Em Le Camion (1977), de Marguerite Duras, vemos a escritora e o actor Gérard Depardieu a ler um argumento de um filme por vir, mas que nunca o chega a ser. Duras convida o espectador a imaginar uma história. Neste acto de leitura, o espectador é convidado a entrar num filme que se apoia na palavra e no qual os elementos característicos do texto literário, da imagem e da dramaturgia se cruzam. A leitura desse guião nunca filmado, desestabiliza o espectador e desafia as convenções daquilo que se espera do cinema: fazer ver o gesto.
É pertinente situar esta obra de natureza híbrida no conjunto das várias criações de Duras. Embora se possa dizer que a obra de Duras é preenchida por romances, peças para teatro, argumentos e filmes, a verdade é que a escrita de Duras é subversiva e não se deixa limitar por géneros literários. Nos seus textos encontramos frequentemente transições entre o teatro e o romance, ou entre o teatro e a poesia. É nessa medida que a sua escrita oscila entre géneros e se aproxima de um gesto fílmico. O cinema revela-se assim indissociável no seu processo contínuo de escrita.
No caso de Le Camion, o que parece estar em jogo é justamente o projeto inacabado de um filme. Embora o texto esteja acabado, o filme nunca chegou a ser feito. É evidente que no cinema o argumento precede a realização de um filme, mas para Duras, neste filme em particular, a encenação da leitura do argumento torna-se o próprio filme. Filme esse que conta a estória de uma mulher à boleia de um camionista. As personagens aparecem à medida que a leitura avança, mas nunca são mostradas.
O filme, aquele que realmente foi filmado e que vemos, alterna entre cenas exteriores de um camião a viajar por um subúrbio parisiense e sequências interiores filmadas na sala de estar da casa da escritora-realizadora. Esse mesmo espaço onde acontece a encenação da leitura é denominado (segundo o texto) por uma câmara escura. É o lugar onde o texto é lido e se torna imagem, um lugar de mediação de formas.
Com a encenação da leitura e do diálogo entre Duras e Depardieu, o filme inscreve a palavra num discurso teatral, sem com isso se impor como um texto dramático. Embora o texto surja pela voz enquanto gesto possa ter algumas semelhanças com uma performance teatral, não é uma performance no seu todo porque a espontaneidade dos seus intérpretes (Duras e Depardieu) é contrária a qualquer performance.
No filme, é a palavra que nos permite ver, que nos mostra mais do que a própria imagem. Ouvir o texto exige que o espectador recorra à imaginação, com a qual poderá perceber a estória que nunca é concretizada em imagens. Quem vê e ouve torna-se um leitor-espectador, colocado perante um diálogo, inicialmente teatral, que é – entretanto – filmado, mas no qual o texto subsiste. Ou seja, torna-se o condutor do seu sentido. O acto de leitura que ocorre na tela parece evocar a figura do narrador, aproximando assim a oralidade que se encontra presente entre formas distintas (palavra e imagem). A imaginação e a ficção conduzem ao ato de contar uma história. Esse poder da palavra é típico do cinema de Duras. A imagem aqui seria um obstáculo para que o texto fosse ouvido. É assim que, para Duras, o imaginário (através da palavra) confronta a imagem (o cinematográfico).
A força do cinema de Duras está no poder das palavras. No entanto, é importante realçar as potências do cinema nesta obra. O movimento do camião ao longo da estrada evoca o movimento da câmara. A janela do camião convoca o quadro através do qual se vê a paisagem. Apagar ou ignorar o cinema na sua criação é impossível porque a palavra e a imagem estão em movimento, são indissociáveis, entrelaçam-se como dois átomos. A encenação do texto, lido e filmado, inscreve a oralidade na visualidade e na temporalidade do cinema. Além disso, a encenação evoca a figura do narrador, que como nos comprova a história, é uma arte que antecede historicamente todas as outras expressões de ficção.
A câmara escura não é um acaso, mas antes um espaço onde todas as formas evocadas no filme e no texto se cruzam, um lugar por excelência para os diálogos. É a construção idílica de uma metáfora em que a escrita suporta a imagem. Ao rejeitar os gestos da performance em prol da leitura dos diálogos, Duras opta por criar um efeito de distanciamento e, por consequência, evoca a escrita, a imagem e a voz através do cinema, do teatro e do texto.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.