Que vaga rima me permite agora
desenhar-te de rosto e corpo inteiro
António Franco Alexandre, em Poemas
Tendo querido «fazer do acto de eleição de um lote de filmes, no vasto património cinematográfico, uma questão de vida», ficando assim a natureza da herança bem determinada no meu propósito, as palavras de Michelangelo Antonioni, realizador de L’Avventura (A Aventura, 1960), que usa como critério «o ponto de vista humano» para destacar esse filme na sua obra, justificam também a minha escolha da última imagem Do álbum que me coube em sorte: «Neste caso eu diria que o filme mais importante é A Aventura. Porque é aquele que mais me custou, que por isso mesmo mais me ensinou, aquele que mais do que qualquer outro me obrigou a estar presente a mim mesmo»[i].
A aparente facilidade, que a remissão para um «ponto de vista humano» como critério da avaliação poderia comportar, é desfeita desde logo pela obrigação da presença (de espírito) que Antonioni se impõe e relativamente à qual o testemunho de Monica Vitti contém uma boa indicação sobre quanto a mesma foi indispensável para enfrentar, com decisão e do modo mais oportuno, o contexto em que o filme foi produzido: «Foi uma luta que Michelangelo travou contra a tempestade, o dinheiro, as fraudes cinematográficas. Contra a frase: “Vamos fazer um filme, seja ele qual for”. Ele queria fazer o seu filme, indo até ao fim, era a aventura da sua vida e da minha»[ii].
Para Antonioni, esta aventura da sua vida, a que correspondeu na recolha dos seus Escritos sobre cinema justamente o título Para Mim Fazer Um Filme É Viver, conduz a uma definição do processo criativo no cinema tomando a literatura por termo de comparação: por um lado, por oposição ao romance («fazer um filme não é como escrever um romance. Flaubert afirmava que viver não era o seu ofício: o seu ofício era escrever. Ao contrário, pelo menos para mim, fazer um filme é viver»[iii]); e, por outro lado, por afinidade com a poesia («para mim, os filmes nascem como as poesias para as poetas. Sem querer fazer-me passar por poeta, mas servindo-me dessa analogia, tal como vêm ao espírito palavras, imagens, conceitos, e tudo se mistura e se chega à poesia, creio que também no filme acontece assim»).
Se incluirmos Antonioni no movimento que, no cinema, se bateu “por uma paisagem italiana”, ao ocupar-se do mistério da paisagem dos sentimentos, em L’Avventura, a paisagem torna-se ainda mais misteriosa, feita de «fragmentos, desequilibrados, como a vida que levamos»
No Colóquio com os alunos do Centro Sperimentale di Cinematografia, realizado em 31 de Março de 1958, em que explicou ser deste modo que as coisas lhe vinham à cabeça, fica igualmente bem patente como entende a relação entre “imagens” e “histórias” e a função que a «concentração visual» desempenha na génese de um filme seu, ao acrescentar que «tudo o que lemos, ouvimos, pensamos, vemos, em determinado momento concretiza-se em imagens, sendo dessas imagens que nascem as histórias»[iv].
Advém daí que o seu contributo ― identificado por Seymour Chatman como o mais significativo que Antonioni trouxe ao cinema ao restituir-lhe a integridade da imagem[v]― resulta de uma particular disposição de Antonioni, que se manifesta através da sua capacidade em conseguir unir atmosfera e trama narrativa numa estrutura íntegra, elevando a um novo nível a componente cinematográfica da imagem e libertando o filme progressivamente de tudo o que é supérfluo para a narração: «O aspecto visual do filme está para mim estreitamente ligado ao aspecto temático, no sentido em que, quase sempre, a ideia me surge através das imagens. O problema está em filtrar a acumulação dessas imagens, passá-las cuidadosamente em revista, reconhecer aquelas que coincidem com aquilo que me interessa no momento»[vi].
Nesse trabalho, que «consiste numa escolha moral precisa», a etapa complementar está indissociavelmente ligada à função da câmara: «a câmara torna-se o mais subtil dos instrumentos narrativos. Embora possa identificar-se com o ponto de vista de uma personagem quando isso se adequa aos seus propósitos, geralmente preserva a sua própria identidade e distância. Como consequência, alguns críticos acharam os filmes “frios” e “afastados”. Mas isso passa ao lado do propósito, que diz respeito não à emoção, mas à função. Único entre os cineastas de longa-metragem, Antonioni recusa-se a limitar a câmara à simples função de contar a história. Em vez disso, confere-lhe a potência visual autónoma que possui na fotografia»[vii].
