Não sou entusiasta do cinema japonês dos anos 1990 em diante, que me parece cheio de tiques da pós-modernidade ou afetado demais pelos efeitos da americanização que já era tão criticada desde os anos 1950, mas que foi irreversível e transformou o país e, por consequência, sua cultura e sua arte. Contudo, ninguém pode me acusar de não tentar entender o que foi produzido nesses anos todos. Até porque existem exceções – Kiyoshi Kurosawa, Takeshi Kitano, Shinji Aoyama, Kohei Oguri e alguns outros em alguns momentos – que me puxam para descobrir outras exceções, se existirem. Sion Sono não é uma delas. A meu ver, esse realizador cheio de trejeitos representa bem o que se tornou gradualmente o cinema japonês após a diluição e a radicalização da Nuberu Bagu nos anos 1970: alguns ótimos realizadores, eventualmente até génios, disputando espaço com uma enormidade de realizadores medíocres, ambos os campos alternando projetos mais comerciais com cinema extremo ou no limiar.

Foram dois os momentos anteriores em que me dediquei à carreira de Sion Sono. O primeiro aconteceu entre 2010 e 2012, quando eu ministrava o curso Panorama do Cinema Japonês no escritório do crítico e amigo Inácio Araujo e estava procurando cineastas melhores para substituir Hirokazu Koreeda e Takashi Miike na parte contemporânea, que já tinha também como cativos os insubstituíveis Takeshi Kitano e Kiyoshi Kurosawa. Sempre me pergunto por que não optei por Shinji Aoyama, recém falecido, e acredito que tenha sido a qualidade das cópias o fator decisivo, além de seu melhor filme, Eureka (2000), ter quase 4 horas de duração, inviabilizando a exibição inicial de cada aula para posterior discussão. Pesou também que na época eu não tenha gostado muito de seu Sad Vacation (2007). Mesmo que na ocasião a parcela de filmes interessantes de Sion Sono fosse maior que hoje, nem cogitei colocá-lo porque seria um despautério para o sensivelmente mais talentoso Takashi Miike, e ficar com os dois me parecia equivocado. Sion Sono já me parecia um Miike de segunda categoria.
O segundo momento foi no começo da pandemia, quando não havia muito para fazer e amigos de um grupo de discussão endeusavam Sion Sono como um dos grandes do cinema contemporâneo. Estranhei, mas fui conferir, sobretudo os filmes da década passada, o que serviu para reforçar que esse realizador não era mesmo para mim. Ver seus filmes nunca foi um martírio, pois devo confessar que, afinal, são divertidos em sua maior parte. Mas não consigo engolir a mise en scène (ou ausência de) que há em quase todos os seus filmes. São indigentes, porcas de um modo que envergonha o legado da Nuberu Bagu. Trocando em miúdos: não consigo conceber um admirador de Oshima, Yoshida, Imamura, Suzuki ou mesmo Matsumoto, Fukasaku e Wakamatsu, derramando-se de paixão por Sion Sono.
Eis que provoco, meio por acaso, meio por pulga atrás da orelha, uma terceira ocasião de enfrentar a obra do realizador, um tira-teima, ainda que sem a imersão das outras vezes e mais com o propósito de lembrar de alguns filmes para identificar os que descem razoavelmente bem e os que não engulo nem com coca cola. Eventualmente, percebi alguns que nunca tinha visto, como I Am Keiko (1997), que me pareceu um dos melhores, ou mesmo o melhor, ou o gay-porn quase explícito Dankon: The Man (Phallus the Man, 1998), que me pareceu mais honesto em suas pretensões de choque e mais elaborado na direção. Vistos finalmente em sua integridade, deixaram-me a impressão de que o final dos anos 1990, principalmente o biênio 1997-1998 [do qual ainda vi o bom curta Kaze (1998)] revelava um cineasta promissor, que poderia fazer grandes filmes se pegasse a estrada certa na bifurcação do cinema contemporâneo. Infelizmente, pegou a estrada errada, dos modismos e das afetações.
Após essa terceira passagem por sua carreira, resolvi me dedicar a este texto.
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É comum a divisão da obra de Sion Sono em principalmente dois momentos, tendo Jisatsu sâkuru (Suicide Club, 2002) como o ponto de virada. Podemos até identificar este filme como o miolo de um período de transição entre o cineasta da experimentação em formatos menos usuais (super 8, 16 mm, vídeo) e o cineasta que terá maiores orçamentos e ambições dentro da indústria. Essa transição se encerra, talvez, com Ai no mukidashi (Love Exposure, 2008), um de seus filmes mais elogiados, quatro horas irregulares que parecem intimidar o cinéfilo a gostar se não quiser passar vergonha. O momento pré-transição me pareceu mais interessante, com maiores possibilidades.
