Uma das partes mais curiosas de Top Gun: Maverick (2022), de Joseph Kosinski – um filme ostensivamente realizado por Kosinski, mas que junta colheradas de Tom Cruise (o protagonista), Jerry Bruckheimer (o produtor) e Christopher McQuarrie (o argumentista) –, é a forma como todas as falas em relação à obsolescência de Tom Cruise e do seu Pete “Maverick” Mitchell se posicionam como uma analogia para um certo tipo de cinema que está a desaparecer da máquina de Hollywood. Cruise e este filme (e uma série de coisas associadas ao mesmo, desde a estreia determinada e bem sucedida na sua teimosia em ser estreado apenas em sala à utilização de efeitos práticos de uma forma igualmente resoluta) são posicionados como uma espécie em vias de extinção que ainda não se deu por vencida. Num mundo de drones, as mãos deste piloto ainda são as melhores. Num mundo de blockbusters impulsionados pelos potenciais dólares que vão gerar e repletos de efeitos especiais, este filme remonta a um tempo em que o confronto era entre o ator, a câmara e daí resultava a magia. Um they don’t make ‘em like they used to que está presente tanto no texto quanto no subtexto – sendo que o subtexto nunca é subtil.

Mas vamos arrumar alguns preâmbulos iniciais.
O Top Gun original é um filme de Tony Scott que sai em 1986 e torna Tom Cruise numa estrela firmemente instalada no firmamento de Hollywood – juntamente com The Color of Money (A Cor do Dinheiro, 1986), de Martin Scorsese. O sorriso de Cruise e os pores do sol são deslumbrantes e poderia ser uma história de amor não fosse o ponto fulcral ser a cumplicidade entre pilotos e, especialmente, entre Maverick e Goose (Anthony Edwards). Maverick é um piloto demasiado bom e demasiado confiante, sendo Goose o seu co-piloto e melhor amigo. Ambos tentam vingar na academia aérea Top Gun. Não há propriamente um antagonista, o filme vive da evolução de Maverick quando confrontado com um mundo mais duro do que poderia imaginar. O filme original é povoado ainda por Val Kilmer como Iceman, o rival que demora a confiar em Maverick, e Tim Robbins, Kelly McGillis (o interesse amoroso) e Meg Ryan, entre outros.
A parte fulcral – e aqui é inevitável pegar em informações que eu não tinha até à semana de estreia de Top Gun: Maverick, quando vi, finalmente e pela primeira vez, o filme original – é que Maverick perde Goose. E o sentimento de responsabilidade, exacerbado pelo facto de Goose deixar uma mulher (Ryan) e o filho Bradley, transforma-o profundamente. Maverick não deixa de ser ousado, mas torna-se o tipo de wingman que Iceman quereria ao seu lado.
Há imensos piscares de olhos ao passado com uma nostalgia tingida de pôr do sol que é apenas pirosa o suficiente para derreter os corações mais relutantes.
E, agora, sim. Top Gun: Maverick. Interessa indicar a forma realista como filmaram os actores nos aviões. Kosinski deixa câmaras no cockpit do seu elenco e as imagens que resultam deste gesto tornam as cenas de ação muitíssimo viscerais e intensas, de uma maneira verdadeiramente tangível que eleva este filme a algo bastante especial. E Kosinski, Cruise, Bruckheimer e McQuarrie inspiram-se não só no filme original de 1986 para dar continuidade à história, mas também em The Color of Money, sendo agora Cruise que está no papel de Paul Newman, com uma relação complicada com o seu protegido.
Top Gun: Maverick está interessado nessa mesma ideia de passagem do tempo (e de tochas). Maverick continua a ser um piloto audaz e genial, mas demasiado individualista para ter subido na carreira. Contudo, tem tido a ajuda de Iceman e a relação dos dois é comovente por motivos que ultrapassam a mitologia dos personagens e se torna bastante meta-textual. Expulso, pelo sempre icónico Ed Harris, do seu trabalho como piloto de testes de um avião que sobe mais alto do que alguma voou, Maverick vê-se a retornar à academia Top Gun e desta feita tem de lidar com Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), o filho de Goose. Mas fora Rooster, há uma série de outros pilotos mais ou menos negligenciados pelo filme – os melhores que a Marinha tem para oferecer – incluindo o fantástico Glen Powell como “Hangman”, que utiliza o seu sorriso de forma tão letal como Tom Cruise, que consegue manter um dos sorrisos mais cinemáticos que já vi.

Há uma missão perigosa, um superior cheio de dúvidas em relação a Maverick (Jon Hamm) e uma relação entre “pai” e “filho” (Maverick e Rooster) que tem de ser reparada. No meio disso, há impressionantes voos, imensos piscares de olhos ao passado (incluindo a personagem de Jennifer Connelly, como Penny, personagem apenas mencionada no filme original), com uma nostalgia tingida de pôr do sol que é apenas pirosa o suficiente para derreter os corações mais relutantes.
O homoerotismo associado ao Top Gun de 1986 não está tão presente nesta sequela – e, por favor, vejam este monólogo do Quentin Tarantino sobre o filme para perceberem, da melhor maneira, de que falo –, sendo substituído por um firme entendimento sobre como deixar que todos os espectadores vertam umas lágrimas perante demonstrações de afecto masculino. E talvez esteja aqui a melhor indicação em que como Tom Cruise é mais do que apenas um ator que desafia as leis da gravidade e a sua saúde física em prol do nosso entretenimento, mas uma verdadeira Estrela de Cinema, com maiúsculas e tudo. Entre as várias referências ao filme original – e Rooster estar penteado, “embigodado” e vestido como o pai enquanto toca ao piano Great Balls of Fire talvez seja um nadinha demais, mas funciona porque Miles Teller consegue mostrar que também ele é carismático – Maverick regressa à frase “talk to me, Goose”. E para alguém sem qualquer ligação nostálgica a este universo de pilotos marotos, é difícil descrever o arrepio sentido.