All the world’s a stage,
And all the men and women merely players;
They have their exits and their entrances,
And one man in his time plays many parts.
— As You Like It, William Shakespeare
“Não estou a representar” (“I’m not acting”), confessa, à beira do colapso, uma atriz de meia-idade ao seu encenador, na véspera da estreia nova-iorquina do novo espectáculo. Noites antes, à saída de uma apresentação pública da peça, uma jovem fã, em êxtase por se encontrar cara a cara com o seu ídolo, morrera atropelada minutos após esta lhe ter concedido um autógrafo. Este encontro fulgurante terá um impacto duradouro sobre a atriz que, assombrada por visões da rapariga morta na flor da idade, será obrigada a encarar o seu próprio crepúsculo, simultaneamente profissional, físico e emocional.
Este é o ponto de partida de Opening Night (Noite de Estreia, 1977), nona longa-metragem (num total de doze) realizada por John Cassavetes, autor de várias obras seminais do cinema independente americano na sua vertente de “cinema direto” ou “cinéma vérité“, entre as quais Shadows (Sombras, 1959), Faces (Rostos, 1968) e A Woman Under the Influence (Uma Mulher sob Influência, 1974). Trata-se, no entanto, de um dos filmes aparentemente mais estruturados e auto-reflexivos deste cineasta que, opondo-se desde cedo ao estilo clássico de representação praticado em Hollywood, fez da improvisação a chave do seu trabalho com os atores e a força vital do seu cinema. Tentando manter-se livre dos constrangimentos financeiros e materiais da indústria cinematográfica (e apesar das dificuldades que essa posição acarretou para a distribuição dos seus filmes – note-se que Opening Night foi praticamente ignorado até à morte do realizador, em 1989), Cassavetes soube rodear-se de um núcleo de amigos-atores fortemente implicados no processo criativo, submetendo-os a jogos de improvisação extremos, a duelos febris com a câmara móvel e a grandes planos capazes de emancipar os rostos das suas máscaras. Para além da sua mulher e musa Gena Rowlands, destacam-se no “clã Cassavetes” os atores Ben Gazzara, Seymour Cassel e Peter Falk (sendo que os dois últimos apenas têm direito a uma breve cameo no filme de 1977).
No papel principal de Opening Night encontramos, naturalmente, a avassaladora Gena Rowlands que, no rescaldo da sua inesquecível prestação enquanto Mabel Longhetti, primeira-dama “sob influência” cassavetiana, se entrega, desta feita, de corpo e alma, à personagem de Myrtle Gordon, cabeça de cartaz da peça-dentro-do-filme, intitulada The Second Woman, cuja noite de estreia se prepara.
A questão da identidade e da adequação dos indivíduos no seio de um grupo com regras e dinâmicas próprias é central na filmografia de Cassavetes e, nesse sentido, todas as personagens cassavetianas são, de certa forma, atores e atrizes desesperadamente à procura de um papel que lhes permita serem livres e fiéis à sua essência.
Myrtle é uma atriz de teatro no auge da sua carreira que se debate com o papel de Virginia, uma mulher madura e preterida pelos homens que outrora amou; e Myrtle teme que, se interpretar com sucesso essa personagem, passe a ser considerada como uma atriz veterana, relegada a papéis de menor relevo e associados a uma idade na qual não se revê. Paralelamente, a sua crise de confiança é exacerbada pela degradação das suas relações amorosas, ao ser cruelmente confrontada com o declínio dos seus poderes de sedução, precisamente quando procura alento nos braços do seu ex-marido Maurice com quem partilha o palco (interpretado pelo próprio John Cassavetes), ou do encenador e amante ocasional Many (Ben Gazzara). Tudo se passa como se Myrtle acreditasse que, enquanto conseguir ter os homens que deseja, será possível adiar o seu inelutável envelhecimento, nem que seja por mais um dia. Ora, em momentos distintos do filme, os dois homens afirmam que, para eles, Myrtle é acima de tudo uma atriz profissional, “de topo de gama”, e que não a veem mais como uma mulher disponível para amar e ser amada: “You’re not a woman to me anymore” é a resposta amarga de Maurice ao beijo desesperado de Myrtle. Alcóolica, divorciada e sem filhos, a vida da atriz é como o seu apartamento: uma fachada de luxo sobre um cenário vazio à espera de ser preenchido, se não com o amor de um homem e a admiração incondicional dos fãs, pelo menos com o conteúdo de uma garrafa de whisky.
Opening Night retoma assim a tradição hollywoodiana do melodrama feminino em torno de uma atriz envelhecida, cujo exemplo mais célebre é talvez All About Eve (Eva, 1950) de Joseph L. Mankiewicz, com Bette Davis no papel epónimo; aliás, esta fora a atriz preconizada para o papel da autora da peça no filme de Cassavetes, mas este acabou por ser atribuído a Joan Blondell, starlet loura dos anos 30 recorrente em inúmeros filmes de gangsters e musicais com James Cagney, mas que raramente alcançou papéis de protagonista, ficando-se também ela pelo estatuto de “second woman”. No entanto, contrariamente ao filme de Mankiewicz, em que a admiradora mais jovem faz tudo para ocupar o lugar do seu ídolo, no filme de Cassavetes, é Myrtle quem fica obcecada com a imagem da fã que a abordara momentos antes de morrer, ao ponto de ver nela o símbolo dessa época de juventude áurea, já perdida, mas ainda desejada. Através da confrontação entre as aparições da personagem de Laura Johnson, resplandecente com a sua pele imaculada e o seu cabelo brilhante, e os grandes planos decadentes de Joan Blondell, envelhecida sob a maquilhagem carregada e os chapéus extravagantes, torna-se palpável não só a passagem do tempo como a crise emocional e identitária de Gena Rowlands/Myrtle Gordon/Virginia, magistralmente materializada no jogo de espelhos do plano em que a atriz se desmaquilha, despindo a sua personagem fictícia e pondo a nu a mulher “real” – e, por isso mesmo, naturalmente imperfeita – que é.
