Um dia hei-de surgir, num sonho teu,
e perder eu a vida para ver-te.
António Franco Alexandre, em Poemas
Com uma mestria de que poucos na sua época puderam fazer prova ao usar os formatos panorâmicos, em particular o Cinemascope, Vincente Minnelli não quis deixar por mãos alheias a demonstração da sua perfeita adequação para um retrato simultâneo de personagens com destinos tão diferentes como aquele que pôs diante dos nossos olhos em Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei, 1958), um filme em que tanta coisa acontece ao mesmo tempo numa articulação coral extraordinária, e se apresenta como “um amplo estudo de personagem em que Minnelli enfrentou o conformismo dos anos 50 e a repressão existente nas pequenas cidades do interior” [1].
Embarcados, desde que o filme começa e enquanto corre todo o genérico inicial, num autocarro de carreira em que apenas é visível um passageiro de costas a dormir, trajando farda militar, será com o aviso feito pelo condutor da iminente chegada a Parkman que, no contra-campo subsequente, descortinaremos que são dois os passageiros que, afinal, tinham por destino a pequena cidade de província. O primeiro a sair, um soldado desmobilizado da II Guerra Mundial, Dave Hirsh (Frank Sinatra), regressa qual filho pródigo à sua terra natal, trazendo na bagagem, livros de Hemingway, Steinbeck, Faulkner, Fitzgerald, Wolfe e carregando, à conta da experiência de escritor falhado, um manuscrito bastante amarfanhado, mas do qual não se desfaz. E traz ainda contas para ajustar com o irmão mais velho, Frank Hirsh (Arthur Kennedy), que dezasseis anos atrás o metera num internato e, entretanto, prosperara no negócio da joalharia e ocupa uma posição social proeminente na cidade como banqueiro, tendo agora Dave para contrapor-lhe um “modo de vida” em que aparece polarizado o conflito mais amplo com o novo meio.
Viajando no mesmo autocarro, a convite feito por Dave numa festa havida em Chicago, onde depois a viagem tivera início, Ginnie Moorehead (Shirley MacLaine) apercebe-se, à última hora, que Parkman era o términus da carreira, mas ao pretender acompanhar Dave e “ser apresentada à família” dele, este não deixa margem sobre o sentido do encontro que tinham tido: passada a euforia ébria, uma nota de cinquenta dólares, diz-lhe ele, permitir-lhe-á fazer a viagem de regresso.
Seria, certamente, errado transferir para o plateau de rodagem o conflito que é para ser visto na sociedade. A história de Dave, do irmão e da sua família é apenas um começo para o quadro mais amplo ficar cruelmente à vista.
Acontece que Ginnie não faz parte das que desistem, assim, ao celebrá-la como “aquela cujo amor nos faz tanta pena” (na variação que João Bénard da Costa deu dos versos de Cesário Verde) o que se declara não é só que ela é “a mais bonita personagem que o cinema alguma vez inventou”, ao mesmo tempo que é evocada como “menina e moça perdida na vida (no sentido, também, em que se diz ‘mulher perdida’, ‘mulher da vida’, tão belas expressões)” [2], mas que é igualmente aquela “através da qual o escândalo vem”.
Para não antecipar o que pode a vertiginosa passagem de Ginnie provocar naquela cidade e na vida de Dave, será de considerar a percepção que a própria Shirley MacLaine tem da personagem que lhe cabe construir: “Some Came Running mudou a minha vida de atriz. Permitiu-me combinar comédia e drama. Sorrir no meio das lágrimas tornou-se a minha especialidade. O processo mágico de moldar a representação é um exercício que ninguém mais no mundo pode compreender, a menos que o tenha levado a cabo. Eu pessoalmente preciso de conhecer as características físicas e o movimento do corpo da personagem que estou a interpretar. A partir daí trabalho para dentro. Quando cheguei ao décor de rodagem de Some Came Running, não tinha ideia de como faria o papel até descer do autocarro na primeira cena com Frank Sinatra. Olhei para baixo e os meus pés estavam virados para dentro. Percebi então que Ginnie Moorehead queria andar como se tivesse pés de pomba. Ela queria tropeçar e ficar ligeiramente descoordenada, tal como estava na sua vida. Queria caminhar pela vida com amor, colocando o bem-estar das outras pessoas antes do seu. Quando tive a certeza do movimento do seu corpo, soube que vestidos escolher. (…) Por estar tão despreocupada consigo mesma, suscitou um sentimento de calor e pena por parte do público” [3].
