Coincidências são aspectos curiosos da vida de todos os dias que não faz sentido elevar a um grau esotérico. Permitem que aproximemos elementos que suscitam leituras sobre o que vivenciamos a vários níveis, e por vezes tiramos proveito de seguir para onde nos encaminham. Na manhã do dia em que vi Sundown (Crepúsculo, 2021) de Michel Franco, escutei pela rádio o Adagio assai, do Concerto para piano em Sol maior, de Maurice Ravel, que o também realizador mexicano Alejandro G. Iñárritu usa como coda no seu filme de 2010, Biutiful. Se fosse para quebrar o enigma que persiste quase até ao final de Sundown, relativamente às razões da personagem principal, Neil Bennett (Tim Roth), o rico herdeiro de uma família inglesa ligada ao negócio da carne animal, e a passar férias em Acapulco com a irmã e os sobrinhos, bastava ler a única frase que constitui a sinopse de Biutiful no IMDB: é que não existe forma mais justa e sucinta de dizer de que trata a mais recente realização estreada de Michel Franco.
Nessa semana vi outros três filmes de Franco (n. 1979) e se algo em comum existe entre Después de Lucía (2012), a história de uma rapariga que muda de cidade com o pai, meses decorridos sobre o acidente de viação onde a mãe morre, e que será alvo de bullying extremo por parte dos colegas no novo liceu; em Las hijas de Abril (As Filhas de Abril, 2017), onde uma rapariga que é mãe aos 17 anos verá o seu bebé e o pai da criança serem arrastados para o transtorno de identidade da sua própria mãe; e Nuevo orden (Nova Ordem, 2020), alegoria sobre disparidades e ressentimentos de classe e raça na América Latina, e de como um motim leva à instauração de uma nova ditadura militar pela qual os poderosos repõe a ordem, é o facto de as histórias filmadas incidirem sobre universos privilegiados no sentido em que nada do que faz mover as personagens principais se liga à falta de dinheiro ou de algo de outro essencial, o que não as torna menos vulneráveis à coacção física e moral, à tragédia e ao trauma.
Michel Franco mostra (ou sugere) por vezes aquilo que é difícil de suportar, impondo através da câmara uma distância cerebral face à explicitação dos conflitos (…)
Michel Franco reincide no assinalar dos contrastes entre uma família (aqui deveras) privilegiada e um meio civilizacional que se pode revelar hostil. Usando do seu invulgar sentido de economia narrativa, e do doseamento de informação que procura fugir à armadilha expositiva do cinema corriqueiro, Franco mostra-nos dois adultos e dois jovens num resort de luxo, que vêem os dias de lazer abreviados pela notícia do falecimento da mãe dos adultos, avó dos mais novos. A irmã de Neil, Alice Bennett (Charlotte Gainsbourg) seguirá na frente, com os dois filhos, de regresso a Londres, para tratar das exéquias, na esperança de que o irmão, retido com a desculpa de ter deixado para trás o passaporte, se junte a eles nos dias imediatos. O tempo passa e Neil eterniza-se numa existência apática junto à praia, bebendo cervejas e molhando os pés, mais tarde tendo por por companhia uma jovem local que se torna sua amante. Até que algumas semanas depois, Alice reaparece em busca de uma explicação para o comportamento omisso do irmão.
As razões de Neil não se ligam a um capricho ou a algo impulsivo, e a seu tempo o mistério da personagem mostrará contornos bem humanos com os quais qualquer um de nós se poderá identificar. O que é que o filme de Michel Franco perde com essa explicação? Alguns poderão dizer que perde bastante, e que o balão de uma psicologia niilista se esvazia empobrecendo as qualidades do filme; outros poderão aceitar a opção do argumentista e também realizador Michel Franco, ao revelar o carácter nada excepcional da humanidade do protagonista a demorar-se no seu último Verão. As histórias que Franco tem privilegiado tecem tangentes a um lado terminal que acentua as características humanas das suas personagens. É cinema com uma dimensão laboratorial onde existem aspectos de crueldade que o realizador tem sabido gerir de modo a nunca tornar abusiva a componente mais dolorosa da experiência de assistir aos seus filmes. Michel Franco mostra (ou sugere) por vezes aquilo que é difícil de suportar, impondo através da câmara uma distância cerebral face à explicitação dos conflitos, não se congratulando com o prazer de quem explora unicamente o sofrimento dos outros. Gosto da secura, da acutilância e até da provocação, nos filmes que tem feito.