Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Pedro Henrique, o muito bom(bástico) entrevistado desta edição, é o realizador de Frágil (2022), filme que, custando os mais exuberantes 0€ de todo o sempre, lançou o caos no passado IndieLisboa, devido a um protesto corajoso que entrou directamente na história não só deste como de todos os festivais, talvez podendo motivar uma reflexão sobre o seu modo de funcionamento, o caldo cultural do cinema português, a “mentalidadezinha à portuguesa” ou ainda o sistema capitalista como um todo. Quisemos ser como o filme – delirante, mocado, danado, mas também sem meias tintas e, como esta conversa atesta, mais ou menos secretamente cru(el) – e ir ao encontro deste jovem cineasta com uma série de questões que obviamente é tão lúdica quanto necessariamente séria. Talvez o humor seja uma bomba-relógio aqui, porque o sentimento de urgência e gravidade vai fazendo “tic-tac-tic-tac” até rebentar para lá das entrelinhas do exercício “de cromos” em que Pedro Henrique tão generosamente embarcou. “É preciso combater, é preciso resistir” podia ser o lema das respostas às nossas perguntas (como manda a rubrica) bem descabeladas.
1. Seis anos de trabalho, enfrentando todo o tipo de dificuldades, para finalizares esta tua longa-metragem, justamente intitulada Frágil. Agora que já conseguiste terminar o filme e até já o passaste na Competição do IndieLisboa, deves ter tudo o que são produtores e distribuidoras à perna, não? E já fumas uns charutos e comes lagosta?
Ora bem carxs walshianxs, em vez de começar pelas respostas julgo que é importante reflectir um pouco, e em primeiro lugar, sobre a qualidade das perguntas. Há, como é evidente, muitas formas de responder a esta entrevista, mas assim de forma meio esquemática surgem-me de imediato três opções à vista: uma seria a de não responder, o que é sempre uma opção para qualquer contexto não-coercivo, claro; outra a de tentar competir em termos humorísticos com a ironia e o nonsense das perguntas (que me parecem advir de uma leitura do próprio filme Frágil como sendo, justamente, irónico, satírico e/ou absurdo, entre outros possíveis adjectivos); e uma terceira opção é a de, correndo o risco de parecer demasiado sisudo, tentar ignorar o tom irónico e levar as perguntas a sério. Uma vez que me parece interessante o desafio de responder a esta entrevista a primeira opção fica automaticamente excluída. E como não gosto do caminho competitivo de tentar ludibriar as perguntas, decidi optar pela “terceira via”, ou seja, pela opção de produzir respostas mais ou menos levadas à letra. De qualquer forma, há uma dimensão provocatória nas perguntas a que me parece interessante o esforço de responder de forma “honesta”, ou pelo menos literal, sem tentar fugir ou ser mais esperto do que as próprias provocações (sabendo que, a existir tal provocação, ela me parece vir de um lado genuinamente amistoso, bem-disposto e até mesmo lúdico; pois bem, joguemos ao jogo das entrevistas).
Atirando-me, pois, à primeira pergunta, até este momento em que escrevo houve muito poucos contactos vindos “de cima” depois da estreia no Indie e do protesto que realizámos, o que se explica pela forma como as diversas entidades do cinema estão implicadas umas com as outras e, da mesma forma, se protegem (pelo contrário, muitos contactos “de baixo”, a propósito do filme ou do protesto, desde pessoas que já conhecia e amigxs próximxs, a convites de cineclubes universitários e a pedidos de amizade no Facebook dxs mais completxs desconhecidxs). Não exagero quando digo que o sistema é estruturalmente corrupto (toda a gente depende da mão de alguém: até xs críticxs recebem grande parte das suas pilhas de filmes dos próprios festivais de cinema, por isso, e como é óbvio, resistem a tecer-lhes críticas).
De facto, na semana ou duas que se seguiram ao protesto que realizámos no IndieLisboa caí na ingenuidade de acreditar que a maioria dos meios de comunicação social podia não ter ouvido falar de nada. Sabia que tinha havido algum impacto, claro, mas podia não ter sido o suficiente para se espalhar para além de uma esfera social imediatamente mais próxima. Mas, quando me apercebi que havia malta nas Caldas da Rainha, no Porto ou no Algarve que tinham ouvido falar do protesto, quando vi as quase mil visualizações que obteve a publicação do discurso no meu blogue, quando discuti a dimensão política da nossa “performance” com amigxs do cinema que me confirmaram que o protesto era a “conversa da aldeia”, apercebi-me de que, de facto, era bem ingénuo acreditar que xs jornalistas e críticxs não tinham ouvido falar de nada. Pelo contrário, ouviram falar e bem!, o que tem como única consequência possível a infeliz dedução de que estivemos (e estamos) perante uma estratégia evidente por parte da comunicação social e de diversas outras estruturas mediáticas de conluio para com o “sistema”, em particular para com as instituições criticadas: o IndieLisboa, o ICA, a Fundação Gulbenkian ou a Escola Superior de Teatro e Cinema. Afinal, só se falou do protesto na Timeout (e porque havia uma jornalista de lá que estava presente na sessão), num site chamado Cinema 7 e depois assim por alto num blogue ou outro que comentaram o filme. Expresso, Diário de Notícias, Público/Ípsilon, entre tantos outros, preferiram a conivência para com as estruturas do poder, ou seja, neutralizar e silenciar o protesto e o seu impacto. E a isto chamamos nós a liberdade de expressão. LOL.