O argumento do filme é baseado no romance homónimo de James Jones (1921–1977), que acabara de ser publicado em 1957, repetindo-se assim o que já acontecera com o primeiro romance deste autor, Até à Eternidade, a partir do qual Fred Zinnemann realizara um filme vencedor do Óscar de Melhor Filme em 1954. Da produção romanesca deste autor faz parte ainda A Barreira Invisível adaptado ao cinema em 1964 e do qual Terrence Malick tirou o argumento e realizou o seu filme de 1998. Na experiência militar do próprio romancista como sargento do exército norte-americano, durante a II Grande Guerra, inicialmente destacado no Hawai e depois em Guadalcanal, que em Some Came Running aparece, transitivamente, marcada pelo “adiamento” de Dave em abandonar a farda militar para “recomeçar tudo do princípio» e na difícil tentativa de um ex-soldado retomar a vida civil poderia ser visto o equivalente da “barreira invisível que separa o heroísmo da loucura”.
No balanço da obra de Vicente Minnelli na década de 50, o ano de 1958 merece particular relevo, como faz notar Joe McElhaney: “Chega ao final de um ano de enorme intensidade criativa para ele, com um trabalho importante em cada um dos três gêneros em que se destacou ― o musical [Gigi (1958)], a comédia doméstica [The Reluctant Debutante (A Estreante Endiabrada, 1958)] e o melodrama familiar de pequena cidade [Deus Sabe Quanto Amei]. Cada um desses filmes lida com famílias fragmentadas que são produtos de mundos hipócritas, decadentes e massificantes – mundos em que se continua a observar certas regras de conduta social e ritual, independentemente de fazerem alguém feliz ou não” [4].
Contudo, não menor atenção será de prestar ao modo como Minnelli cultiva as suas capacidades de direcção de actores para obter os resultados pretendidos. Entre os talentos temperamentais, Frank Sinatra alimentara a sua própria categoria com episódios cuja mera evocação antecipava a tensão que acompanharia a relação de trabalho com Minnelli. Se em abono da firme convicção de Sinatra de que a qualidade do seu desempenho decrescia depois do primeiro take haveria o eco da tirada que teria proferido (“se pretender uma segunda tomada, mande tirar uma cópia da primeira”), relativamente a Vincente Minnelli, “o perfeccionista lento, que era conhecido por ir além da trigésima tomada em busca de algum efeito indescritível – geralmente de carácter visual – que ele não conseguia nomear” [5], era sabido que jamais abdicaria de ser o homem no comando. O segredo para “Minnelli se manter insuportavelmente imperturbável, assim garantindo que conseguia sempre o que queria”, mesmo quando “Frank e Dean estavam prestes a explodir com o vagar artístico de Vincente”, estará na explicação deixada por Shirley MacLaine: “Para mim, Vincente Minnelli foi um excelente realizador, simplesmente porque não dirigiu muito. Ele “deixou” que nós, atores, encontrássemos as nossas próprias personagens e o nosso próprio caminho. Dean prosperou com a liberdade que sentiu com Vincente – uma razão pela qual a sua personagem de Bama foi a melhor da sua carreira. Já Frank se sentiu ameaçado por essa forma de trabalhar porque a liberdade de escolha o expôs demais” [6] e, no entanto, também ele terá tido neste filme um dos seus melhores desempenhos.
Seria, certamente, errado transferir para o plateau de rodagem o conflito que é para ser visto na sociedade. A história de Dave, do irmão e da sua família é apenas um começo para o quadro mais amplo (em que progressivamente, “como se se tratasse de uma jukebox“, a vida social, marcada pela mesquinhez, a hipocrisia, a ganância e a repressão) ficar cruelmente à vista e para, através do confronto com os que vindo de fora (Dave e Ginnie) ou das margens (como acontece com o jogador Bama Dillert ou com o mafioso Raymond Lanchak), o conformismo se apresentar irremediavelmente exposto à propagação da “peste”.
Havia, no entanto, uma dimensão sacrificial ― oblativa ― na personagem de Ginnie que a mudança no argumento da cena final do filme viria consagrar.
Muitas vezes, ao longo da história do cinema, se recorreu a uma “avaliação diferencial” (oposição polar, diferença hierárquica, predomínio histórico) a ponto de esta se ter tornado a forma preferida pelos estudiosos para caracterizá-lo, sobretudo enquanto linguagem (em termos da sua natureza, virtualidades e efeitos produzidos). O primeiro a lançar esse “método” terá sido R. Jakobson (1933), com a oposição entre “cinema metafórico” e “cinema metonímico”, mais tarde retomada por R. Barthes (1963) antes de ser de novo matizada pelo próprio Jakobson (1967). Poderia igualmente citar-se a oposição teorizada por P.P. Pasolini entre “cinema de prosa” e “cinema de poesia” (1965) para, contrapondo estilo a narrativa, pensar “o discurso indirecto livre” como forma de acesso à alteridade; ou aquela proposta por A. Aprà (1967), sob a designação de “cinema da imagem autoritária” e “cinema da imagem transcendente”, para individualizar direcções possíveis na relação do espectador com o cinema, consoante este, preso ao ecrã numa comunicação unidireccional, seja chamado apenas a reagir, ou, ao contrário, tenha espaço suficiente para pensar “entre as imagens” e lidar com as ideias que as provocam. Uma outra contraposição identificou, historicamente, dois regimes cinematográficos que, segundo a formulação de A. Bazin (1952), opõe como duas tendências os que “acreditam na imagem” e os que “acreditam na realidade”, a que corresponderia um cinema da idade da montagem e um cinema da profundidade de campo e do plano-sequência; ou então, segundo uma outra perspectiva, que daria, preferentemente, relevo às propostas estéticas dos movimentos de vanguarda dos anos vinte, ver-se-ia o cinema de Epstein e Gance ou Vertov e Eisenstein, como “língua das imagens ou da sensação” por oposição à velha tradição aristotélica e psicológica do cinema narrativo do modelo dominante.