Compreende-se assim a persistência de um traço característico do seu método e a razão pela qual «não se pode decidir os movimentos de câmara sentado à secretária, pois eles devem ser pensados através da câmara de filmar», fazendo o recurso sistemático ao emprego da dolly, mesmo para rodar planos com enquadramento fixo, parte de uma técnica que consiste em «seguir as personagens até que estas revelem os pensamentos mais recônditos», visando «captar os pensamentos de uma personagem através de uma reacção imprevista»; privilegiando a atenção ao «depois», «não deixar de segui-la antes de sentir a necessidade de cortar»; se bem que se trate de «segui-la não por sistema, mas porque parece importante fixar, apanhar, os momentos que se mostram menos salientes nessa personagem», de modo a esclarecer «quanto do que aconteceu permanece dentro da personagem» quando a cena base parecia encerrada[viii].
Nas primeiras linhas de “O fio perigoso das coisas”, Antonioni volta à questão para a qual nunca encontrara uma resposta, escrevendo: «o que não sei quando me perguntam como nasce um filme é precisamente como se dá o próprio nascimento, o parto, o big bang, os primeiros três minutos. E se as imagens desses primeiros três minutos têm uma interioridade»[ix]. Este texto faz parte dos trinta e três contos, nascidos de ideias, núcleos narrativos deixados em aberto, para filmes não realizados, coligidos em Bowling sul Tevere, um livro que, curiosamente, abre com uma epígrafe de Lucrécio (em De rerum natura), que estabelece uma distinção entre a origem do mundo (que se desconhece) e o destino da sua criação (que não pode ser atribuída à vontade divina, tão presente no mundo é o mal). Tratando-se de compreender se esse início de três minutos é resposta a uma exigência íntima do autor ou, valendo a imagem por aquilo que é, se a questão que essas imagens iniciais encerram se sustenta por si mesma, a própria entrada de Antonioni no cinema, com Gente del Po (1947), poderá fornecer uma indicação preciosa. Partindo de uma declaração sua, segundo a qual «tudo o que f[e]z depois, seja bom ou mau, partiu daí» e, sabendo-se que, por vicissitudes de produção, a versão final da curta-metragem não correspondeu às expectativas criadas durante a rodagem, é num texto de apresentação do projecto, com o título “Por um filme sobre o rio Pó”, publicado em 1939, que o sentido daquela afirmação poderá, talvez, ser esclarecido: «Parece que no rio se junta o destino daquelas terras. (…) Estabelece-se, por assim dizer, uma intimidade muito especial alimentada por diversos factores, entre os quais a comunhão de problemas e a mesma luta das populações contra as águas». Há na formação dessa paisagem amada um fenómeno marcante (e motivo fundamental para um filme, diz Antonioni), quando as cheias provocam o transbordo das águas do leito ordinário do rio e, na sequência da inundação e alagamento das terras, se formam aluviões por efeito do abrandamento da velocidade da corrente e da retirada das águas. E também indispensável para fazer do rio Pó um protagonista, em que o que desperte o interesse não seja «um amontoado de elementos exteriores e decorativos, mas o espírito, isto é, um conjunto de elementos morais e psicológicos» que, qual aluvião, diria, guarda o mistério dessa paisagem.
Se incluirmos Antonioni no movimento que, no cinema, se bateu “por uma paisagem italiana”, ao ocupar-se do mistério da paisagem dos sentimentos, em L’Avventura, a paisagem torna-se ainda mais misteriosa, feita de «fragmentos, desequilibrados, como a vida que levamos», dolorosamente, atirados para o que vem “depois”, mas nem por isso menos sedimentados nessa figura primordial que as cheias terão constituído na planície padana.
Na base do argumento de muitos dos filmes de Antonioni está uma indagação, uma investigação de índole policial (ainda que muitas vezes se trate de falsas narrativas policiais), empreendida na sequência de um desaparecimento. O que, no entanto, há de mais surpreendente em L’Avventura, uma história policial às avessas, é o facto de, apesar de todas as personagens se verem, subitamente, envolvidas na busca de Anna (Lea Massari), misteriosamente desaparecida na ilha Lisca Bianca, mesmo as mais próximas, o namorado Sandro (Gabriele Ferzetti) e a amiga Claudia (Monica Vitti), em menos de nada, se desviarem e, imperceptivelmente, perderem a concentração sobre o motivo da busca, numa distracção que ameaça torná-las incapazes de «juntar os seus próprios pedaços».
Há, das que sobram dessa primeira parte da aventura na ilha, duas personagens destinadas a viver, nesse “depois”, o tempo em que os amores transbordam do leito ordinário. A aposta de Antonioni, no entanto, consiste em escolher três lugares, à partida, avessos à intimidade, para as “declarações de amor” de Sandro e Claudia: a sala de espera de uma gare; o compartimento de uma carruagem de comboio; o chão duma colina árida, bem acima do mar, em campo aberto.
