Consulte: Palatorium do dia 12 de Julho
O grande destaque deste mês é para já uma surpresa, um filme iraniano, Metri Shesh Va Nim (A Lei de Teerão, 2019) de Saeed Roustayi, que apenas agora estreou nas salas de cinema portuguesas, mas que reúne algum consenso entre os walshianos, mesmo fugindo algo ao típico cinema iraniano dos últimos anos, quase um filme de acção policial mas que ilustra os problemas sociais do país, como explica Ricardo Gross no seu comprimido. Un monde (Recreio, 2021) de Laura Wandel pode ser considerado como uma outra surpresa, e dedicado ao mundo dos mais pequenos, mostra como se pode fazer cinema apenas com os dramas quotidianos através deste ponto de vista inusitado dos seus protagonistas – Daniela Rôla escreve sobre o filme. Já Jurassic World Dominion (Mundo Jurássico: Domínio, 2022) de Colin Trevorrow não parece convencer, como prova o comprimido de Ana Cabral Martins, que refere os problemas de mais uma sequela do franchise jurássico.
Dos filmes estreados recentemente, destaque ainda para os textos sobre Elvis (2022) de Baz Luhrmann, Un autre monde (Um Outro Mundo, 2021) de Stéphane Brizé, Lightyear (Buzz Lightyear, 2022) de Angus MacLane e Um Corpo que Dança – Ballet Gulbenkian 1965-2005 (2022) de Marco Martins.
Acrescentamos ainda alguns comprimidos no dia 29 de Julho: Daniela Rôla escreve sobre Haute couture (Alta Costura, 2021) de Sylvie Ohayon, Ana Cabral Martins sobre The Gray Man (The Gray Man – O Agente Oculto, 2022) de Anthony Russo e Joe Russo, e João Araújo sobre A Nossa Terra, O Nosso Altar (2020) de André Guiomar.

Un monde (Recreio, 2021) de Laura Wandel
Será que os jogos de crianças que acontecem num recreio mimetizam as interacções do mundo dos adultos? Ou será que o mundo dos adultos mais não é do que um grande recreio, em que aquilo que acontece é apenas um nível avançado das brincadeiras de crianças? É esta a premissa de que parte a realizadora Laura Wandel, acompanhando o processo de integração de Nora, a prodigiosa criança-actriz Maya Vanderbeque, em cujo rosto a câmara tantas vezes se demora, ora vulnerável, ora quase malévola, revelando todas as agruras e pequenas vitórias nas semanas e meses que se seguem à chegada a uma nova escola. Sendo o recreio um espaço hostil, povoado por desconhecidos e onde a violência se esconde nos cantos, Nora procura o apoio do irmão mais velho e a possibilidade de abrigar-se na sua asa, algo que a segregação de idades e espaços não permite. O que acontece a partir daí, numa luta de sobrevivência dos mais fortes e numa aprendizagem cruel de como tornar-se mais resistente, é a cativante evolução de Nora, desaguando num novo equilíbrio de poder, em que ela é o esteio e o irmão é o fraco. As maldades sofridas por Nora tornam-na mais dura, engolindo a dor, o que leva a que ela ganhe ascendente perante o próprio pai, uma figura estranha que por ali paira (com o rosto ferido, talvez uma marca de violência?), e a quem, a dada altura, a filha peremptoriamente ordena que se vá embora.
As crianças que brincam neste recreio pouco têm de encantadoras. Elas reproduzem a discriminação, o racismo, a intolerância que conhecem dos pais. E não sentem pudor em agredir o mais fraco, se assim conseguirem salvar a própria pele. Como o mundo todo inteiro pode caber num pequeno recreio. Como todas estas coisas podem caber num filme de 72 minutos.
Daniela Rôla, 12 de Julho de 2022

A minha opinião sobre A Lei de Teerão pode ser vista como culturalmente tendenciosa, e dou mais um trunfo a essa leitura dizendo logo que a relativa incapacidade de o filme se entranhar mais em mim está ligada ao registo patético que nele se acentua a partir do momento em que deixamos a actividade policial no exterior e passamos a observar as particularidades do aparelho judicial iraniano. Foi aqui que me lembrei de outro filme iraniano recente, Ghahreman (Um Herói, 2021) de Asghar Farhadi, marcado por momentos de um paroxismo emocional que pode ter correspondência na natureza do povo persa, ou visar uma versão irónica dessa mesma gente que imediatamente ao sentir-se coagida parte para o choro e a vitimização.
A Lei de Teerão filma a miséria humana dos milhões de toxicodependentes a viverem como ratos em favelas improvisadas em baldios onde se acumulam alvéolos de betão que sobraram dos estaleiros da construção civil, e tem o contraponto social do drama num cabeça do narcotráfico que a polícia persegue e que é capturado relativamente cedo na história. Saeed Roustayi ocupar-se-á em particular daquele que a partir desse momento se torna o protagonista do filme, com um retrato cada vez mais abrangente que destrói a sua aura de todo-poderoso para finalmente o mostrar como apenas um que furou a cadeia socialmente fatalista que arrasta os jovens das classes pobres para o tráfico de droga de onde nunca sairão, muitos não deixando jamais de serem meros peões do crime.
É um filme revelador de uma máquina de produção extremamente bem oleada, e em termos visuais impactante, embora no que toca ao quadro humano que apresenta me pareça estar sempre à beira da caricatura, assim como as muitas peripécias nos levam a intuir o sublinhado do absurdo próprio da sátira, que a meu ver limita a adesão emocional que o filme suscita com a escala humana por ele representada. Grande cinema ao nível do virtuosismo da construção e da dinâmica da acção, mas também um filme algo calculista nos efeitos dramáticos que suscita: claramente mais próximo do policial de Hong Kong que do norte-americano.
Ricardo Gross, 12 de Julho de 2022