Opening Night assume igualmente os contornos de um melodrama de bastidores com laivos de loucura e de onirismo vertiginoso, à maneira de The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos, 1948), All That Jazz (All That Jazz – O Espectáculo Vai Começar, 1979) ou, mais recentemente, Birdman (2014). Ainda que as alucinações de Myrtle possam ser encaradas como uma consequência do seu consumo excessivo de álcool, na verdade, nunca o cinema de Cassavetes esteve tão próximo do género do horror, levando ao limite a exploração da porosidade entre a arte e a vida, entre as personagens e os seus intérpretes, e abordando o ato de criação como um ritual de exorcismo.
Assim, o momento em que Myrtle profere a frase “Não estou a representar” marca, de certa forma, a sua tomada de consciência do estado de (con)fusão entre a atriz que julga ser e a personagem que deve encarnar, duas identidades ontologicamente distintas que, envoltas no fumo de sucessivos cigarros e inebriadas pelo álcool com que anestesiam o seu sofrimento comum, coalescem numa única e mesma mulher. Estas palavras podem ser entendidas simultaneamente como um apelo desesperado de Myrtle ao perceber que se encontra em plena espiral de auto-destruição – que descreve como uma perda da noção da “realidade da realidade” (“I seem to have lost the reality of the reality”, ouvimo-la dizer num sussurro) –, e como uma recusa brutal em desempenhar os papéis que lhe são prescritos dentro e fora do palco. É desse ato de resistência continuamente reiterado e abertamente performativo – por exemplo, sempre que, nos ensaios, Myrtle se atira ao chão para se esquivar à bofetada que Maurice lhe deve dar, ou quando começa a falar para o público nas apresentações da peça, rompendo a quarta parede – que decorrerá a derradeira possibilidade de uma libertação e reinvenção de si mesma.
A questão da identidade e da adequação dos indivíduos no seio de um grupo com regras e dinâmicas próprias é central na filmografia de Cassavetes e, nesse sentido, todas as personagens cassavetianas são, de certa forma, atores e atrizes desesperadamente à procura de um papel que lhes permita serem livres e fiéis à sua essência. Opening Night explora essa premissa de forma bastante literal ao nível do argumento, mas é no estilo de realização característico de Cassavetes que a expressão do seu amor pelo trabalho do ator/atriz atinge o seu paroxismo. Ao longo do filme, não é possível distinguir claramente as cenas da peça e as cenas de bastidores, os momentos em que os atores seguem o texto ou aqueles em que improvisam, já que a representação teatral se impõe como o modus operandi de todas as relações humanas. A cena final é provavelmente uma das mais belas catarses na história do cinema: chegada a noite de estreia, Myrtle aparece no teatro a cair de bêbada, mas decidida a “virar o espectáculo do avesso para ver se consegue encontrar algo de humano nele” (“Let’s dump it upside down and see if we can’t find something human in it”). E quando Myrtle/Gena Rowlands e Maurice/John Cassavetes sobem ao palco pela última vez, assistimos a uma inesperada libertação: depositando toda a sua confiança na insurreição do gesto, os seus corpos sobrepõem-se ao texto encenado e, entregando-se a uma dança burlesca feita de caretas, evitamentos e rasteiras, acabam por colidir num feliz reencontro.
Em jeito de conclusão, vem-me à cabeça o célebre solilóquio “O mundo é um palco”, proferido pela personagem de Jacques na peça As You Like It de William Shakespeare, o qual resume a vida humana como sendo uma série de representações, em que homens e mulheres interpretam diferentes papéis correspondentes às sucessivas etapas da vida, da infância até à morte; espera-se de cada um/uma que siga o guião estabelecido para cada idade, comportando-se segundo as “regras do jogo” que a sociedade lhe impõe. Nesta ordem de ideias, a resistência de Myrtle em interpretar o papel de Virginia pode ser vista como um corolário da sua recusa a passar à etapa seguinte na sua carreira e na sua existência de mulher; ora, é precisamente quando toma consciência da natureza artificial da personagem que se lhe cola à pele e se decide a “fugir ao guião”, que ela percebe que é possível ser simultaneamente autora e atriz do seu próprio papel. E, no auge do seu canto de fénix, Myrtle Gordon/Gena Rowlands parece confessar-nos, nas palavras de Antonin Artaud: “Quando vivo não me sinto viver. Mas quando represento sinto-me existir”.
Noite de Estreia e os vários outros filmes de John Cassavetes estão em exibição, em cópias digitais restauradas, a partir de 21 de julho, no cinema Media Nimas, em Lisboa, e no Teatro do Campo Alegre e cinema Trindade, no Porto.