Justamente, os convites que tivemos para exibições do filme vieram até agora quase exclusivamente de cineclubes (por exemplo: o Cineclube da ESAD, nas Caldas da Rainha) ou de faculdades (como a FCSH, pelas mãos do professor Pedro Florêncio ou o Cinema-fora-dos-Leões, de Évora). Houve também uma exibição do filme numa free party de amigxs no Alentejo logo no fim-de-semana a seguir ao Indie. Para mim estes convites são especialmente importantes, precisamente porque vêm algures de “baixo”, de uma esfera onde ainda é possível ter alguma participação activa, horizontal, que dispense as mediações e a foleirice do jet set, do exclusivismo e das competições. Poder mostrar o filme e discuti-lo numa sala de aula tornada um espaço de discussão horizontal é para mim de enorme importância. Tal como numa rave ou nos vários espaços nocturnos que constituem o circuito de distribuição “alternativo” (pelo menos porque está à margem dos cinemas convencionais e dos festivais) que planeámos para suceder à estreia “mainstream” no Indie e no decorrer de 2022: é ele constituído por espaços como o Desterro (Junho), o Passos Manuel (Julho), a ZDB (Setembro), as Damas (Outubro) e o Arroz Estúdios (Novembro). Outros virão em 2023, espero, quero muito mostrar o filme em lugares onde há tradições de resistência e onde tenho muita malta amiga, por exemplo no Barreiro e em Cacilhas. De distribuidoras comerciais tivemos até agora um convite que ainda não está fechado e que por isso não irei mencionar, mas é possível que o filme venha a estrear comercialmente em sala ainda este ano. Posso apenas dizer que claramente não será na NOS, até porque não teria interesse em exibir o meu filme num multiplex. Esses espaços são para mandar abaixo.
Sobre os charutos e a lagosta, confesso que prefiro cigarros de coca.
2. Fizeste tudo neste filme: realização, montagem, argumento, produção… Queres ser o novo Vincent Gallo ou quê?
Na verdade, não fiz tudo, o que pode ser comprovado pelo genérico final de 8 minutos que credita uma lista de quase 200 pessoas e cuja duração pretender ser, precisamente, uma forma nem que seja simbólica de valorizar todo o trabalho que foi necessário para que o filme pudesse ser concluído. Gosto muito desse genérico final e do tempo que demora, bem como do encadeamento de três músicas que criam uma progressão de mood que define os próprios altos e baixos do filme: começa com um technão super deep e hipnótico do Shcuro chamado “Deviation”, depois entra a bem mais alegre e esgrouviada “Magic”, uma malha footwork da Caroline Lethô que sampla uma música que adoro, a “Jumpin’ Jumpin’” das Destiny’s Child, e termina com a “Shrine” do Ppueblo, uma música ambient em tom bem mais melancólico que a meu ver fecha o filme de forma comovente sobre os agradecimentos finais. Houve quem dissesse que o genérico era muito longo, que devia ser cortado, mas resistimos a isso. Os genéricos são uma forma de reconhecimento do trabalho feito. Uma das poucas que temos até agora, visto que o filme ainda não recebeu o financiamento do ICA para divulgação internacional, financiamento esse que só é possível porque o filme foi seleccionado para um festival de classe A, o festival de Ann Arbor, nos EUA, onde foi exibido em Março deste ano. Esta lógica é tão subserviente e tão paradigmática da “mentalidadezinha à portuguesa” que nem consigo arranjar palavras… “Se o estrangeiro gosta, então é porque é bom! Demos-lhe guita!” O mesmo ICA que recusou financiamento para pós-produção (o concurso de finalização) durante anos e que escreveu uma das críticas simultaneamente mais destrutivas e genéricas que recebemos até agora. Vale a pena deixar aqui um dos comentários do ICA, que já foi citado no discurso lido na estreia do filme no IndieLisboa: “A versão provisória apresentada é extremamente débil e inconsistente, com a total ausência de uma qualquer linha narrativa. O humor e a sátira sugeridos na nota de intenções do autor não funcionam minimamente. A versão deixa perceber várias fragilidades formais e visuais, sem conseguir o resultado esperado com o dispositivo formal escolhido.”
