Lembro que quando exibido na Mostra Internacional de São Paulo, em 2001, os oliveirianos mais convictos entre meus amigos cinéfilos não gostámos tanto de Je rentre à la maison (Vou Para Casa, 2001), preferindo o outro Oliveira desse mesmo ano, Porto da Minha Infância. Já os não oliveirianos, aqueles que admiram o cinema de Oliveira com alguma distância, entusiasmaram-se bastante. Presumi que era um filme pouco oliveiriano então, na linha do que hoje me parece ser La Lettre (A Carta, 1999). Recentemente, ao rever o primeiro para um curso, depois de vinte anos, percebi que estava errado. Desde o tempo dado ao espetáculo, portanto um trabalho com a duração típica do realizador, até os longos momentos em que não escutamos os diálogos, passando pelos planos insólitos e longos de sapatos ou espaços vazios que antes eram habitados pelo protagonista, temos em Vou Para Casa um Manoel de Oliveira na quintessência.
Após o luso-brasileiro Palavra e Utopia (2000), Manoel de Oliveira retorna com um filme em francês, talvez como modo de refazer A Carta sob outros termos. E do mesmo modo que A Carta começa com um show, Vou Para Casa começa com um espetáculo teatral. Antoine Chappey, o Mr. Clèves de A Carta aparece aqui como o agente do veterano ator Gilbert Valence (Michel Piccoli), o protagonista. No mais, atores que já haviam aparecido em outros filmes internacionais de Oliveira, Catherine Deneuve, John Malkovich, retornam com a trupe tipicamente oliveiriana – Leonor Silveira, Isabel Ruth e os já então incorporados Leonor Baldaque e Ricardo Trepa. Jacques Parsi, companheiro desde os tempos de Le Soulier de satin (O Sapato de Cetim, 1985), também marca presença como o amigo do agente.
Como outros, Vou Para Casa adquire um status de filme-súmula, de um realizador que não sabe se voltará a filmar. Esse mesmo sentimento de retorno e possibilidade de fim aparecerá novamente em Um Filme Falado (2003), que retoma Viagem ao Princípio do Mundo (1997) e o final de Acto da Primavera (1963); em O Quinto Império (2004), que retoma NON ou a Vã Glória de Mandar (1990) e Palavra e Utopia; em Espelho Mágico (2005), que retoma indiretamente os filmes de casarões – O Passado e o Presente (1972), A Divina Comédia (1991), Party (1996) –; e em O Estranho Caso de Angélica (2010), que retoma um projeto fracassado dos anos 1950. Dentro dessa ideia, é muito triste, em Vou Para Casa, a perceção do ator (artista) que já não se sente mais apto a desempenhar a sua arte e se retira. Muitos, na época, associaram o filme a uma declaração de despedida cinematográfica, que Oliveira tratou de desmentir com um filme lançado poucos meses depois, ainda que seja outro filme de retorno: Porto da Minha Infância. Esses dois grandes filmes fazem de 2001 um ano mágico para Oliveira.
Manoel de Oliveira dá esse presente a Michel Piccoli: interpretar um homem com moral e dignidade, um homem que não se vende por preço algum e não aceita quando seu nível de interpretação está abaixo do que ele considera o ideal.
Gilbert Valence é reconhecido na rua, pedem-lhe autógrafos, é um gigante do teatro, um ator que escolhe os papeis que deseja interpretar. Num belo dia, seu agente lhe oferece o papel num telefilme de ação, com sexo e violência. Pagam bem, e a fama é certa. O que ele faz? O que qualquer pessoa fiel a seus ideias faria: recusa. Não é para ele um papel num filme de ação. Não lhe atrai, porque o atrairia o dinheiro? Pensar nesses termos hoje em dia parece um exagero de retidão em um mundo em que as pessoas geralmente se vendem por pouco (artistas, críticos, realizadores, produtores, toda a cadeia). Não Gilbert Valence. Ele não precisa ter mais dinheiro do que tem. Não precisa de mais fama se já tem o principal, a seu ver: prestígio. O que ele recusa é um modo de vida, uma maneira de gerir a profissão ordenada pelos vencimentos e não pela paixão. Gilbert Valence é um homem pré-histórico, e por isso tão apaixonante. Incorrigível, diz seu agente. Sim, a melhor arte é feita por incorrigíveis, quando isso significa incorruptíveis. Porque não interessa corrigir esse “equívoco” de não querer muito dinheiro. Interessa fazer o seu trabalho com o melhor que estiver ao seu alcance. Doar-se inteiro para sua arte acreditando no que está fazendo.
É brilhante, nesse sentido, a transformação do ator no personagem Buck Mulligan, do Ulisses de James Joyce, que Gilbert aceitou fazer para um filme franco-americano. O papel é pequeno, a transformação é impressionante, com seus pouco mais de três minutos dentro do mesmo plano, mas de algum modo Gilbert sente-se inapto para o papel. No primeiro ensaio, seus erros são corrigidos com paciência pelo realizador do filme dentro do filme, interpretado por John Malkovich (ator espetacular que teve seus melhores papeis com Oliveira, esse equivocadamente considerado mau diretor de atores). Novamente, em um único plano, não vemos a interpretação de Gilbert no ensaio, mas apenas a reação do diretor. Típico plano oliveiriano que nos sonega o contracampo e nos faz imaginar aquilo que outro realizador explicitaria. No segundo ensaio, vemos a cena como será filmada. Gilbert fracassa novamente na assimilação do texto. Daí o título do filme. Manoel de Oliveira dá esse presente a Michel Piccoli: interpretar um homem com moral e dignidade, um homem que não se vende por preço algum e não aceita quando seu nível de interpretação está abaixo do que ele considera o ideal.
Com isso, Vou Para Casa remete a um outro filme genial de outro grande realizador: Zangiku Monogatari (Os Contos dos Crisântemos Tardios, 1939), de Kenji Mizoguchi. Também ali há um espetáculo teatral, de kabuki, e o protagonista será colocado à prova, não por estar idoso, mas por não estar preparado. Também ali o protagonista busca a verdade e se afasta daqueles que lhe dão tapas nas costas por causa do prestígio de sua família. O Kikonosuke de Crisântemos Tardios é uma espécie de jovem Gilbert Valence. Está dada a conexão entre dois dos maiores realizadores de cinema de todos os tempos.
Vou Para Casa é o primeiro filme de Oliveira com direção de fotografia de Sabine Lancelin. Ela vinha de dois trabalhos muito elogiados, Sombre (Sombra, 1999), de Philippe Grandrieux, e La Captive (A Prisioneira, 2000), de Chantal Akerman. O plano em que Piccoli vai para casa e abandona o ensaio (a filmagem? o filme?) é seu cartão de visita. Oliveira e Lancelin trabalhariam juntos novamente em O Quinto Império, Belle toujours (2006), Cristóvão Colombo, o Enigma (2007), Singularidades de uma Rapariga Loura (2009) e O Estranho Caso de Angélica.
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Uma imensa lágrima para meu pai, que faleceu no último domingo de maio, aos 88 anos. Chamava-se Manoel de Oliveira, como meu outro pai. Não gostava muito de ver filmes, mas me levou ao cinema, em 1982, para ver The Party (A Festa, 1968) e deu muitas risadas com Peter Sellers. Espero que esteja rindo muito, onde estiver. Dedico este texto a ele.