A torre de televisão de Berlim. Uma bicicleta passa pelas pessoas deitadas em cima de écharpes num jardim. Os carros, o metro exterior, as motas. As multidões apressadas, mas felizes, a viver a tempo emprestado. E as casas, diagonalmente alinhadas, a desaguar na linha do horizonte. Uma perfeita harmonia. Um dia de verão. Em Ce Sentiment de L’Été (Aquele Sentimento do Verão, 2015), começamos pela cidade. Mas isto não é sobre ela. Não no início, pelo menos. A cidade começa por só existir lá fora, num encontrar de corpos descansados que saem de camas, sofás e portas para se reunirem com outros num espaço organizado. Dentro de casa, uma jovem rapariga acorda, faz café, procede a bebê-lo no terraço. Os ruídos da cidade são abafados, até encantados, por uma balada que preenche as imagens que vemos. Quando esta sai de casa e passa pelo jardim, provavelmente o mesmo jardim que nos tinha sido mostrado antes, é difícil aceitar de que esta viria a ser a última vez que o faria. O seu último dia. E ali está a cidade, resplandecente, a enquadrar o fim das coisas com leveza; a câmara na cara do sofrimento, mas em seu redor, sempre o movimento.
Os filmes tristemente desaparecidos (pós-circuito de festivais) de Mikhaël Hers são conhecidos não só por serem representações da memória como por, eventualmente, se transformarem na figuração desta. Cozidos da delicadeza dos movimentos de câmara precisos e simples, grampeiam colectivamente um sentido de mood dourado, da nostalgia fragmentada que é una com o mundo gasoso e alterável difícil de agarrar, pois uma vez decorrido procede a fabricar-se. E Ce Sentiment de L’Été não é diferente. Lawrence (Anders Danielsen Lie) perdeu a sua parceira, Sasha (Stéphanie Daub-Laurent), nos primeiros minutos do filme, trazendo de volta o tratamento da perda de Christophe Honoré em Les Chansons d’Amour (As Canções de Amor, 2007) – Hers viria a repetir a temática na seguinte longa-metragem, Amanda (2018). Lágrimas caem-lhe, rosto fora, com os solavancos do seu caminhar pelas ruas de asfalto alemãs. A cidade não sabe o que aconteceu. A cidade não está atenta. O grão do super 16mm vai intensificando as cores e aliviando as suas arestas mais rectas, tornando o real memória, e a memória um exercício de dança, indistinguível ao que por ela passa.
Mas não há tempo para pensar nisso como poderíamos logo de seguida. Na cidade tudo continua, tudo tem que continuar. Em incrementos de tempo, e ao longo de três Verões, viajamos com Lawrence de Berlim para Paris, acabando em Nova Iorque dois anos depois, onde finalmente o deixamos. De forma orgânica, Lawrence e Zoé (Judith Chemla), irmã de Sasha – como este refere, as duas partilham as mesmas covinhas na cara, as mesmas orelhas – unem-se no desorientar da perda, nas mudanças a que esta obriga, e vão preenchendo a interioridade da travessia geográfica do filme. De cidade para cidade e de ano em ano, a correspondência entre os dois e eventuais encontros vão denotando como tanto muda, e ainda assim como demasiado permanece igual. Sasha continua, afinal, desaparecida.
Os movimentos de câmara vêem-se alternados entre estáticos mas abertos à procura, e um handheld sempre estabilizado, que realiza aquele caminhar do cinema cujo principal ímpeto é o de ver para dentro dos seus personagens sem nos indicar como os decifrar.
