Há aqueles que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida;
Estes são os imprescindíveis.
Bertolt Brecht
Prolífico como poucos na história do cinema mundial, o cineasta japonês Mikio Naruse (1905-1969) terá realizado 89 filmes desde o período do cinema mudo até ao final dos anos 60, entre os quais várias obras-primas que fazem dele um dos mais importantes cineastas japoneses de todos os tempos, ao lado da trÍade Mizoguchi, Ozu e Kurosawa. Contudo, no Ocidente, a sua filmografia permanece muito menos exibida e comentada do que a destes seus contemporâneos; em Portugal, especificamente, para além da retrospectiva que lhe dedicou a Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, em 2009, contam-se pelos dedos da mão as raríssimas ocasiões em que foi possível ver uma das suas longas-metragens, em grande ecrã, ao longo da última década.
Realizado em 1952, Okaasan (A Mãe) foi um dos poucos filmes de Naruse que pôde ser visto fora do Japão ainda durante a vida do cineasta. Estreado em França, em 1954, o filme não passou despercebido aos críticos dos Cahiers du cinéma, que viram nele não só uma obra exemplar de uma certa tendência “neorrealista” do cinema japonês do pós-guerra, mas também um filme com um alcance universal: “Embora um pouco fácil, o rótulo [de filme neorrealista] não é inexato”, escreveu o crítico e futuro cineasta francês Jacques Doniol-Valcroze, “ainda que o neorrealismo italiano seja muito mais elaborado, concertado e – mesmo apresentando outras qualidades – nunca tenha tido essa frescura, essa ingenuidade adulta, essa reserva, esse pudor resignado (…). A intenção de realismo conduz a um resultado paradoxal: o desaparecimento de qualquer exotismo. Vi Okazan [sic] duas vezes: aquando do segundo visionamento, tinha-me esquecido completamente que a história se passava no Japão” [1].
Porém, Okaasan foi gradualmente esquecido após sua estreia europeia limitada na década de 50, à medida que outras realizações de Naruse foram chegando ao Ocidente; tanto que, ainda hoje, é considerado uma obra secundária quando comparado aos incontornáveis Ukigumo (Nuvens Flutuantes, 1955), Onna ga kaidan o agaru toki (Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, 1960), ou ainda Midaregumo (Nuvens Dispersas, 1962), último filme do cineasta e um dos favoritos do “nosso” Pedro Costa; e sim, admito que Okaasan até possa ser menos arrebatador do que estes, mas não por se tratar de um filme (aparentemente) mais ligeiro e soalheiro. Enquanto cineasta particularmente sensível à “meteorologia dos sentimentos” das suas personagens (e ao contrário de Ozu, cujos filmes são pautados pela natureza cíclica das estações do ano), Naruse sabe o quão preciosas são as lufadas de ar fresco e os instantes de céu limpo antes de este se recobrir de nuvens ou do rebentar de uma súbita tempestade.
Inserindo-se no cruzamento das tradições do shomingeki (sub-género do cinema japonês centrado nos dramas comuns de pessoas da classe trabalhadora, ao qual é igualmente associado Ozu) e do haha-mono (parábolas em torno da figura sacrificial da mãe de família, especialmente popular nos anos 40), Okaasan marca o regresso de Naruse ao seu território ficcional de predileção e às suas protagonistas lutadoras, já que, durante a Segunda Guerra Mundial, tivera que atenuar a sua faceta mais progressista e crítica da sociedade japonesa, sob pena de censura. No entanto, este novo retrato da condição feminina que se oferece como espelho das contradições do Japão, entre as tradições do passado e a modernidade do pós-guerra, foge, de certa maneira, ao tom melodramático que carateriza a maior parte dos filmes de Naruse nos anos 50 e 60, geralmente adaptados de romances de autores de renome (Yasunari Kawabata ou Fumiko Hayashi). De forma algo inédita, o argumento de Okaasan (da autoria de uma mulher, a argumentista Yoko Mizuki que colaborará com Naruse em vários outros projetos) inspira-se na composição de uma estudante, vencedora de um prémio literário, sobre o tema da mãe.
Perto do fim, o grande plano de Toshiko vestida de noiva, sob o olhar e o sorriso da mãe Tanaka, em pano de fundo, lembra-nos que as filhas de hoje serão as mães de amanhã.
Também no início do filme, é a partir da narração em voz off de uma adolescente, Toshiko [Kyoko Kagawa, num dos seus primeiros papéis, antes de figurar em Tōkyō Monogatari (Viagem a Tóquio, 1953), de Ozu, ou Chikamatsu monogatari (Os Amantes Crucificados, 1955), de Mizoguchi], que são apresentadas as outras personagens, com particular destaque para a figura da “Mãe Coragem”, magistralmente interpretada pela musa de Mizoguchi, Kinuyo Tanaka (um ano antes de a atriz se lançar na realização dos seus próprios filmes). Em torno deste duo de mãe e filha gravitam vários atores icónicos da história do cinema japonês e mundial, nomeadamente Eiji Okada, no papel do pretendente romântico de Toshiko, sete anos antes de interpretar o amante japonês de Emmanuelle Riva, em Hiroshima mon amour (Hiroshima, Meu Amor, 1959), de Alain Resnais.