Jurassic World Dominion (Mundo Jurássico: Domínio, 2022) é o que não gostaria de ser. Jurassic World Dominion gostaria de ser um clássico de acção instantâneo, uma parte do franchise jurássico que respeita e consegue ser citado (já que tanto cita, sistematicamente) ao lado de um dos melhores filmes dos anos 1990 e, talvez, o único filme sobre um parque de dinossauros que funciona de forma exímia. Contudo, Jurassic World Dominion acaba por ser inadvertidamente um filme incrivelmente camp. É um filme estruturado de uma maneira quase disparatada, em que cada cena só existe ou enquanto set piece em que um conceito qualquer que envolve o confronto (mas não necessariamente o conflito) entre humanos e dinossauros ou enquanto mote para chegarmos a um momento desses. Claro que há ainda cenas cujo único propósito é lembrar Jurassic Park (Parque Jurássico, Steven Spielberg, 1993). Não foi bem jogado.
Mas voltemos à ideia de camp associada a este filme. E, sendo franca, este comprimido é só para fascinar quem não viu este filme: a pièce de résistance chega quando gafanhotos mutantes (sim, o motor deste filme são mais estes gafanhotos do que propriamente os dinossauros, eles apenas existem) condenados à morte pelo fogo, rompem, em chamas, a voar pelo telhado do laboratório onde estão a ser tanto criados como chacinados e chovem qual pedaços de lava sobre uma floresta cheia de dinossauros. Sem ser intencionalmente cómico, este filme conseguiu trazer à tela um dos momentos mais absurdos do ano e só por isso (aliás, apenas por isso) quase valeu a pena vê-lo.
Ana Cabral Martins, 12 de Julho de 2022

Haute couture (Alta Costura, 2021) de Sylvie Ohayon
Apenas uma questão: se uma jovem, sem alguma vez ter recebido qualquer tipo de formação e sem experiência, pudesse, em poucas semanas, começar a trabalhar competentemente como costureira num atelier de alta-costura, ainda estaríamos a falar de “alta-costura”? Este é o primeiro ponto, básico, em que o filme de Sylvie Ohayon falha redondamente. A palavra a reter, bem sublinhada por Esther (Nathalie Baye), é “métier”. Estamos a falar de um trabalho que combina vocação e arte, sendo difícil acreditar que Jade (Lyna Khoudri), pelo simples facto de ter dedos delgados, pudesse aprender a fazer renda de Calais em cinco minutos. O filme não é bem servido também em termos de construção do argumento, sem rumo claro definido (ou apenas um rumo inconsequente?), hesitando entre fios de história, pegando em personagens para logo de seguida as abandonar (o caso de Andrée) e noutros casos forçando a nota (as origens de Catherine são referidas até à exaustão). A omnipresença dos tecidos dava-nos a esperança de um argumento com tessitura mais firme. Mas mais desolador ainda do que estas fraquezas é mesmo o facto de o filme padecer de uma inexplicável timidez quando se trata de captar a absoluta delicadeza, requinte, esmero da obra produzida pelas petites mains. Em nenhum momento do filme a câmara se apaixona pela obra, nunca a câmara conquista o espectador para o sublime, sempre pudica naquilo que revela dos tecidos, das rendas, do processo de construção da peça.
Daniela Rôla, 29 de Julho de 2022