Da aventura, para Monica Vitti, que mais haveria a esperar, perante uma actriz tão extraordinária, ao lidar com a dupla exigência da arte de representar, no cinema, em que «o instante da criação exige uma presença e uma concentração prodigiosas» e em que é necessário «atirar-se de uma cena para outra, encontrando nesses saltos a justeza emocional e mantendo intacta a personagem»[x], confrontada com aquilo a que Antonioni chama as preocupações do cinema moderno que não lida com «factos externos, aquilo que aconteceu, mas que volta a sua atenção para as causas que nos levam a agir de uma determinada maneira e não de outra»[xi], convicto de que «a elipse é um meio par excellence de transmitir a fragilidade das emoções e a impossibilidade de lhes dar uma explicação definitiva»[xii].
Claudia, que víramos subir para uma carruagem de comboio na estação de Milazzo, está sozinha num compartimento, não sabendo que Sandro, de quem se despedira na sala de espera da gare, decidira à última hora apanhar o comboio. Quando este surge pelo corredor à porta do compartimento, Claudia, surpreendida, intima-o a explicar-se. O dispositivo dramático e a mise en scène da cena na sala de espera (6 planos) repete-se na cena que ocorre dentro do compartimento (9 planos), com diálogo em campo/contra-campo. Em vez da pergunta formulada por Sandro «E então nós quando é que nos vemos?», aos protagonistas coloca-se, agora, a exigência de «ver as coisas tal como elas são». Na verdade, é Claudia que, interrogando-se sobre como «é possível que baste tão pouco para que tudo mude e se esqueça», se dá conta de que «é triste de morrer» e «não estava preparada» para isso. No último plano, a câmara acompanha os seus movimentos até ela sair de campo gritando «deixa-me em paz». À elipse caberá dar-nos, em vez do vidro da janela embaciado e vazio do enquadramento final, a espuma do mar que se agita (vista através da janela do corredor da carruagem, mas é já outro plano ou prova de que o anterior ficara em aberto), antes de a câmara, em livre movimento panorâmico, reencontrar Claudia no corredor.
Do testemunho de Monica Vitti resulta bem claro que falar de A Aventura era como viajar, entre palavras novas e imagens novas, para corresponder ao desafio de Antonioni que reclamava «um título aberto, que abrisse espaço, interpretações diferentes…».
Se é verdade que «em Antonioni o plano-sequência é preferido relativamente a qualquer outro por permitir alcançar o fora-de-campo (…), havendo a sensação de que é o vazio, até à vertigem, que câmara visa atingir no plano-sequência»[xiii], é isso que acontece na primeira parte da cena em que Claudia e Sandro se abraçam e se beijam saindo da estrada para Noto, já no chão, é com grandes-planos em campo/contra-campo que a cena prossegue, na certeza de que no desenho «de rosto e corpo inteiro» se impõe a atracção por um universo abstracto, de cuja expressão a câmara, com o seu ponto de vista aberto sobre movimentos informes – ventos, nuvens, manchas, sombras, pele –, se fará a melhor intérprete.
«Claudia, é tarde, temos de ir».
Sem que, não porque houvesse falta de uma imagem, acrescente:
«Ao passar a vau um curso de água a transbordar, a sensação mais forte que podemos ter é a da força torrencial da água contra as nossas pernas; o esforço de tentar manter o corpo em equilíbrio perante essa força dá sentido ao simples acto de caminharmos na água corrente. (…) Mas no calor, a frescura da água desliza sobre a pele como uma sombra. (…) A imersão na água gelada de uma lagoa de montanha parece, por um breve momento, desintegrar o próprio eu; isso não parece de todo suportável: sentimo-nos perdidos, destroçados, aniquilados. Mas logo a vida retoma o seu curso»[xiv].
[i] Michelangelo Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema (Venezia: Marsilio Editori, 1994), 127.
[ii] Monica Vitti, Sette sottane: Un’autobiografia involontaria (Milano: Sperling & Kupfer Editori, 1993), 188.
[iii] Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema, 14.
[iv] Antonioni, 5.
[v] Seymour Chatman, «Le innovazioni narrative di Michelangelo Antonioni», em Michelangelo Antonioni: Identificazione di un autore, por AA. VV., vol. 2 (Parma: Pratiche Editrice, 1985), 19.
[vi] Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema, 129.
[vii] Seymour Chatman, Antonioni, or, The Surface of the World (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1985), 114.
[viii] Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema, 8.
[ix] Michelangelo Antonioni, «Il filo pericoloso delle cose», em Quel Bowling sul Tevere (Torino: Einaudi Editore, 1983), 161.
[x] Tommaso Chiaretti, ed., L’Avventura, di Michelangelo Antonioni (Bologna: Capelli Editore, 1960), 151.
[xi] Antonioni, Fare un film è per me vivere: Scritti sul cinema, 27.
[xii] Chatman, «Le innovazioni narrative di Michelangelo Antonioni», 27.
[xiii] Alain Bonfand, Le cinéma d Michelangelo Antonioni (Paris: Éditions Images Modernes, 2003), 116.
[xiv] Nan Shepherd, The Living Mountain (Edinburgh: Canongate Books, 2014), 109.