Seis anos de trabalho, dezenas, senão centenas, de horas gastas em candidaturas para tentar ganhar uns trocos, e a entidade pública que financia o cinema em Portugal congratula-nos com estas 5 linhas miseráveis que não querem dizer nada…
Voltando à questão feita, e da qual já me distanciava, se desempenhei várias funções foi fundamentalmente por dois motivos: primeiro meio por necessidade (leia-se: falta de dinheiro) o que não implica, ainda assim, que não tenha havido trabalho colaborativo tanto na escrita do argumento como na montagem, embora esse trabalho tenha sido sempre hierarquizado (ou seja, em última análise, eu mandava); a segunda porque muito embora acredite profundamente no imperativo do trabalho em conjunto que nos tire um bocado do ego e das suas manias, a verdade é que acho importante lutar contra a especialização. Acho o modelo de ensino da ESTC completamente errado e ao serviço das fórmulas industriais que urge combater: não devíamos ser obrigadxs a especializarmo-nos numa só área, mas, pelo contrário, incentivadxs a aprender e a gostar de praticar todas elas. Hoje em dia arrependo-me muito de não ter seguido som ou imagem, que eram áreas a que eu, na altura, e estupidamente, dava pouca importância. A Escola de Cinema fomenta essa desvalorização ao separar as chamadas “áreas criativas” das “áreas técnicas”. Esta divisão é completamente absurda e faz parecer que há uns/umas génixs autorxs que estão por detrás da realização ou do argumento e depois uns/umas operárixs sem qualquer valor que se encarregam do som, da imagem, da montagem… Esta dicotomia reflecte a forma como o capitalismo concebe o trabalho artístico industrializado e, na verdade, o trabalho no geral (pelo menos o trabalho “fordista” de linha de montagem, ainda não afectado pela ideologia empresarial do neoliberalismo): de um lado xs chefes, xs criadorxs, xs artistas, xs génixs; do outro xs operárixs, xs técnicxs, xs artesãos/artesãs. Como na Escola de Cinema (ESTC) não entrei na área de realização, só tive oportunidade de realizar um filme pela primeira vez no final do terceiro ano (LOL) numa cadeira chamada laboratório experimental. De certa forma os filmes que tenho vindo a fazer desde então têm sido também eles laboratórios onde posso experimentar todo esse trabalho de argumento, montagem, correcção de cor e mesmo montagem/design de som que nunca tive oportunidade de fazer na escola de cinema. Acho importante manter este nível de experimentação e creio que o meu caminho futuro será cada vez mais por aí, e menos pelo caminho industrial.
A experiência do Frágil e do We Live In Fear (em pós-produção e o primeiro filme que fiz com financiamentos a sério) foram importantes no meu processo de aprendizagem, mas considero-os objectos industriais ou semi-industriais (e isto apesar das suas componentes “guerrilha”) creio que não poderá ser este o caminho estético e político que sigo para sempre. Para mim o que define se um filme é industrial ou não, não é tanto a questão do financiamento. Filmes com pouco dinheiro podem reproduzir as estruturas (hierárquicas, de organização, etc.) dos filmes que são altamente subsidiados. Aliás, geralmente é isso que acontece. E creio que, em certa medida, foi o caso do Frágil. É também isso que é criticado na cena meta perto do fim, em que voltamos a um plano do Miguel que tinha aparecido quase no início, na cena do primeiro after. Sob a cacofonia das vozes-off de momentos entre takes percebemos que houve merda durante a rodagem. De certa forma, perdemo-nos do Miguel. Perdemo-nos uns/umas dxs outrxs. Tal como o Belard e a Clara perdem de certa forma o Miguel na cena do musical, quando lhe tentam explicar que o Club é uma merda, sem que ele perceba. E tal como o voltam a perder, ou a esquecer-se dele, trancado numa casa-de-banho na cena dos ácidos… Ou será que é o Miguel que se perde dxs amigxs? A um nível micro-político, ou afectivo, é isso que implicam os modelos industriais: esquecemo-nos ou perdemo-nos uns e umas dxs outrxs… esquecemo-nos de que não somos só máquinas: por detrás das ordens, do trabalho e da funcionalidade (mas também dos espaços de prazer massificados) há pessoas de carne e osso, com emoções e um sentido de dignidade. E depois, se tivermos sorte, surgindo do meio dessa massa compacta de autómatxs que dança em absoluta sincronia e que assim esconde todas as micro-agressões do dia-a-dia, pode ser que emerja um Belard ou umx outrx grande amigx nosso para estar simplesmente lá, ao nosso lado, contra o futuro incerto que aí vem.
O filme é altamente estilizado e performativo, como julgo ser evidente, mas na cena final no Club as personagens estão só lá, despidas. Chegaram finalmente à meca dos sonhos do Miguel, mas, de repente, não há espaço para a diversão, para a brincadeira, para a dimensão lúdica que caracteriza todo o resto do filme. Como disse o Pedro Florêncio: é um espaço aplanado. Não há mais leituras possíveis: é só aquilo que ali está. O Club da cena musical era ainda um espaço onírico e performativo porque a sua existência dependia da imaginação das próprias personagens. Mas o Club real é o oposto: representa a extinção do sonho. É a realidade no seu estádio mais baixo. Em suma, é isso que o capitalismo industrial faz ao sonho: extirpa-o da sua inventividade, da sua natureza revolucionária. Mastiga tudo isso e cospe-nos de volta a publicidade. Achámos que era importante que o filme reflectisse sobre o próprio processo das rodagens, que não correu da melhor maneira, e essa cena tenta desempenhar essa função. Também faz uma possível analogia entre o cinema e o clubbing: ambos são espaços que prometem o sonho e, por isso mesmo, ambos detêm o poder de o destruir.
Sobre o Vincent Gallo, não faço ideia quem é. Também realiza filmes, é isso?
3. Tu a tentares finalizar o filme contra tudo e contra tolos e a história do filme é sobre um miúdo que não consegue ir dançar ao famoso “Club”. Quando vimos o filme pensámos em várias coisas, mas uma delas foi: se o cinema português fosse um clube – daqueles bem elitistas (não estamos a dizer que o é, atenção) -, que tipo de música passaria e quais os requisitos para nele se poder entrar, além de se ter de saber de cor e salteado as lições do António Reis?
Acho que o João Botelho é a pessoa indicada para fazerem essa pergunta.
