E parecia a Jeanne que a sua alma se libertava, compreendendo coisas invisíveis; e esses pequenos clarões dispersos pelos campos deram-lhe subitamente a sensação viva do isolamento de todos os seres, aos quais tudo desune e separa, aos quais tudo arrasta para longe de tudo aquilo que amam. Então, com uma voz resignada, ela disse: – Nem sempre é agradável a vida. O barão suspirou: – O que queres, minha filha, nada podemos fazer.
Uma vida, Guy de Maupassant (Tradução de Carlos Loures)
Un autre monde (Um Outro Mundo, 2021), o mais recente filme de Stéphane Brizé, tem início num terreno de conflito. É feita a leitura de um rol de bens, um casal está em processo de divórcio, cada um acompanhado pelo seu advogado. A discussão inicial é levada a cabo pelos advogados, uma conversa fria, feita de números e argumentos, mas rapidamente o casal vai perdendo a capacidade para o silêncio, a capacidade de se deixar representar, de delegar a sua voz, à medida que as emoções se tornam demasiado avassaladoras. Ficamos a saber que a ruptura se deve a uma impossibilidade de viverem uma verdadeira vida de casal – Philippe (Vincent Lindon) passou a ter que dedicar-se intensamente à sua vida profissional, depois de a sua fábrica ter sido adquirida por um grande grupo internacional, o que causa uma enorme frustração em Anne (Sandrine Kiberlain), que se viu sozinha na dedicação à vida familiar, reduzida a um parco número de fins-de-semana partilhados durante anos de vida em comum. A procura de realização profissional por parte de Philippe reduziu a família Lemesle a uma fotografia, a um instantâneo de felicidade – os contactos com os filhos são, em grande parte, virtuais, e a participação do pai acaba por acontecer apenas quando o filho enfrenta uma crise cuja génese facilmente situamos naquela quebra das relações familiares, numa busca de êxito a todo o custo, numa mimetização da imagem de sucesso projectada pelo pai.

Mas qual o retorno que pode ser retirado dessa vida profissional que parece tudo engolir? Este mundo dos negócios tornou-se um monstro, o objectivo deixou de ser o lucro ou mesmo a maximização do lucro, o objectivo é agora uma superação de si próprio, uma prova de coragem, é a sobrevivência numa prova jogada entre predadores.
O que temos perante nós é uma abstracção crescente face àquilo que é o produto que sai das linhas de montagem da fábrica gerida por Philippe – um processo produtivo que nunca vemos, tudo se reduz a reacções e relações pessoais (em crise), mas não há nada de material ao alcance dos nossos olhos (uma distante alusão a componentes de outros objectos, abstracções de abstracções, nada mais). E dirigir uma empresa é algo que parece reduzir-se a contemplar folhas e mais folhas de papel, sublinhando com um marcador uma eventual revelação que, de repente, possa ser a chave mágica que soluciona todos os problemas. Fábricas são, afinal, coisas do passado, obsoletas, peças que não encaixam num mundo desmaterializado. Por isso faz sentido que o sucesso ou a viabilidade de um negócio não seja algo que é demostrado por dados, por factos, por resultados, tal como Philippe tenta demonstrar, só muito tarde percebendo a absoluta futilidade da sua investida, já que o que interessa é que a fábrica não consiga cumprir os seus objectivos (impossíveis de concretizar, aliás) e que acabe por fechar, porque isso significa potenciar o lucro, transferindo a produção para um outro país com menores custos de mão-de-obra.
Encontrar uma solução para a rentabilidade do negócio da fábrica não é mais do que um MacGuffin – o objectivo é falhar, é encerrar, é partir para uma solução que possibilite a maximização dos lucros.
Há, portanto, uma enorme ironia na designação do plano de reestruturação da empresa, que leva o nome de “plano social”, uma vez que é justamente a tessitura social que é ferida (na relação do trabalhador com a comunidade e a família, mas também na relação entre os próprios trabalhadores e destes com a direcção da empresa). Nesta versão negra de El buen patrón (O Bom Patrão, 2021), nunca vemos o processo produtivo, mas também nunca vemos o luxo ou, pelo menos, o conforto que justifica todos estes sacrifícios por parte do director da empresa. Não restam dúvidas de que Brizé pretende que isso nunca nos seja dado a ver, particularmente no momento em que Philippe e Anne mostram a sua casa aos candidatos a compradores e a câmara permanece repousada na imensa tristeza dos seus rostos. Nunca vemos essa casa, tal como nunca avistamos outras abastanças. As posses não são mais do que o rol de bens lido no início do filme pela advogada de Anne. O único (triste) luxo parece reduzir-se à possibilidade de proporcionar ao filho o internamento numa clínica de repouso “topo de gama”.