Não ajuda ser verão. O verão é febril; é coisa que se entranha, excessiva de digerir. Na sua atemporalidade, dá textura à ideia de memória tão autoral nos filmes de Hers. Vêm-me à cabeça as palavras que introduzem a feliz e recentemente surgida revista literária Limoeiro Real, “O verão é o tempo do tempo. Os dias são longos e vagarosos, de difícil compreensão. Estendem-se no plano onde decorrem todos os eventos, sem que consigamos realmente intervir.” E na Berlim de Hers, o verão é incessantemente solarengo. E parece doloroso intervir. De repente, ali está Lawrence, a olhar de cima para baixo para uma porção de espaço verde, a confessar que está à espera que Sasha apareça a qualquer momento para comer metade da sanduíche dele, enquanto um cão brinca com um frisbee e duas senhoras lêem o jornal. Quando ele voltar a pensar naquele momento, o que o prenderá? Quão absorta estava a cidade da morte? Mas não é a cidade que normaliza o caos e naturaliza a morte? Deitado na relva para testemunhar o nascer de mais um dia depois da repartição das cinzas, Lawrence é enquadrado com o violeta raramente usado nas belas-artes antes do movimento impressionista francês no início de 1860. A cor surge ali delineada como uma premonição. No amanhecer, há uma transição do tempo do dia e uma renovação da vida. De repente, há tanto, mas tanto espaço para respirar. Se não soubéssemos, esta passaria por uma pintura a óleo de Claude Monet. No Verão, os espaços tornam-se lugares.
Sem picos de intensidade, e mantendo a uniformidade dos que habitam o mundo, subitamente desamparados, Hers estabelece a serenidade do que é viver por cima de uma perda, num piso acima de toda a gente. Torna-se clara a ideia de que este, como na verdade qualquer outro dos seus filmes até então [incluindo Les Passagers de la Nuit (2022)], habita um quadro que não tem fim. Assim que o salto é feito, a forma dos sonhos é atingida e quem perde vence, sendo depois recompensado com a sabedoria daqueles que, como Monet bem o expressou, abandonam o nome das coisas para as quais estão a olhar para poderem ver o que precisam de ver.
Naturalmente, Hers não perde tempo e leva-nos para Paris. Até aqui, tinha-me esquecido ou deixado de considerar as especificidades destes personagens a quem já me tinha afeiçoado sem ainda conhecer. Isto é propositado. Cair em Paris e no Jardin du Luxembourg confirma o apego de Hers pela lente naturalista do cinema independente. Independentemente da localização, língua ou moeda, na cidade és sempre dali (o sotaque norueguês de Anders, seja quando fala inglês ou francês, não é explicado e ainda bem). Tudo é claro e objectivo. A laivos da maturidade gramatical de que podemos retirar de Mia Hansen-Løve, aquele belo repousar no que não é dito, é-lhe adicionada a preocupação do verão rohmeriano – langoroso na espera por um clímax que nunca parece chegar – a estação surge passada sob a sombra dos aniversários da morte de Sasha. Os movimentos de câmara vêem-se alternados entre estáticos mas abertos à procura, e um handheld sempre estabilizado, que realiza aquele caminhar do cinema cujo principal ímpeto é o de ver para dentro dos seus personagens sem nos indicar como os decifrar.
Assim sendo e no relato de todos estes muitos entretantos, o violeta regressa misturado nos azuis e verdes ricos dos lugares vigorosos do Verão. O lago de Annecy durante as férias de Zoé. O esverdear das montanhas durante o crepúsculo. Hers filma durante o dia como quem passa só por ele. Há sol sempre, mas o que lhe interessa são os amanheceres e anoiteceres e a efemeridade de tudo aquilo. Se houvesse uma forma de o descrever num género seria o das contemplações encambalhotadas. Dando as mãos a Lawrence e Zoé, o diálogo que decorre em La Collectionneuse (A Coleccionadora, 1967) é emprestado. É tudo tão terrivelmente idílico – chega a ser insuportável como deixa de marcar o tempo – e no entanto, os caminhos percorridos por estes dois são registados, todos os segundos de cada hora.
O que Mikhaël Hers consegue desdobrar tão bem, neste que é um tão plano estudo sobre a dor e o seu cruzar com o verão na cidade, é o replicar das exactas ondas da casualidade da vida; ondas de calor no cinema que nunca oscilam.