Love Exposure consolidava a fórmula de Sion Sono: abordar temas explosivos, com desenvolvimentos escandalosos ou escatológicos, mas de maneira conservadora. Um falso subversivo, falso novo.
Se filmes como Utsushimi (The Real Body, 1999) remetem ao início de sua carreira, mas traduzido por câmaras digitais arcaicas e uma forma ainda mais suja, I Am Keiko, seu melhor filme entre os que vi (cerca de 40, entre curtas e longas) e um dos poucos que vi pela primeira vez recentemente, é tudo que ele buscaria fazer após Suicide Club, sem sucesso, ou seja, uma obra que revela uma poética forte, com uma mise en scène elaborada, sem as habituais sujeiras e o irritante “o que der, deu” que encontramos com frequência em seu cinema. Como limitação, I Am Keiko me parece também o filme mais sintonizado com uma ideia de estética de festival entre todos os que ele realizou até Suicide Club.
Sion Sono iniciou sua carreira nos anos 1980, herdando características de estilo dos realizadores da Nuberu Bagu dos anos 1960 (sobretudo Nagisa Oshima, Kiju Yoshida e Seijun Suzuki) e dos jovens raivosos dos anos 1970 (Shuji Terayama, Akio Jissoji). Infelizmente, seu talento é suficiente apenas para diluir as características desses realizadores em filmes quase sempre irregulares [Love Exposure e Noriko no shokutaku (Noriko’s Dinner Table, 2005)], quando não francamente ridículos [Tokyo Tribe (2014), Riaru onigokko (Tag, 2015), Eiga: minna! Esupâ da yo! (Everyone Is Psychic!: The Movie, 2015), Anchiporuno (Antiporno, 2016), e Prisoners of Ghostland, 2021)], atingindo por vezes um registro estranhamente palatável dentro do seu habitual [Kibô no kuni (The Land of Hope, 2012)]. Seja com qual realizador for sua sintonia temática ocasional, se com Seijun Suzuki, Koji Wakamatsu, Takeshi Kitano, Takashi Miike, Im Sang-soo ou Johnnie To (incluindo aí a porção de filmes bregas de Miike, que tem paralelos com muitos de Sion Sono, enquanto a breguice em Kitano e To é mais tolerável), há sempre uma impressão de derivação empobrecida, um aspecto de fanboy que se revela um limite incômodo para alguém que parece perseguir a originalidade de enredo e estilo com tamanha sede.
Love Exposure consolidava a fórmula de Sion Sono: abordar temas explosivos, com desenvolvimentos escandalosos ou escatológicos, mas de maneira conservadora. Um falso subversivo, falso novo. O estilo da maioria de seus filmes de 2008 em diante lembra o das séries de sucesso da primeira década deste século, algo como 24 (2001-2010) ou Law and Order (1990-), ou algum reality show da MTV. Do ponto de vista sexual, uma série como The Deuce (2017-2019) é muito mais ousada e erótica do que o mais erótico dos filmes de Sion Sono. Que com esse programa estético o cineasta seja saudado como original e provocativo diz muito de uma geração que não viu ou viu mal cineastas como Fassbinder, Jacques Nolot, Claire Denis, Chantal Akerman ou Seijun Suzuki, para ficarmos apenas na ponta do iceberg do cinema mainstream. Se entrarmos no exploitation, Sion Sono fica ainda pior nessa fita.
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Os aspectos mais insanos do cinema de Sion Sono se assemelham aos de David Lynch, embora a loucura de Lynch seja muito mais convidativa que a do primeiro, com a exceção de Inland Empire (2006) e de algumas partes de Twin Peaks (2017), momentos em que Lynch desce ao nível de Sion Sono. A loucura do realizador japonês geralmente soa falsa, para impressionar os impressionáveis (graças, Inácio), enquanto a de Lynch normalmente é poesia. Claro que é subjetivo. O texto é assinado, afinal. E não me surpreenderia que alguém considerasse o contrário. Mas a mim soa quase sempre distante essa loucura, uma distância que raramente eu tenho vontade de encurtar, muito porque a mise en scène de Sion Sono é quase sempre de uma frouxidão lamentável, sobretudo após Suicide Club. Resumindo, pode-se dizer que a loucura de Lynch é ao menos bem dirigida, a de Sion Sono, raramente.