Em Okaasan, Naruse filma o quotidiano da família Fukuhara, marcado por dificuldades económicas, separações dolorosas e sucessivos infortúnios: doença e morte do filho mais velho, seguido do mesmo destino fatídico para o pai, e, por fim, face à impossibilidade de sustentar toda a família, a decisão de entregar a filha mais nova a uma família adotiva. As consequências da Segunda Guerra Mundial fazem-se igualmente sentir, evocadas por algumas das personagens secundárias (antigos prisioneiros de guerra, viúvas de soldados) e, sobretudo, pelo estado de pobreza e de estagnação que caracterizam o espaço social no qual decorre a ação, um bairro popular nos arredores de Tóquio, filmado num preto e branco austero e claustrofóbico que faz por vezes lembrar os cenários de despojos do neorrealismo italiano. Se são vários os elementos da intriga que apontam para o género do melodrama, Naruse pratica a arte da elipse e da sugestão na sua mise en scène: à imagem da resignação com que a mãe de Toshiko reage às tragédias que se abatem sobre o seu lar, a câmara assiste discretamente aos dramas e às (des)ilusões de cada um, sem se demorar demasiado nos acontecimentos dramáticos, que se produzem geralmente fora de campo ou nos limites do enquadramento.
Em contrapartida, o cineasta concentra-se em fazer a crónica dos afazeres domésticos e laborais na lavandaria da família (onde tingir um tecido ou passar a ferro são rituais tão preciosos como era, para o pai de Toshiko, o momento em que bebia um copo de saké e comia o seu petisco favorito, preparado pela mãe, no fim de um dia de trabalho); ou filma, simplesmente, as pequenas alegrias do quotidiano reservadas aos mais jovens (um novo penteado, uma conversa sobre literatura entre dois apaixonados, um piquenique na relva, ou um concurso de talentos onde se ouve cantar ‘O sole mio perante o olhar estupefacto dos habitantes locais…).
Deste modo, vão sendo introduzidos elementos de comédia num filme que de outra forma cederia sob o peso do pathos e da gravidade dos temas que nele são abordados. Por um lado, é através da presença de crianças no elenco que Naruse alcança essas qualidades de “frescura” e de “ingenuidade”, de que falava Doniol-Valcroze na sua crítica para os Cahiers du Cinéma, lembrando, por momentos, a ternura pueril e revigorante de Ohayo (Bom dia, 1959), de Ozu. Por outro, o cineasta chega até a inculcar no seu filme uma dimensão de auto-derisão, ao gozar abertamente com o gosto do público pelo melodrama: a dada altura, as personagens decidem celebrar uma das raras coisas boas que lhes acontece indo ao cinema ver um filme que descrevem como “bem romântico e lamechas”; subitamente, surge no ecrã preto a palavra “Fim”, que interpela momentaneamente o espectador extradiegético; mas logo o plano seguinte nos devolve ao universo ficcional, mostrando as personagens a enxugarem as lágrimas no final da projeção a que foram assistir.
No entanto, os instantes de felicidade protagonizados pelos mais novos são raramente partilhados pela mãe, mera espectadora das vidas daqueles de quem cuida sem descanso. Durante grande parte do filme, Naruse trata-a como uma personagem secundária, discreta e passiva, quase muda, relegada ao segundo plano ou às margens dos enquadramentos, tanto que esta quase passa despercebida – não fosse o papel interpretado pela star Kinuyo Tanaka, cujo olhar penetrante transporta a memória de todas as suas heroínas trágicas, esposas, mães, amantes ou prostitutas. Só perto do fim é que a sua presença se começa a fazer sentir na composição dos planos, por contraste com o desaparecimento de algumas das outras personagens que, uma por uma, acabarão por abandoná-la à sua solidão e à sua velhice.
Por vezes, as imagens deixam adivinhar um certo desequilíbrio entre o que a personagem-narradora de Toshiko testemunha, e o que a câmara de Naruse nos mostra. Igualmente raros são os momentos em que o filme se afasta da perspetiva da jovem para sondar os sentimentos de outras personagens secundárias: por exemplo, perto do fim, o cineasta filma Chako (Keiko Enami), a filha cedida para adoção, sentada à secretária do seu novo lar, admirando um desenho que havia feito da sua mãe, antes de o arrumar definitivamente numa gaveta; esta criança, que víramos em cenas anteriores fazer uma birra por não gostar do seu novo corte de cabelo ou divertir-se num parque de aventuras, acaba por ser a única a realmente compreender – porque o viveu na pele – o sacrifício da sua mãe. Chegará o dia em que também Toshiko o aprenderá: perto do fim, o grande plano de Toshiko vestida de noiva, sob o olhar e o sorriso da mãe Tanaka, em pano de fundo, lembra-nos que as filhas de hoje serão as mães de amanhã.
Em França, a reposição em sala de Okaasan, em cópia restaurada, inicialmente no verão de 2021 e mais recentemente no último mês de junho, permitiu redescobrir esta obra sublime no grande ecrã. Um exemplo a seguir em Portugal.
[1] Jacques Doniol-Valcroze, “Ma Mère, je la vois… “, Cahiers du cinéma n°43, p. 50-51, janeiro de 1954