4. Seis anos, muito trabalho envolvido e tantos sacrifícios depois… e, contudo, a nossa tentação é arranjar “a” frase promocional ou “de crítico” para pôr no cartaz de Frágil, daquelas bem sonantes, com estrelas e tudo. Qual a que preferes, diz-nos lá: “O Harold & Kumar da Candonga”, “O Verdadeiro Technoboss [não aquela betalhice do Nicolau]”, “Muito Cavalo, Pouco Dinheiro” ou “Trips à Moda de Lisboa”
Obviamente: “Muito cavalo!!! & Muito dinheiro!!!”
5. Muitas referências parecem ser cozinhadas neste filme: ocorrem-nos Harmony Korine [The Beach Bum (The Beach Bum: A Vida Numa Boa, 2019)], Terry Gilliam [Fear and Loathing in Las Vegas (Delírio em Las Vegas, 1998)], William Friedkin [Bug (2006)] e o Baby TV (quase todos os programas), mas, acima de tudo e de todos, Michael Powell & Emeric Pressburger. Queres explicar a concepção daquela estupenda fantasia musical em Scope usando a frase “Powell & Pressburger são uma moca”?
Confesso que não sou fã de nenhuma dessas referências, apesar de gostar de alguns filmes do Friedkin dos anos 70 e das coisas iniciais do Terry Gilliam (acho alguma piada ao Fear and Loathing mas tirava-lhe o Johnny Depp e o Benicio del Toro, claro). Já que usaram a referência do The Beach Bum tenho de deixar a nota de que o acho um dos filmes mais estúpidos de sempre (a contracultura representada como infantilização do homem branco e heterossexual a quem tudo é permitido…). A cena dxs sem-abrigx a destruírem a casa é uma verdadeira imitação do Buñuel para idiotas.
Sobre o Powell e o Pressburger, entendo a referência [e acrescento que o Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1947) é um dos filmes da minha vida], mas devo dizer que se houve cineastas que me marcaram quando estava a fazer o filme foram o Vincente Minnelli e o Jerry Lewis. No Minnelli há uma dimensão onírica que me interessa muito (não só nos musicais, mas também nos melodramas) e sou obcecado pela cena meta no final de The Band Wagon (A Roda da Fortuna, 1953). O Jerry Lewis adoro a plasticidade quase surreal dos filmes dele e sobretudo a noção de absurdo, principalmente quando é transposta para os próprios movimentos de câmara (por exemplo, mais para os últimos filmes, zooms inusitados que não fazem sentido nenhum, aparecem do nada, como se a câmara tivesse vida própria). De qualquer forma acho que o Frágil é um musical do princípio ao fim, altamente coreografado mesmo quando vive de um certo improviso (porque o improviso é sempre construído dentro de determinados parâmetros, logo nunca existe improviso no absoluto). Nesse sentido, a “cena musical” não aparece do nada, mas é um continuum lógico que se liga a toda estilização do filme. Acho que há uma ideia bastante evidente de apropriação/homenagem de vários géneros clássicos ao longo do filme (comédia, musical, terror, melodrama) e isso advém do lado meta que está muito presente no filme e que o amigo Pedro Florêncio sintetizou numa frase que para mim ecoava desde o início: “o cinema é a trip!” Ou seja, só é possível fazer um filme sobre trips e alucinações se se fizer alucinar o próprio cinema (mas porque o próprio cinema já contém, em si mesmo, os mais incríveis potenciais alucinatórios). No caso do Frágil, não falo apenas dos dispositivos formais ou de toda a estilização posta em cena, mas também do gesto de se convocar a própria história do cinema e, claro, de se brincar com ela. Acho que não é possível ver o filme senão, e acima de tudo, como uma brincadeira. Porque é isso que as drogas e os afters são, foras das adições e dos moralismos: brincadeiras para adultxs, uma forma de continuarmos crianças (por isso acho que este filme tem tanto de Alice no País das Maravilhas como de Peter Pan).
É por isso que o mundo adulto, e sobretudo o mundo do trabalho, da produtividade, da burocracia e da lei, deve impor a resistência às drogas a todo o custo. Mergulhando mais fundo no problema filosófico, as drogas põem também em causa a unidade e, logicamente, a responsabilidade dxs sujeitxs legais (nesse sentido aproximam-se quase das doenças mentais e da forma como elas são categorizadas pelo discurso judicial, podendo mesmo proclamar a impunidade de umx condenadx). Porque as drogas são também uma forma de possessão e nesse sentido ligam-se muito aos fenómenos do transe das culturas ditas “pré-modernas” que o racionalismo ocidental e a sua legislação cientista e tecno-capitalista tanto procurou eliminar. Na experiência da maioria das drogas, e apesar de as mocas poderem ser altamente clarividentes e, por isso, racionais (não necessariamente no sentido linear e quantitativo das mentalidades ocidentais), há uma espécie de regressão a um estado não-funcional e não-produtivo que muitas vezes chamamos “místico” de forma algo simplista apenas porque nos põe em contacto com regiões reprimidas da existência sob a dominação capitalista (os afectos, o corpo, a natureza, enfim, tudo o que saia fora do controlo do ego racional…).