Filmografia alguma se sustenta com alguns trechos talentosos pinçados em pencas de filmes desiguais, um efeito gangorra que se multiplica entre os filmes. A de Sion Sono, apesar de todo o endeusamento, permanece um mistério de desleixo e imperfeição, com muito pouco em troca.
Sexo e violência são elementos constantes. Quando conheci a fundo o cinema de Kiyoshi Kurosawa, no final da primeira década deste século, foi uma surpresa a violência que via em seus filmes, como denúncia da sociedade japonesa. Do nada, um homem podia matar um outro, ou uma mulher, batendo com um cano ou algum outro objeto repetidamente em suas cabeças. Mas Kiyoshi Kurosawa tem o estilo elegante e consciente. A câmara se movimenta sempre com algum propósito, e quando fica estática reverbera a força do que está sendo mostrado. Não é uma fórmula infalível de bom cinema, mas funciona bastante nos filmes de Kiyoshi. Já os de Sion Sono, nos quais encontramos igualmente uma violência extrema, muitas vezes justificada por algum desvio da norma sexual, podendo ser pedofilia e até incesto, são cheios de movimentos arbitrários, geralmente tateantes, fazendo, talvez inconscientemente, da imperfeição um estilo.

Koi no tsumi (Guilty of Romance, 2011) que não é de seus piores, é exemplar do que me parece problemático no cinema do realizador. Começa muito bem, com um letreiro nos informando da zona do amor, o bairro da prostituição, e uma transa no chuveiro interrompida pelo toque de um celular. Só vemos a mulher, que sai do chuveiro às pressas para se vestir e sair de casa. Na cena seguinte, ela chega na cena do crime, e sabemos que é uma inspetora de polícia que investiga uma série de crimes na tal zona do amor. Vemos os corpos esquartejados e colados em pedaços de manequim, o pós-violência, a violência que tantas vezes vemos em filmes de Sion Sono. Mas aí vêm os créditos, e depois surge outra história, a de uma dona de casa submissa que se torna atriz porno e prostituta em segredo. Essa outra história, embora dominante em termos de duração, é bem menos interessante. É mais crítica, mostrando o papel que uma mulher normalmente ocupa em uma sociedade patriarcal, em contraste com o empoderamento da policial. Mas a direção me parece bem menos empenhada que na outra história. Na estrutura geral, o realizador parece acreditar que uma montagem não-linear moderniza automaticamente um filme. Ou que basta usar o Adagietto da Sinfonia n°5 de Mahler que marcou Morte a Venezia (Morte em Veneza, 1971) para criar um choque entre o romântico e o naturalista. Poderia até funcionar, caso a realização fosse menos apoiada em escolhas de encenação estranhas ou mesmo ruins. E esse é quase sempre o problema com Sion Sono: escolhas ruins, muitas vezes provocando o efeito contrário ao que a cena parece pedir.
Por vezes, Sion Sono surpreende mesmo dentro da irregularidade. Shinjuku Swan 2 (2017), por exemplo, é melhor que Shinjuku Swan (2015) porque a mudança de Shinjuku para Yokohama parece ter inspirado uma mise en scène mais elaborada, sabe-se lá por quê. Rabu & Pîsu (Love & Peace, 2015) é um dos cinco filmes que Sono lançou nesse ano e surpreende pela comunhão de seu pessimismo com um tom mais juvenil, numa espécie de cruzamento bizarro entre Toy Story (1995), Wall-E (2008), Godzilla, Bruno Aleixo e os Muppets, com Annette (2021) como um primo mais novo na família. A ficção científica Hiso hiso boshi (The Whispering Star, 2015), tem um dos desenvolvimentos mais coesos de sua carreira, embora seja um filme atípico e a limitação apareça claramente na segunda metade: o realizador parece não saber para onde ir.
Filmografia alguma se sustenta com alguns trechos talentosos pinçados em pencas de filmes desiguais, um efeito gangorra que se multiplica entre os filmes. A de Sion Sono, apesar de todo o endeusamento, permanece um mistério de desleixo e imperfeição, com muito pouco em troca. Em alguns casos, em cinema, é o desleixo e a imperfeição que oferecem um estilo conscientemente tortuoso, mas muito vivo, febril, estimulante. No caso de Sion Sono, o que temos de bom nos chega apesar do desleixo e da imperfeição. Daí o lamento por essas duas características serem tão predominantes em seu trabalho.