No princípio está o título. Vieirarpad (2021) é uma contração de duas palavras: Vieira, de Maria Helena Vieira da Silva, e Arpad, de Árpád Szenes. Uma contração de dois nomes que correspondem a dois artistas que formaram um dos casais mais míticos das artes portuguesas do século XX. Esta união linguística materializa a união romântica dos dois e, também, a ideia de unidade como laço amoroso e convivial. Aqui, a contração literaliza a força do elo que os juntou de 1930 até à morte de Árpád em 1985. Mais que isso, esta combinação traduz igualmente uma propensão muito própria deste casal para a produção de uma (novi)língua própria, cheia de fonemas e vocabulário próprios, onde o português dela, o húngaro dele e o francês dos dois se fundem e recombinam segundo as necessidades da comunicação.
Além disso, esta contração dos nomes dos dois pintores é igualmente reveladora do assunto do filme realizado por João Mário Grilo, a correspondência trocada entre ambos. O que denuncia uma contradição nos termos: sendo sobre a união de duas pessoas, o filme centra-se no conjunto de escritos que estes produziram exatamente por estarem separados (só se escrevem cartas aos que estão longe). Contradição essa que afirma, inversamente, a potência do amor na sua impossibilidade geográfica e carnal. Sendo, naturalmente, um filme romântico é (talvez exatamente por isso) um filme sobre a distância e o afastamento.
A juntar a isso, uma relação epistolar é uma relação mediada pela palavra, pela caligrafia, pelos serviços de correio e pelo tempo que estes demoram a transportar as epístolas. Sendo que é exatamente essa mediação que possibilita um acesso ao espaço de intimidade do casal. Um amor não mediado é um amor inacessível a outros que não os amantes envolvidos – como se diz a certa altura, aceder a esta correspondência é estabelecer uma “ligação íntima com uma pessoa desconhecida”. Ou seja, até certo ponto, a contração que João Mário Grilo traz para o título traduz não tanto a união do casal, mas o próprio casal enquanto entidade mediada.
Vieirarpad resulta também de um culminar de abordagens a este muito particular universo pessoal e amoroso. Nos créditos do filme refere-se que este foi desenvolvido a partir da exposição Escrita Íntima que a Fundação Árpád Szenes Vieira da Silva organizou em 2014. Exposição essa que, por sua vez, resultava do trabalho de catalogação, transcrição e análise da correspondência trocada entre o casal e que daria origem ao livro homónimo da exposição. É portanto um filme que trabalha um espólio em terceiro grau. Só que, em boa verdade, fá-lo num grau ainda superior, porque a esse livro e a essa exposição acrescenta-se ainda o documentário que José Álvaro de Morais dedicou ao casal, Ma Femme Chamada Bicho (1978) – outro filme onde as recombinações linguísticas e o linguajar próprio do casal são convocados logo para o título. A abordagem do realizador resulta, assim, de uma re-re-re-mediação.
Esse pequeníssimo gesto de antecipação sonora e de “aparição” fantasmática traduz a subtileza da mão de Mário Grilo e revela as nuances espectrais que atravessam todo o filme.
Há, portanto, uma ideia de súmula no modo como João Mário Grilo aborda este caso; súmula e depuração. Vieirarpad parece reduzido aos seus elementos essenciais: as telas pintadas por Vieira e Árpád nos períodos correspondentes às trocas das cartas, as palavras das suas cartas, ditas ou simplesmente escritas, planos das paisagens que circundam as moradas onde cada um dos pintores foi habitando (com e sem o outro – Lisboa, Paris, Lyon, Dijón, Yèvre-le-Châtel e Rio de Janeiro), excertos musicais (a abertura com Canto de Amor e Morte de Fernando Lopes Graça introduz-nos num ambiente melodramático cheio de ressonâncias do cinema clássico norte-americano), ao que se junta, ainda, o eventual testemunho de um ou outro especialista, em formato talking head (ainda que estas sejam cabeças muito soturnamente falantes) e a sonorização – ligeira – de alguns quadros (o som do vento nas árvores, dos pássaros, da guerra…).
Este quase apagamento formal do filme serve dois pontos: primeiro, uma secura própria de um Ken Burns, integralmente dedicado às matérias em questão; segundo, permite que as imagens do filme de José Álvaro Morais floresçam em toda a sua elegância e efervescência. É, portanto, uma forma de generosidade e concretiza a consciência de que “o” filme sobre o casal Vieira-Árpád já foi feito, e é uma obra-prima (não é mero acaso que nos créditos finais Grilo dedique o seu filme à memória de José Álvaro e António Escudeiro – respetivamente, o realizador e o diretor de fotografia de Ma Femme Chamada Bicho). Mais, estas sucessivas camadas de afastamento que João Mário Grilo aplica à sua relação com o casal (as cartas, os quadros, o livro, a exposição, o filme) sublinham o cerne de Vieirarpad, que só a distância fomenta a exteriorização do amor.
E o momento mais belo de Vieirarpad é aquele em que João Mário Grilo recria uma majestosa panorâmica de 360º ao som da banda-sonora de Ma Femme, filmando a casa que fora dos dois, agora vazia e com a lareira apagada, para depois a fazer acender com a ingenuidade de um simples encadeado fundido que logo reapresenta a mesma cena, deste vez com a banda de som e de imagem síncronas. Esse pequeníssimo gesto de antecipação sonora e de “aparição” fantasmática traduz a subtileza da mão de Mário Grilo e revela as nuances espectrais que atravessam todo o filme – não se pode esquecer que este começa no cemitério onde o casal partilha a mesma campa e o título surge depois de uma panorâmica descendente que só pára quando o plano está completamente picado; como que dizendo, tudo aquilo a que nos vamos referir pertence ao mundo dos mortos. Sendo que essa união além vida encontra depois eco no monumental plano que apresenta as reservas da Coleção de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, onde os quadros de um e do outros repousam em vizinhança.
A juntar a todas estas camadas de (re-)mediação, há ainda uma outra (que embora possa não ter integrado o processo criativo do realizador, integra esse reticulado cultural construído em torno deste casal): uma curta-metragem que eu próprio fiz, de seu nome Le métro, Vieira da Silva (2016) e que justifica todo o interesse que aqui tenho estado a dispensar. Citando um texto que João César Monteiro escreveu para a revista Cinéfilo [a propósito de Sofia ou a Educação Sexual (1973), em que explicava que “também eu já fiz uma [Sofia], mas a minha era uma senhora educada”, referindo-se à sua curta Sophia de Mello Breyner Andresen (1969)], também eu já realizei um filme sobre Vieira da Silva (sendo a educação da minha uma questão em aberto).
Se é certo que nem eu sou Monteiro, nem João Mário Grilo é Geada (cruzes credo, para ambos!), não resisto a encerrar estas linhas com uma re-mediação minha desse texto, naquilo em que ele se cola à minha leitura do filme de Grilo (e se aproxima do seu método de apropriação e acolhimento). “Tem tudo no sítio, as partes nas partes, o visto fotogénico. Parece, pois, bem encarreirada para um destino glorioso. Francamente, gostei. Muita frescura e picante, não o picante grosseiro das nossas cariladas, mas o picante tão leve e subtil dos vinhos da Champanha.”