Em toda esta engrenagem, Philippe parece não se aperceber que não são apenas os postos de trabalho de 58 dos seus trabalhadores que estão em risco (muito provavelmente mais ainda na reestruturação que se seguir), mas também a sua própria posição. Ele é, afinal, tão descartável quanto qualquer um dos outros trabalhadores, não sendo mais do que um peão cuja utilidade pode esgotar-se a qualquer momento. Essa aproximação é feita em gestos que aproximam as três personagens desempenhadas por Vicent Lindon em La loi du marché (A Lei do Mercado, 2015), En guerre (Em Guerra, 2018) e Un autre monde (2021) – o sentar-se em frente a um computador, a leitura de documentos, a realização de reuniões, as viagens que conduzem até aos decisores (políticos ou direcções superiores), a tentativa de construir um discurso baseado em factos perante ouvidos que não fazem mais do que cumprir um formalismo, porque as decisões já foram há muito definitivamente tomadas. Afinal, encontrar uma solução para a rentabilidade do negócio da fábrica não é mais do que um MacGuffin – o objectivo é falhar, é encerrar, é partir para uma solução que possibilite a maximização dos lucros, que produza mais umas migalhas de dividendos que deixem os accionistas satisfeitos. Este é um desequilíbrio obsceno – o de mais um ganho adicional para os accionistas, um ganho ínfimo que pouco pesará nessas contas finais, mas que é feito à custa do sacrifício da vida dos trabalhadores da fábrica, reduzidos a números em folhas de papel, eliminados apenas por não serem o primeiro nome que ocorre quando se pensa nos “verdadeiramente” imprescindíveis.

Aquilo que Philippe ensaia perante a inflexibilidade das chefias de topo corresponde a um détour algo ingénuo de Brizé, procurando fazer-nos crer na bonomia de um director de empresa que se prontifica a sacrificar uma parte dos seus proveitos em benefício dos seus funcionários. A sua proposta provoca, no entanto, algo que aguardávamos já incredulamente, a intervenção do homem coberto de uma áurea de mistério qual Feiticeiro de Oz, sempre citado, mas nunca avistado, o CEO do grupo Elsonn, M. Cooper (Jerry Hickey). Cooper, que personifica todo o modus operandi do mundo dos negócios, começa por elogiar a audácia da estratégia de Philippe, a coragem de pensar pela sua própria cabeça, o esforço em procurar caminhos alternativos. Mas isto mais não é do que uma estratégia aprendida numa qualquer formação para a liderança – arrasar a ideia de um subalterno, de um “colaborador”, é algo que exige algum bajulamento inicial, de forma a atenuar o golpe. Na verdade, os directores de empresa que apresentaram a proposta (Philippe e um outro director, os únicos restantes do grupo contestatário inicial), apresentam-se diminuídos perante Cooper, obrigados a expressar-se numa língua que não é a sua (o que é bem diferente de temperar o discurso com os ocasionais termos de business English da praxe), tomando uma posição submissa, defensiva, em sentido para ouvirem o “grande chefe”.
Se algumas das personagens da filmografia inicial de Brizé podiam ainda reflectir sobre caminhos escolhidos e caminhos preteridos, duvidando do acerto das escolhas feitas ao longo da vida – em filmes como Le bleu des villes (1999), Je ne suis là pour être aimé (2005) ou Une vie (A Vida de Uma Mulher, 2016) -, a Philippe não é concedido o espaço para essas dúvidas. Ele dá por si assombrado pela imagem do boneco que o filho utiliza na terapia, sentindo que o controlo dos fios escapa ao seu poder, não lhe restando mais do que o papel do boneco sem vontade própria.
Brizé fecha, pois, o ciclo La loi du marché (2015), En guerre (2018), Un autre monde (2021), com uma conclusão desoladora quanto à impossibilidade de encontrar uma cultura de trabalho válida numa economia que parece desajustada do tempo, em que até as tensões entre trabalhadores e patrões se apresentam como fogo-fátuo, e em que a corrida de progressão profissional e social se rege por leis relativas a um jogo que já terminou. A única lei que importa, conforme remata Cooper no seu discurso, é a lei do mercado. Uma lei que existe num plano superior àquele em que patrões e trabalhadores se movem. O que valida plenamente a propensão unificante de Lindon nos três filmes, aproximando personagens que, à partida, pareceriam pertencer a campos totalmente distintos – o trabalhador desempregado, o trabalhador em actividade, o director em actividade (tendo presente que, segundo o léxico empresarial, os directores nunca ficam desempregados, apenas se tornam “consultores”).
Apesar de um ensejo de final feliz, feliz apenas enquanto o futuro não espreita, o que marca o destino destas personagens é mesmo o ecoar da dilacerante canção de Gérard Manset que ouvimos durante os créditos finais. “Le temps n’ai pas venu qu’on se repose.”