The Gray Man (The Gray Man – O Agente Oculto, 2022) é um filme dos irmãos Anthony e Joe Russo distribuído pela Netflix (embora com um pé de dança nas salas de cinema). É ainda escrito por Joe Russo, juntamente com o duo Christopher Markus e Stephen McFeely. Ambos estes duos ficaram famosos pela sua passagem pelo universo cinematográfico da Marvel Studios e o seu pasodoble com os filmes do Capitão América e a última fase dos Avengers. O que significa que têm dois dos filmes mais bem sucedidos nas bilheteiras desde Avatar (2009) de James Cameron. O facto de terem terminado 10 anos de filmes de super-heróis interconectados fez com que fossem louvados. Saídos do carrossel Marvel para passarem a fazer os seus próprios filmes não tem tido a mesma recepção encantada.
Os Russos pegam num guião que não podia ser mais genérico (nem vale a pena mencionar que é uma adaptação de livros) sobre uma secção da CIA totalmente off the books que treina assassinos-com-corações de ouro para dar cabo dos inimigos de estado, ou seja, os maus da fita sempre, claro. Mas o que, nas mãos de outros (estou a olhar para ti, Christopher McQuarrie) poderia ser elevado a algo triunfante no espaço do cinema de acção, pelas mãos dos Russos torna-se possivelmente um dos filmes com mais acção mais aborrecidos que já vi. Para além de não saberem articular a câmara com o mínimo de elegância que torne infindáveis cenas de luta, explosões e perseguições, usam imagens de drone que estão ao nível da série Wheel of Time da Amazon Prime e isto não é um elogio, é uma indicação da falta de perícia e visão dos realizadores. Para além de visualmente enfezado, o filme não tem qualquer ponta de suspense e o elenco — povoado por Ryan Gosling, Chris Evans, Ana de Armas, Billy Bob Thornton, Dhanush, Alfre Woodard e Regé-Jean Page — é desperdiçado de uma forma atroz. As potenciais bombas de charme presentes são drenadas de toda a centelha que poderiam possuir e o que temos em frente é um filme que só pode ser visto enquanto se vê o que se passa no Twitter ao mesmo tempo.
Este par de irmão teve ainda a audácia de dar entrevistas de promoção a defender a nova parceria com a Netflix dizendo que a ida ao cinema é uma “noção elitista” e percebe-se que estão a dizê-lo para incitar visionamentos e desculpar um filme que não podia ser mais desinspirado se tentassem. Não recomendo nem para espreitar.
Ana Cabral Martins, 29 de Julho de 2022

A Nossa Terra, O Nosso Altar (2020) é a primeira longa-metragem de André Guiomar, um documentário rodado ao longo de vários anos junto dos moradores do bairro do Aleixo, à medida que as torres que habitam se vão esvaziando. É um filme próximo de outros rodados nos últimos anos sobre o mesmo tema, como as curtas-metragens Bicicleta (2014) de Luís Vieira Campos, no qual aliás Guiomar participou como assistente de câmara, e Russa (2018) de João Salaviza e Ricardo Alves Jr., que primeiro que tudo retratam as condições desoladoras a que estes moradores têm sido condenados nos últimos anos e especialmente desde que foi anunciado a demolição em 2011 do bairro; e é um filme próximo de Tarrafal (2016) de Pedro Neves, que também foi na altura exibido no festival, sobre outro bairro no Porto (S. João de Deus) abandonado à tristeza, pela forma como retrata com empatia e sem floreados o espírito dos habitantes que perante as adversidades e desamparo das autoridades, tentam fazer o melhor de uma situação difícil.
O filme divide-se entre dois momentos distintos, o primeiro filmado em 2013 quando já tinham sido demolidas 2 das 5 torres do bairro, numa altura em que a degradação das condições de vida já são evidentes, e mais do que isso, os corredores quase vazios parecem cada vez mais habitados por fantasmas e memórias de outros tempos, perante prenúncios de um fim irreversível mas arrastado, assombrados por símbolos como as portas dos apartamentos que são entaipadas, como sinais proibidos sobre uma época, sobre uma comunidade que ali viu nascer e desaparecer famílias. Se esta primeira parte é pouco distinta em relação ao que outros filmes sobre o mesmo tema tinham já revelado, é na segunda parte de A Nossa Terra, O Nosso Altar, filmada em 2019, mesmo já perto do destino final do bairro, que o filme ganha uma nova dimensão. O falecimento de um dos membros mais novos de uma das famílias que o filme tinha retratado no início, e o luto da família que é também luto daquela comunidade, abala o filme e é como se de repente os fantasmas tivessem um rosto. E nesse processo, o vazio que se sente nos prédios, assombrado por um silêncio que cresce e se torna opressivo e ensurdecedor, onde outrora o barulho era sinal de vida, é marcante. Por isso, quando o filme mostra uma espécie de celebração comunitária em honra do filho-irmão-amigo desaparecido, que é também sobre as memórias perdidas, sobre o que foi e não volta a ser, que o filme atinge uma nota emocionante notável, uma redenção contra o apagar da história, e que nos deixa a antever com expectativa o próximo trabalho deste jovem realizador.
João Araújo, 29 de Julho de 2022 [este texto foi originalmente publicado aqui, em Dezembro de 2020]