O assassinato de John F. Kennedy (em Dallas, Novembro de 1963) tem passado por estas crónicas como o acontecimento fulcral do século XX: espécie de buraco negro que tudo suga e sobre o qual não há luz suficiente que o ilumine de modo a aclarar a grande conspiração, que desde o primeiro instante foi tomada pela ficção das paisagens dos media, a partir da qual surgem permanentes réplicas provenientes das mais variadas perspectivas.
A trama que precede a narrativa de Winter Kills (1979), de William Richert, é-nos familiar: a 22 de Fevereiro de 1960, Timothy Kegan, Presidente dos EUA, é assassinado a tiro por um sniper numa visita a Filadélfia, Pensilvânia. A investigação encontrou apenas um atirador solitário – Willie Arnold, que acabou assassinado por Joe Diamond (um proprietário de um clube nocturno), antes que pudesse ser julgado. A sátira a tudo e a todos convocará para a trama: a polícia e os serviços secretos, a dinastia Kegan e a América Latina, a máfia e Hollywood, o media landscape.
O filme revelou-se um desastre de bilheteira e de acolhimento crítico, em grande medida pela blasfémia apontada a um dos ícones da América, mas valerá a pena olhar com alguma atenção para ele, para a forma paradoxal como, no meio da paródia, se revela muitas vezes verdadeiro – como aliás se verifica com os simulacros, sendo muitas vezes certeiro no diagnóstico deste imenso território dos poderes das imagens da América. Mas, antes disso, ainda uma nota a reforçar esse dentro e fora em que Hollywood é um território fértil, nessa mácula depositada sobre um filme que ousou reescrever as histórias e as especulações em torno do assassinato do seu presidente amado. Os produtores do filme, Robert Sterling e Leonard Goldberg, enriqueceram com o negócio da marijuana, tendo no currículo a distribuição nos EUA do franchise erótico francês Emmanuelle. Os custos de produção de Winter Kills descambaram até que foi declarada a bancarrota do projecto. Leonard Goldberg foi assassinado a meio da produção, presumivelmente pela máfia que tinha investido no filme, sendo que mais tarde Robert Sterling foi condenado a 40 anos de prisão em resultado do tráfico de drogas.
Se só o media landscape detém a big picture, o poder é tanto que já ninguém o controla, pelo que aquele grande voyeur é autónomo, é um olhar que controla o mundo.
Na primeira sequência de Winter Kills, é trazido à presença de Nick Kegan (Jeff Bridges) um homem moribundo, integralmente ligado como uma múmia, que diz ter sido contratado para matar o presidente há 19 anos, como segundo atirador, pelo que Willie Arnold foi o bode expiatório: I’m only a patsy, foi a primeira declaração de Lee Harvey Oswald quando foi detido após o atentado contra Kennedy. O homem morre, deixando a indicação do lugar onde a carabina poderia ser encontrada, num apartamento sobre a City Hall.
Esta sequência que se liga com a seguinte estabelece, então, uma deliberada conexão com o património de imagens da história do cinema, com a múmia e a identidade oculta que Humphrey Bogart passeia em grande parte do Dark Passage (Prisioneiro do Passado, 1947), verdadeiro tour de force da câmara subjectiva, mas também na figura do sniper, o atirador colocado numa posição sobranceira, como uma sombra que mata oculto pela distância. Bridges encontra, então, a carabina no sítio indicado e pouco depois algo inesperado acontece. São dois planos, o do rosto de Bridges e outro picado sobre a praça (o ponto de vista do sniper), em que o espectador estremece na pungência daquele simulacro, algo tangível ao que sucedia em JFK (1991), quando Oliver Stone colocava Kevin Costner e a sua entourage ao nível da Dealey Plaza, em Dallas, a simular um possível triângulo que teria cercado o Lincoln de Kennedy, que era acompanhado com um som, um estoiro suportado pela memória do protagonista.