De certa forma o meu fascínio pelas drogas vem do mesmo lado que o meu fascínio pelo cinema: ambas são poderosíssimas tecnologias de reconfiguração do real e por isso mesmo importantes agentes de desconstrução dos dogmas, preconceitos, ideologias dominantes, etc. Há qualquer coisa de mágico tanto no cinema como nas drogas e, num certo sentido, as drogas são o cinema levado ao seu estádio mais radical: o da manipulação dx sujeitx do seu próprio corpo e mente. O consumo de drogas tem sempre uma dimensão laboratorial que é também recreativa e lúdica na medida em que é apropriada pelxs próprixs sujeitxs que têm de aprender os seus limites (há certas drogas que não devem ser misturadas, há determinadas dosagens para determinadas pessoas, etc.). Há uma visceralidade (leia-se: mortalidade) nas drogas que está (teoricamente, pelo menos) ausente do cinema. O cinema é fundamentalmente fantasmagórico, e por isso também ligado à morte, mas é uma morte projectada à distância. No entanto, e contra muitos dos seus pressupostos teóricos, isto não quer dizer que as imagens não possam dar socos nas vísceras. Creio que muitas das reacções mais normativas/moralistas de recusa do Frágil vêm justamente daí: houve pessoas que inclusive o adjectivaram de “violento.” Nesse sentido fico contente por sentir que fiz um filme que embora composto por imagens e sons é também propriamente visceral, como uma droga, como uma substância física que se ingere. No fundo a minha resposta é esta: todo o filme é uma moca do início ao fim (muitas pessoas fizeram literalmente este comentário) e como tal a comédia musical faz todo o sentido porque dos géneros clássicos é sem dúvida o mais onírico, surreal, alucinatório… Se têm dúvidas vejam a cena do espectáculo no final de The Band Wagon. E chamam-lhe cinema clássico… Que moca de modernidade! O mesmo com o Jerry Lewis e com a maquete da casa no The Ladies Man (O Homem das Mulheres, 1961). Aquilo já não tem nada de clássico: é o Godard a germinar… E, de facto, se a moca me interessa é por tudo o que acima escrevia: é ainda um lugar de fuga, mas também de resistência ao real, à normatividade e funcionalidade do real. Ao realismo capitalista do Mark Fisher. O problema é que o capitalismo já se começa lentamente a apoderar deste espaço de disrupção. As estratégias são várias: desde a legalização/comercialização das substâncias mais leves; ao poder crescente da indústria farmacêutica e da sua crescente adição imposta a sujeitxs diagnosticadxs com problemas de saúde mental (a psiquiatria desempenha aqui um papel perverso ao individualizar as doenças mentais e assim culpabilizar as pessoas pelos seus “desvios” à normatividade dominante); à forma como certos “uppers” à base da libertação de dopamina se tornam em drogas da produtividade e, por isso, do “sistema” (sobretudo a cocaína e as anfetaminas, cada vez mais consumidas não apenas por empresárixs e trabalhadorxs, mas também por estudantes, inclusive já no secundário, para tentarem melhorar as suas notas); até ao facto de que cada vez mais todo o entretenimento passa a ser concebido como projecto alucinatório, desde os videojogos ao cinema mainstream até certas utilizações narcísicas das redes sociais. A alucinação fica, pois, ao serviço das companhias capitalistas que a programam. É como quando vais ter uma moca para um Club. Não quer dizer que não possa ser altamente, mas isso é apenas porque nos esquecemos durante duas horas de que há um segurança em cada canto da discoteca, ou que para que nós entrássemos houve não sei quantas pessoas que foram barradas. A moca torna-se um anestésico, uma mera terapia individual. É uma moca que já está meio programada à partida: é uma moca de conforto. É óbvio que também precisamos disso de vez em quando, mas para mim a moca tem um potencial muito maior.
6. O teu protesto na estreia de Frágil no IndieLisboa deu que falar. Já recebeste algum animal morto na tua caixa do correio com a marca da direcção do festival? Esperas que o teu protesto faça alguma diferença, por exemplo, tornando o IndieLisboa um festival em que o core business seja o cinema e não as festas autopromocionais?
Eu ainda estou à espera que o IndieLisboa se retraia publicamente dos comentários que fez à Timeout em que dizia que a competição em Portugal “verdadeiramente não existia porque era saudável”. Independentemente deste comentário ter sido feito por um dos directores do IndieLisboa em representação (ou não) de todo o festival, o certo é que tal dito foi publicado num dos poucos órgãos de comunicação social a noticiar o sucedido. Esse comentário é mesmo vergonhoso (e eu detesto usar esta palavra…) e não deve/pode ser neutralizado. Para mim é uma declaração de guerra que eu não posso ignorar. É ridicularizar tudo o que foi dito no protesto, as reacções das centenas de pessoas que estavam naquela sala bem como tudo o que se passa de violento na indústria do cinema (que começa desde logo nas escolas). O problema é que a maioria das pessoas dos festivais nunca fizeram um filme na vida ou nunca trabalharam em cinema. Vêm de cursos puramente teóricos e muitas vezes completamente desfasados do que é fazer cinema em Portugal e depois arranjam um tacho como programadorxs, críticxs, curadorxs, membrxs de festivais de cinema. Para mim, são tudo funções altamente parasitárias. O capitalismo é exímio em produzir estas funções: é como o marketing, a publicidade, xs vendedorxs de serviços ou muito do design que para aí anda: profissões que só existem porque há um sistema capitalista de compra e venda. Xs críticxs já nem sabem escrever sobre os filmes: a sua função é a de dar estrelinhas e assim de servir como purxs agentes de produção daquilo a que eu chamo “valor cultural”. Não há nenhuma “profundidade intelectual”, nenhum mergulho na complexidade do “valor de uso”, ou seja, na dimensão estética dos filmes: estamos sempre na dimensão ultra-superficial do “valor-de-troca” capitalista que permite o funcionamento da lei das equivalências (nesse sentido as estrelinhas dxs críticxs são uma espécie de equivalentes culturais do dinheiro). O problema está longe de residir apenas nos festivais: é todo um sistema que se entrelaça e que cada vez mais se estende até às escolas (pelo que oiço dizer, e de há uns anos para cá, começaram a fomentar cada vez mais na ESTC que xs próprixs alunxs da escola de cinema enviem os seus filmes para os festivais, o que no meu tempo ainda não era uma realidade…; ou seja, aumentaram ainda mais a fasquia da competição e da produtividade: agora já tens de ser um Pedro Costa com 18 anos!!!).