No entanto, relativamente ao filme Deus Sabe Quanto Amei, João Bénard da Costa veio propor, para análise do mesmo, uma formulação bem sua da contraposição que lhe estaria subjacente: “Há cineastas, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação” [7].
Se fosse necessária uma referência mais para compreender o que governa as relações entre as personagens que compõem o quadro panorâmico que nos é dado ver, a hipótese teorizada por René Girard não deixaria de encontrar aqui a sua aplicação. O desejo “triangular”, dando título ao capítulo inicial do seu primeiro livro Mensonge romantique et vérité romanesque (1961), constituindo a hipótese aí delineada e que tem o seu prolongamento natural em Critiques dans um souterrain (1976), desenvolve-se como uma ideia força, segundo a qual o homem nunca é a fonte do seu próprio desejo, porque este na sua origem emana mimeticamente dum terceiro, dum mediador que é, simultaneamente, um modelo e um rival. O desejo mimético é, pois, como uma lei incontornável de constituição do ser humano, podendo ser lido como um esquema único ainda que susceptível de variações indefinidas de que a literatura fornece repetidas versões. No esquema do desejo mediatizado, não desejar senão o que um outro deseja é a manifestação do fechamento num triângulo infernal, para o qual o sujeito é arrastado pela contaminação entre os polos da imitação e da rivalidade.
A cena, na escola, de confronto entre Ginnie e a professora Gwen French (Martha Hyer) oferece-nos uma formulação eloquente de como “trazer a mudança” a tal conflito: “enquanto os estudantes saem, aparece na frente daquela mulher que sabe tudo e não percebe nada, a mulher que não sabe nada e percebe tudo. (…) Durante toda a sequência, não disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o campo-contracampo porque a professora era incapaz de olhar para além do campo dela e ver para além das aparências a ‘rival’ que não tinha nada, not even a reputation” [8].
Destinada a ser “uma pedra que faz tropeçar e uma pedra de escândalo”, havia, no entanto, uma dimensão sacrificial ― oblativa ― na personagem de Ginnie que a mudança no argumento da cena final do filme viria consagrar.
Para compensar as páginas rasgadas para recuperar os atrasos verificados na rodagem, teriam os argumentistas sido forçados a fazer de alguma forma crescer a história e a cena cortada a Shirley MacLaine acabava também ela resgatada na mudança do final da última sequência do filme, toda rodada em exteriores, com Parkman à noite transformada numa gigantesca feira, num imenso parque de diversões, por ocasião da comemoração do centenário de fundação da cidade.
Ao contrário da versão do romance em que é Dave que é mortalmente atingido pelo tiro de Raymond Lanchak (Steve Peck), no filme, é Ginnie que para proteger Dave acaba morta. Dave tem assim uma nova oportunidade para recomeçar do princípio e Bama Dillert (Dean Martin) para, curvado à vertiginosa passagem da vida em carne e osso, por uma vez, tirar o chapéu.
[1] Mark Griffin, A Hundred or More Hidden Things: The Life and Films of Vincente Minnelli (Cambridge, Massachusetts: Da Capo Press, 2010), 284.
[2] João Bénard da Costa, “Some Came Running / Deus Sabe Quanto Amei”, em Escritos sobre Cinema, vol. 4.o, Tomo I (Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2021), 602.
[3] Shirley MacLaine, My Lucky Stars: A Hollywood Memoir, Bantam book (New York: Bantam Books, 1996), 270.
[4] Apud Griffin, A Hundred or More Hidden Things: The Life and Films of Vincente Minnelli, 274.
[5] Griffin, 271.
[6] MacLaine, My Lucky Stars: A Hollywood Memoir, 69.
[7] João Bénard da Costa, “Deus Sabe Quanto Amei”, em Os Filmes da Minha Vida – Os Meus Filmes da Vida (Lisboa: Assírio & Alvim, 1990), 139.
[8] Bénard da Costa, 137.