O magnum opus de Baz Luhrmann — para mim, que adoro todos os filmes da chamada Red Curtain Trilogy, que junta Strictly Ballroom (Strictly Ballroom – Vem Dançar!, 1992), Romeo + Juliet (Romeu + Julieta, 1996) e Moulin Rouge! (2001), como filmes ligados a um conceito de teatralidade — é Moulin Rouge!, um filme que usa todo o maximalismo, toda a campiness, todo o anacronismo de Luhrmann para atingir píncaros de emoção que não sei se voltou a conseguir conjurar. Moulin Rouge! é ruidoso, intenso e um dilúvio de cor e movimento, mas é sobretudo arrebatador nas emoções pela forma como é filmado e, ainda, pela forma como é protagonizado por Nicole Kidman e Ewan McGregor. The Great Gatsby (O Grande Gatsby, 2013) tinha o mesmo maximalismo (aliás, com o volume aumentado), mas não criou o mesmo feitiço. E, contudo, nunca Leonardo DiCaprio esteve tão bonito como a levantar aquele copo de champagne, com o fogo de artifício à sua volta. E quanto menos falarmos de Australia (Austrália, 2008), melhor.
Chegamos, ou pelo menos eu cheguei, a Elvis (2022) com a sensação de promessa de redenção. Baz Luhrmann e Elvis Presley são duas figuras que fazem sentido juntas graças à predileção por uma exuberância que caracteriza ambas as carreiras. Ambos são extravagantes e Luhrmann consegue pegar na bola e correr, pintando-a com as cores mais garridas na sua palete. A estética é sempre colorida e viva, a câmara rodopia, a montagem é acelerada e variada nas suas técnicas. Nuncas estamos num modus operandi homogéneo, estamos sempre a ser arrebatados por novo truque visual. Para quem não gosta, é uma sobremesa demasiado doce que enjoa à primeira colher. Para quem aprecia, como eu, é uma viagem estonteante, uma montanha russa tanto esmagadora quanto deslumbrante.
O filme sofre não pelo seu excesso estético e hiperactivo, mas pela sua duração, que se cristaliza num acto final tosco, em que Luhrmann já não sabe bem como aterrar uma narrativa que se enche de melodrama sem explosão de resolução.
O realizador encontra em Austin Butler o seu Elvis Presley — que vem de The Carrie Diaries (2013–2014), The Shannara Chronicles (2016–2017) e de uma mudança brusca de patamar ao ser chamado para o papel de Tex Watson em Once Upon a Time… in Hollywood (Era Uma Vez em… Hollywood, 2019, Quentin Tarantino) — e um genuíno partner in crime. Butler consegue fazer-nos acreditar na rebeldia, na sexualidade, na voz e até na inocência de Presley. Há qualquer coisa terrivelmente inocente na forma como este homem é protagonizado e filmado. A intensidade do sex appeal de Elvis é curiosamente sempre relegada para o palco e nunca trazida para a vida real.
E é quando Elvis está no palco que o filme brilha em todo o seu esplendor. Há uma sequência em particular, um concerto ao ar livre ainda na América segregacionista, em que Luhrmann captura tudo aquilo que tornou o cantor americano um ícone. Uma figura que extasiava todas as audiências, no palco Elvis era rock’n’roll e rock’n’roll era sexo e deus e sublimação de tudo o que é congregação entre seres humanos. Para uma América puritana que via “comportamentos lascivos” como o abanar de ancas do cantor como um atentado político à ordem pública, Elvis era o epítome do perigo. O que poderia ser mais ameaçador para um país conservador do que uma explosão sensual em palco que faria dançar qualquer alma e juntar a comunidade em louvor musical, segregacionismo que se lixasse?
Infelizmente, a exultação da figura pelo filme passa ao lado dos aspectos mais complicados da carreira de Elvis, especialmente em torno do benefício que este obteve do rock e blues produzido por americanos negros, relegados para o lado pela indústria musical e sociedade em geral. Elvis Presley interessa a Baz Luhrmann só até certo ponto, só nas particularidades que servem para print the legend ou sublinhar a veia trágica da sua vida. E todo o glamour do filme não chega para distrair desse facto que é sublinhado pela escolha do protagonista do filme que, decididamente, não é Elvis. É, antes, o coronel Tom Parker (um Tom Hanks mergulhado em próteses e látex), um homem mais velho de proveniência duvidosa, que se torna manager de Elvis, e não possui um osso benévolo no seu corpo. Motivado pela avareza e pelo vício, Parker mantém Elvis enclausurado e amarrado à sua influência, usando toda a sabedoria de um vigarista. Quando a máscara cai, já é tarde demais.
Inevitavelmente, o problema de qualquer biopic, especialmente um que engloba uma vida inteira e mais um pouco, é que é impossível dramatizar uma vivência com a mesma simplicidade e coerência do que uma história de amor em três actos. Há, pura e simplesmente, demasiada história na narrativa de Elvis (com h pequeno e grande) para não quebrar o fio condutor, especialmente quando estamos entregues a impulsos jorrantes.
O filme sofre não pelo seu excesso estético e hiperactivo, mas pela sua duração, que se cristaliza num acto final tosco, em que Luhrmann já não sabe bem como aterrar uma narrativa que se enche de melodrama sem explosão de resolução — até porque é assim a vida, não há propriamente um terceiro acto que coloque o ponto final elegante. O filme sofre ainda por não encontrar uma forma subtil de nos deixar entrar completamente na evolução das emoções. Várias vezes Austin Butler está já no auge e nem sabemos bem como perdemos o escalar da coisa. Talvez não seja benéfico o foco estar em Parker (apesar deste conflito ser o único ângulo com mais rasgo do filme), porque Elvis, com quem passamos tanto tempo, acaba por nunca descer à terra — é sobretudo o mito, não o homem, no ecrã. Austin Butler merecia mais tempo para a sua personagem respirar, dado que consegue tão bem captar a presença e a sensibilidade do homem.
Apesar disso, o final apanha-nos de surpresa. Talvez seja porque “Unchained Melody” é uma canção tão poderosa, talvez seja porque vislumbrar o verdadeiro Elvis depois de todo o espectáculo montado por Baz Luhrmann finalmente perfura a camada artificial que adorna o filme. Talvez seja porque nem Austin Butler consegue captar toda a emoção que Elvis Presley alcança ou, pelo contrário, talvez precisamente porque Austin Butler consegue captar toda a emoção de Elvis que ao ver o homem real no ecrã torna-se tão mais agudo o resultado da vilania de Tom Parker. Demora duas horas e meia, mas Baz Luhrmann realiza finalmente esse truque de magia que é fabricar emoções a partir de imagens em movimento.