Os festivais são apenas uma das peças da engrenagem de produção de valor, em busca do próximo “génio-criador” (sim, ainda vivemos neste sistema mítico renascentista LOL). De facto, e é importante ter esta noção, ainda se trata do mesmo sistema individualista que se começou a montar no final da Idade Média e início do Renascimento: o sistema que começa com a pintura a óleo e os quadros portáteis que se tornam em objectos de troca mercantil (a arte torna-se propriedade privada, saindo da esfera exclusiva da Igreja e do espaço físico das igrejas), mas também com o culto cada vez mais egóico e narcísico dx artista/criadorx que, de certa forma, vem a substituir a criação divina (essx artista representa a nova ficção humanista, individualista e antropocêntrica que vem a substituir a dominação teológica cristã e que, claro, só se radicaliza com a implementação das democracias burguesas e o projecto industrial no final do século XVIII e início do século XIX). Agora com o neoliberalismo temos ainda outro modelo: x empresárix de si, como lhe chama o Maurizio Lazzarato. Ou seja, xs artistas (e cada vez mais uma vasta maioria dxs trabalhadorxs) são também empresárixs, passam a vida em candidaturas, à procura de financiamentos, em networking, em posts de Facebook a promover os seus filmes, a lamber as botas axs críticxs e aos festivais. O modelo fordista da linha de montagem e do trabalho para uma vida toda era ainda o modelo do Estado Social e aí pelo menos sabíamos que xs inimigxs eram xs patrões e as patroas. Mas agora, como diz o Mark Fisher, xs inimigxs somos nós mesmxs, porque internalizámos toda a lógica da produtividade, da competição, do empreendedorismo 24/7 (a internet e os smartphones já nem nos deixam dormir em paz, estamos sempre a receber as notificações do trabalho, das redes sociais, etc.). O pior festival onde estive foi sem dúvida o FEST, em Espinho. Lá nem sequer fingem que querem saber dos filmes. É tudo sobre networking, pitchings, ganhar dinheiro e financiar projectos. Mostrei lá um filme meu nas piores condições possíveis, nem sequer me pagaram o comboio de Lisboa. E depois têm masterclasses de tipos trazidos dos EUA. Nunca vi tamanho circo. É para aqui que caminhamos.
7. O teu filme é uma ode à amizade. Para quando um filme sobre os teus inimigos, por exemplo, os jurados do ICA ou os programadores do IndieLisboa e de outros festivais?
Não vou comentar, pode estragar o efeito surpresa.
Deixo só a nota de que nenhuma dessas pessoas é minha inimiga no concreto. A inimizade reside nas abstracções que elas levam a cabo tornando-as em práticas concretas (são essas práticas, mais que xs seus/suas agentes que devemos criticar). Ou seja, não devemos lutar contras xs directores de festivais de cinema ou contra xs críticxs, mas contra a IDEIA de directorx de festival de cinema ou contra o PAPEL que xs críticxs levam a cabo. Um pouco como quando o Mamadou Ba disse que era preciso matar o homem branco. É preciso matar xs directorxs dos festivais de cinema, mas metaforicamente, claro. Nesse sentido enquanto desempenharem à letra o seu papel elxs são uma espécie de inimigxs, é verdade, mas precisamente porque é apenas um papel de que se trata, elxs são também potenciais aliadxs. A importância de pensar mais nas práticas e nas acções e não tanto nxs agentes é que isso ajuda a “dessencializar” e a “desmoralizar” as acções e os erros das pessoas. Deixar de pensar em termos binários de “amigx” ou “inimigx”. Todxs nós reproduzimos os mecanismos dominantes do sistema. É importante relembrar que o protesto continha uma dimensão de autocrítica fundamental. Nesse sentido, x inimigx reside também dentro de nós. O que é outra forma de dizer: cuidado com os fascismos que nós próprixs reproduzimos. Bem mais importante que vigiar x outrx é vigiarmo-nos a nós mesmxs. Vigiar é uma má palavra: posso trocá-la por “ter cuidado, atenção”. Temos de ter atenção à merda que nós próprixs fazemos. O problema destas grandes estruturas (sejam elas o Lux ou o IndieLisboa) é exactamente esse: são incapazes de fazer a sua auto-crítica! Nós fizemos o protesto que fizemos e a única coisa que vêm dizer à comunicação social é que a competição em Portugal não existe. Estão a gozar com a nossa cara! É que nem a competição elas reconhecem! Haverá coisa mais evidente, quero dizer, que neste mundo capitalista levamos com a competição na tromba desde o momento em que nascemos?