Quando chegamos a Nova Iorque, o filme já percorreu mais de metade do seu tempo e nada abrupto aconteceu até ali. Nada inesperado. Mas a linha tonal permanece. Há ali uma tristeza infinita. Voltamos à rua. Indivíduos que caminham em uníssono, invisíveis. O olhar fixo de Anders Danielsen Lie, como já tinha sido constatado em Reprise (2006) e Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011), anima toda aquela inquietude pessoal com poesia, e serviria o filme apenas com a sua linguagem corporal fosca e vulnerável. Já para não dizer que não há melhor cidade que nos obrigue a olhar para o nosso espelho do que Nova Iorque. No meio de tantas superfícies, o melodrama da antítese é questionado. É só isto que temos aqui? O verão, vácuo e mergulho ao mesmo tempo, com o sufoque que é a superação da perda?
Talvez seja esta, de facto, a revolta das coisas mais belas – cobrem-se de superfícies e dão a entender que só podemos subir ou descer por elas. Não é verdade e esqueço-me disso rapidamente quando Josh Safdie irrompe ecrã fora, todo ele cinético, com a energia alucinada do falador neurótico que lhe reconhecemos, na personagem de um “vira-hambúrgueres” amigo de Lawrence. A paixão deste em dar som às coisas relembram Lawrence de que também ocupa o mundo. “Há quanto tempo saiu The Glass Arcade? Há três anos? The Glass Arcade saiu há três anos? Três anos…Tens de fazer mais alguma coisa. Tens que continuar a andar em frente.”, diz-lhe o amigo sentado num banco de jardim, incentivando-o a prosseguir a sua carreira enquanto escritor. Ali estão os arranha-céus, as avenidas, o East River. Zoé passa por lá também, a caminho do Tennessee para ver um velho amigo. O estudo das cores, suas texturas e intenções mantêm-se. Estabelece-se uma linha duradoura da presença da ausência. Zoé e Lawrence vêem-se unidos na vida como nunca estiveram antes da morte. E no final, lá está o mesmo violeta no horizonte, a abrir uma fenda para um novo mundo, ainda que comandado pela mesma linguagem.
O que Mikhaël Hers consegue desdobrar tão bem, neste que é um tão plano estudo sobre a dor e o seu cruzar com o verão na cidade, é o replicar das exactas ondas da casualidade da vida; ondas de calor no cinema que nunca oscilam. Como o nome indica, Ce Sentiment de L’Été replica um sentimento que flui entre dois personagens que vagueiam em volta de si mesmos. Ao diluir todos os pequenos gestos, relances, olhares que os descrevem em miniatura, Hers relembra: tudo pode acontecer a qualquer momento. Quem vive na cidade sabe-o melhor que ninguém. E não há protecção possível. Sasha não foi atropelada por um carro, afinal. Ela cai ao chão e o ecrã vai a preto. A morte é horripilante porque é feita de tamanha calma e tranquilidade. Logicamente, para a combater, injectamos movimento. E esperamos que seja o suficiente para a despistar. Lawrence vai-se movendo, mas não se retira da cidade. Talvez porque seja o único lugar onde existe a possibilidade de voltar a ter um reencontro consigo mesmo após tanto esburacar.
Mas também, e aqui tenho a certeza, é ali que o desaparecimento é mais rapidamente homenageado, porque é onde a vida é mais palpável. Há burburinho infernal e há toque obrigatório. É verdade que a alienação é considerável, mas esta advém de uma falta de comunidade que não existe em Ce Sentiment de L’Eté. Imagino que no anunciar de mais um verão para Lawrence dali em frente, este se banhe pela mesma sinfonia solar. Mesmo quando o grão já não escaldar, Sasha viverá sempre nos seus olhos. E a toda a hora, mais uma estrela morre enquanto o sol brilha na cidade. Voltou a acontecer agora, agora, e agora. Oh quão inebriantes são as imagens de Hers. Ele sabe que os gritos de dor são sempre quentes.