentos que toma para suportar o stress que se abate sobre ele. Os movimentos mecânicos com que se veste impecavelmente, como um autómato que deve apresentar todos os dias uma imagem imaculada. As deslocações ao ginásio e a desumanização a que se sujeita em cima da passadeira rolante (metáfora do esforço que se dirige para lado nenhum). O drama com o filho mais novo que sofre de distúrbios psicológicos que dificultam a sua vida nos estudos e em sociedade. Os encontros dolorosos com a futura ex-mulher, que chora em todos eles (papel entregue a Sandrine Kiberlain, que personificava o novo amor da personagem de Lindon em Mademoiselle Chambon). As reuniões entre a direcção central e os responsáveis das várias sucursais, que visam o despedimento de mais trabalhadores. É um filme em ambientes fechados, claustrofóbicos, e de cores frias. Falta-lhe alguma espécie de contraponto. Percebe-se que Stephane Brizé tenha querido mostrar um homem acossado por uma existência que escapara ao seu controlo, mas talvez fornecesse algum equilíbrio a este retrato se o pudéssemos ver respirar de vez em quando.
Ricardo Gross, 17 de Junho 2022
Um momento a reter do filme de Marco Martins, Um Corpo que Dança – Ballet Gulbenkian 1965-2005 (2022): a câmara de filmar mergulhada na multidão eufórica em pleno 25 de Abril de 1974 e o repórter que interpela um senhor já idoso, perguntando-lhe o que sente perante tudo aquilo que está a acontecer à sua volta, a acontecer no seu país. O dito senhor fica em silêncio, incapaz de tecer qualquer comentário, num sorriso comprometido, sendo esse o mais eloquente dos comentários. Num documentário que traça a história do Ballet Gulbenkian através da própria história de Portugal, enquanto faz também o inverso, este é o segmento justo para “casar” estas duas linhas paralelas, ou não fosse a dança uma riquíssima forma de expressão que dispensa as palavras. E se a dança pode ser expressão máxima de liberdade, somos também relembrados do poder do coreógrafo no conformar dos movimentos do bailarino, isto para não mencionar outras tiranias do corpo, necessárias a quem queira alcançar a excelência nesta arte.
São histórias feitas de avanços e retrocessos, de uma ideia e do seu contrário. Assim vai sendo feita a história de Portugal, por um lado, um país que vai celebrando os grandes e pequenos progressos, mas também lidando com crises que se vão renovando. E assim é também, em parte, a história do Ballet Gulbenkian, ora tentando romper a pequenez, buscando uma internacionalização que permitisse chegar a outros palcos (quer através de um corpo de bailado com bailarinos de diversas proveniências, numa fase em que o ensino do ballet em Portugal era ainda insuficiente, quer através de um repertório em que figuram coreógrafos e compositores estrangeiros de renome), ora tentando recuperar uma identidade própria, partindo da riqueza cultural portuguesa. No final resta a pergunta: como é que, após um caminho tão árduo, feito de tantos progressos (e sucessos), acabamos mais pobres em tantos aspectos? Se a pergunta se refere ao Ballet Gulbenkian ou a Portugal, isso cabe ao leitor decidir.
Daniela Rôla, 21 de Junho de 2022