8. Por falar em amigos, gostávamos ainda de referir o trabalho extraordinário dos teus actores. Quer dizer, são mesmo teus amigos ou o que eles querem mesmo é tirar partido do hipotético sucesso de Frágil para poderem entrar no novo Morangos com Açúcar?
São xs melhores amigxs do mundo! E essa pergunta podia ser feita ao contrário. Apesar de como é evidente ninguém ter sido obrigado a entrar no filme (embora a coisa com o Miguel tenha sido algo violenta, sobretudo porque ele não estava preparado, ou eu não o prepararei o suficiente, para o quão duras seriam as rodagens; de facto, ele trabalhava das 9h às 18h todos os dias para depois ficar sem fins-de-semana porque íamos filmar…) é difícil não sentir um lado de exploração quando não se pagou a ninguém (e também quando se reproduzem certos mecanismos de poder verticais ou hierárquicos que foram mantidos durante a rodagem do filme). Se o projecto tivesse sido mais horizontal a questão era certamente diferente, mesmo com a falta de dinheiro. Mas tendo eu assumido a personagem do realizador/produtor, era fixe, pelo menos, poder retribuir financeiramente. Talvez isso vá acontecer agora com o apoio de divulgação do ICA, mas será sempre uma coisa meio simbólica. No entanto, esta linha muito ténue entre o trabalho e a amizade é justamente uma das coisas mais difíceis de gerir nos modelos industriais.
Quando preparámos o protesto no Indie o modelo de funcionamento foi muito mais horizontal e de certa forma era assim que gostaria que o filme tivesse decorrido. Por outro lado, não tinha essas ferramentas com 22 anos de idade, quando realizei o filme, e tenho dúvidas se um filme com esta logística (filmámos durante 50 dias, com material de iluminação, várias cenas com figurantes, uma equipa nem sempre assim tão pequena…) inserido num sistema de produção capitalista poderia ter sido feito de forma totalmente horizontal (quer dizer, poder podia sempre, mas se calhar em vez de 6 anos teríamos demorado 18). Creio que para isso é preciso baixar a fasquia. Depois do Frágil filmei o We Live In Fear em 2021, o meu primeiro filme com um financiamento a sério. Estou bastante contente com o material, mas muito céptico de tudo o que envolveu os processos de financiamento, os modelos de produção verticais, a minha própria ambição em querer aproveitar esse dinheiro para fazer uma quase superprodução. O dinheiro contamina tudo, é uma bela merda.
O que quero fazer a partir de agora é tentar baixar a fasquia. Mas é uma tarefa difícil porque adoro a ficção: coreografias, maquilhagem, cenários, merdas que custam dinheiro. Mas este “tique” meu da ficção (que eu tenho de combater a todo o custo) não me faz deixar de ter esta certeza: o que é preciso é adequar o “projecto estético” aos meios de produção. Simplificar não tem de ser uma cedência. Não é sem razão que o único cinema interessante que se faz desde os anos 80 nos EUA (à excepção do John Carpenter, claro, e de talvez mais um ou dois exemplos) é documental ou pelo menos anfíbio: a Deborah Stratman, o James Benning, o Jon Jost, a Barbara Hammer, o Frederick Wiseman, etc. Sem querer tornar a questão excessivamente maniqueísta ou binária, ainda assim creio que há qualquer coisa na ficção e nos seus “excessos” que foi altamente apropriada pelo capitalismo. O cinema perdeu o seu vínculo com um real que não saía de um espectro ideológico puramente capitalista (os blockbusters, super-heróis, etc.). O realismo, ou a sua convenção, são uma das armas do capitalismo (do “realismo capitalista”, como lhe chamava o Mark Fisher). O realismo não cria futuro, não abre sonho, não projecta mudança (é sempre o mesmo campo/contracampo…). Só concebe o mundo como acha que ele já é. Nesse sentido, o documentário e as suas fórmulas observacionais ou hiperrealistas à Wiseman, por exemplo, acabam por ser uma forma de resistência à convenção do realismo. Porque lá está, têm uma visceralidade qualquer lá dentro que não vem tanto da ideia meio parola que diz que o documentário é real por oposição à ficção, mas antes da possibilidade de escuta e de intimidade que se cria nesse tipo de fórmulas ou formas estético-políticas (os bons documentários estão “lá”, com as pessoas). Essa forma de intimidade já representa, em si mesma, um tipo qualquer de solidariedade revolucionária para com xs sujeitxs filmadxs (e também um respeito, uma confiança, uma capacidade de escuta). Muitas vezes essa intimidade não é possível com modelos industriais [é o que distingue o Ossos (1997) do No Quarto da Vanda (2000)] e por isso o documentário acaba por ser um lugar de resistência, de experimentação.