Sempre a calcorrear narrativas paralelas ao roteiro da morte oficial de Kennedy (a ditada pelo relatório da Comissão Warren), sucedem-se um sem número de conspirações e fraudes, de personagens e impostores, em acontecimentos que se atropelam: um caudal que muitas vezes o espectador tem dificuldade em acompanhar. Depois de recuperarem a arma, estão sentados num automóvel, Bridges, um amigo político da família Kegan e um sargento de polícia, e ouvem o condutor a perguntar onde devem entregar a arma. À sugestão do polícia é entregá-la ao FBI, ao que alguém responde – “They probably build it”. Rebentam em gargalhadas e quase em simultâneo, um sniper invisível mata os companheiros de viagem de Bridges. Algumas sequências depois, acentua-se o delírio das personagens e das acções, quando o meio-irmão do presidente assassinado procura Z.K. Dawson, militar e um dos homens mais poderosos dos EUA, interpretado por Sterling Hayden. Integrando o simulacro como eixo da sequência, Dawson e um conjunto de tanques de guerra perseguem o automóvel de Bridges, até que no fim da manobra, que incluiu bombardeamentos, o militar no fecho do cerco diz a Bridges que a América é uma terra de amantes de conspirações, com o mesmo tom que um racista e homofóbico diria nigger lovers.
Com a entrada em cena de John Huston, que interpreta o pai do presidente morto, começamos a pensar no poder de Hollywood e na transmissão desse legado, ele que foi um dos últimos cineastas clássicos, tendo trabalhado como realizador ainda durante a década de 1980, até ao crepuscular The Dead (Gente de Dublin, 1987), com pontuais participações como actor. Huston é, então, o patriarca Kegan, representante da América, do seu estilo de vida, da preponderância dos negócios, um manipulador com estreitas ligações a Hollywood (que surge projectada na personagem de Lola Comante, interpretada por Elizabeth Taylor, um quase cameo, mas muito representativo, ela que foi a última rainha do star system – conforme J. G. Ballard enunciou em Crash, ao colocar Vaughan, o Frankenstein, decidido a imolar-se com ela numa bola de fogo).
O moralismo da América é uma das denúncias em surdina – mas em permanência – no filme, intensificado nestas ligações perigosas com Hollywood. Lola Comante forneceria o presidente com uma colecção de aspirantes a estrelas, até que uma delas se suicidou, o que provocara um prejuízo considerável a um estúdio. E daí começou o desmontar o castelo de cartas que conduziu ao atentado, uma responsabilização de Hollywood, mas também o desmascarar dos super-machos, que Kennedy interpretara, num currículo que chegara até Marilyn Monroe (a bela adormecida, morta apenas um ano antes dele, em circunstâncias que apontam o suicídio como desfecho de um conto de fadas pintado a negro).
Mas a parcela determinante de Winter Kills e que dissolverá a trama, corresponde à entrada em cena de Anthony Perkins como John Cerruti, que gere uma infraestrutura do império Kegan, um big brother global: um conjunto de satélites que vigiam negócios e demais actividades, do Monte Sinai ao canal do Panamá, imagens e sons, por onde passam guerras e testes nucleares, numa óbvia réplica da atmosfera do orwelliano 1984. Um cenário ballardiano (uma bateria interminável de monitores e gravadores de som, na obsessão pelo controlo e pela vigilância, como as casas na costa espanhola do romance Cocaine Nights, de 1996), onde Perkins começa por se apresentar como um mero gestor daquele ecossistema, para desconfiança do espectador que se lembra do seu Norman Bates.
Em Psycho (Psico, 1960), Perkins espiava a protagonista Janet Leigh por um buraco, uma mulher perdida que Alfred Hitchcock lhe permitiria liquidar ainda antes da primeira metade do filme, o que por uns momentos deixava o espectador desamparado, até que todos percebíamos o gesto de grande modernidade do cineasta: afinal o protagonista era o voyeur. A psicopatologia, tal como a pensava Ballard, seria o derradeiro reservatório da imaginação. Perkins será, então, confrontado com a responsabilidade da autoria da grande conspiração, mas ele diz ser apenas um vigilante, uma peça num sistema autónomo de “buracos negros de informação, galáxias dentro de galáxias, múltiplos universos expandidos de informação”. Se só o media landscape detém a big picture, o poder é tanto que já ninguém o controla, pelo que aquele grande voyeur é autónomo, é um olhar que controla o mundo.