Como é óbvio a categoria “experimental” hoje em dia já não quer dizer nada, mas se ainda queremos ser capazes de experimentar alguma coisa (e sobretudo de experimentar para lá da categoria do “experimental”) isso só pode fazer sentido se tiver uma dimensão política por detrás. O que queria dizer, e que acho que foi para mim uma das lições do Frágil, é que o importante é estar sempre a pensar e a questionar os modelos de produção. Ninguém nos ensina isso na escola porque isso implicaria questionar o modelo dominante. Contra isso, xs amigxs são a única coisa que temos. E o que é lixado é que quando estamos no plano hierárquico-fordista-industrial estamos sempre a traí-lxs. Por isso o que é preciso é perceber como não xs trair, como não fugir delxs. Vamos cometer erros, mas é preciso não desistir de lutar. Acho que essa tem sido a minha luta ultimamente.
Tenho feito muita merda, mas o protesto no Indie é uma prova que de vez em quando é possível acertar. Tudo aquilo foi cinema, e cinema do bom, cinema que deu um abanão no real. Depois do Frágil disse para mim mesmo que se tivesse hipótese queria fazer um filme com dinheiro. Queria perceber a que é que sabe. Essa experiência foi o We Live In Fear, com um financiamento de 25 mil euros (ainda assim não propriamente um grande financiamento, nem mesmo para uma curta-metragem, mas certamente melhor que os 0€ do Frágil). Foi importante ter filmado este filme, mas não sei é este tipo de cinema que quero continuar a fazer. O que me deixa num buraco não necessariamente sem saída, mas que representa um grande desafio: tenho de descobrir outro método (estético, político, organizacional, económico, subjectivo…). Tenho de arranjar a minha fórmula, ou seja, tenho de arranjar uma alternativa à industrialização, aos grandes financiamentos. O ICA exige que tenhas uma produtora associada para poderes receber o teu dinheiro. Esta regra é capitalismo puro! Mostra bem as intenções do nosso Estado: o que importa é incentivar e proteger as produtoras, ou seja, as empresas. E depois falam em cinema independente. Mas é preciso combater e resistir a isso.
Desde final de 2020 que estou num colectivo com mais malta de cinema a que chamámos “Dobra” e vamos estrear uma série de curtas lá para Setembro deste ano. Um projecto horizontal, que segue uma via meio surrealista à “cadavre exquis” (no nosso caso cada umx faz um filme diferente sobre o mesmo tema escolhido em conjunto; até agora tivemos 3 temas: a dobra, a roda, a sobra…; no futuro em vez de um tema poderemos ter uma regra ou outra condicionante qualquer). Estou muito contente com o que conseguimos até agora e é algo super raro no cinema português, pelo menos desde as cooperativas do pós-25 de Abril. Acho que é um dos caminhos possíveis. A colectividade, a horizontalidade, filmes feitos sem um tostão. E, claro, um sistema de distribuição pensado por nós mesmxs… Novamente, aqui, a amizade, o respeito e a confiança emergem como os factores fundamentais. Sem isso, estamos perdidxs.
9. Falas em toxicidade no meio do cinema, começando na escola – formaste-te na ESTC – e acabando nos festivais e cineclubes. Qual o passo que darás a seguir para que a situação possa mudar, além daquela ideia bestial de fechares o pessoal todo num cinema e passares os filmes do Sapinho em loop até que eles cedam às tuas exigências?
Pior que os filmes do Sapinho eram as coisas racistas e misóginas que ele dizia nas aulas. Mas enfim… Posso dizer que sempre que tiver oportunidade vou usar lugares de poder/visibilidade para criar mais disrupção. As pessoas acham que basta fazerem filmes que são objectos críticos (sei lá, um filme ecologista ou antifascista ou outra coisa qualquer) que depois ficam isentas de se questionarem e por isso podem reproduzir todos os mecanismos do status quo. Já nem sequer questionamos categorias como a de “independente” ou a de “underground.” O capitalismo utiliza-as para ficcionar uma espécie de dissidência qualquer que na verdade já só existe enquanto produto de montra, enquanto fetiche. É por isso que merdas tipo o que aconteceu no Indie são importantes: são uma espécie de alucinação, um tirar o tapete. Quando as estruturas se apropriam do que tu fazes, tu obrigas essas estruturas a um confronto com o seu próprio poder e perversidade, ou seja, com o seu poder de manipulação, apropriação, fetichismo.
Sobre a Escola de Cinema, adorava vir a dar aulas lá. Cada vez acredito menos no binarismo dentro/fora do sistema. Sou extremamente céptico da academia, mas acredito muito no lugar de uma sala de aula, quando começamos a pôr em causa/subverter os modelos disciplinares. Estou neste momento a meio do meu doutoramento, espero dentro de uns anos dar o salto para professor. Acho que é preciso corroer a academia a partir de dentro.
10. Imagina que tens uma nova incumbência em mãos que passa por levares os professores da ESTC a um after. Como programarias essa noite? Que tipo de drogas recomendarias ao pessoal (não vale excluires do programa o Professor Vítor Gonçalves).
Tinha cuidado com a cocaína e com o speed que elxs já estão todxs muito velhinhxs. Fora isso, mandava as drogas do costume: se calhar começava com MD ou pastilhas, deixava tudo naquela moca da paz e amor, depois começava com os alucinogénios, um ácido para cada um ou então cogumelos consoante o gosto. E depois mais para o fim assim uns valentes riscaços de Ketamina e seria divertido misturar uns Poppers e um GHB para apimentar a moca. Ah, e claro, uns Zolpidems e uns Xanax também não era mal pensado para o caso de lhes começar a dar a ansiedade ou de quererem ir dormir, mas ainda estarem a tripar forte e feio.