Road movies vindos do Irão não são propriamente novidade. Aliás, nem mesmo road movies saídos das mãos de um realizador chamado Panahi. Jaddeh Khaki (Estrada Fora, 2021) é o filme de estreia de Panah Panahi, pegando num género tão caro ao seu pai, Jafar Panahi. Seguimos no carro de uma família, sem que conheçamos o rumo, mas sabendo que a viagem decorre num clima tenso, assombrada pela possibilidade de serem seguidos. Não será, pois, difícil imaginar em traços genéricos as circunstâncias que poderão ter levado a esta fuga. Ao volante está o filho mais velho (Amin Simiar), já que o pai (Hasan Majuni) segue imobilizado no banco de trás, com uma perna engessada onde alguém desenhou as teclas de um piano, aparentemente para entretenimento do filho mais novo (Rayan Sarlak) que nelas dedilha um tema musical. Este microcosmo rodoviário fica completo com a mãe (Pantea Panahiha), que segue no banco da frente, junto ao filho mais velho.
Como Panah Panahi teve já oportunidade de mencionar em entrevistas concedidas por ocasião do lançamento do filme, a decisão de dar ao carro um papel de protagonista é tudo menos despicienda. O carro é o espaço de liberdade, privado, um pequeno reduto em que, se não é possível escapar às regras, pelo menos se torna mais difícil a vida de quem controla a sua aplicação. O carro é o espaço em que é possível relaxar um pouco (a mulher que pode deixar cair o véu, os namorados que podem partilhar a sua intimidade). O que leva a que o carro possa afigurar-se como mais inviolável do que a própria casa, porque mais salvaguardado do controlo do Estado. Não podemos deixar de associar esta preponderância do carro com aquilo que é um traço que percorre a filmografia de Christian Petzold. Na sociedade alemã, sempre ciente até ao extremo da protecção da sua privacidade, o carro não será menos expressivo enquanto espaço de liberdade, uma liberdade que se faz também pela inesgotabilidade da estrada (ainda que a inexistência de limites de velocidade tenha tanto de real quanto de cerceado), acabando o automóvel por ser significativo a vários níveis, em parte como reduto de privacidade, em parte como elemento essencial de um certo modo de vida, e mesmo como indústria preponderante para toda a economia de um país.
Entre a fuga a uma condenação certa ou provável e o destino incerto, o que interessa é a viagem.
Mas regressemos a Jaddeh Khaki, a esse filme de personagens sem nome (uma confidencialidade cautelosa, protectora da sua privacidade?) – apenas a cadela que os acompanha é nomeada repetidamente -, atravessando a paisagem iraniana, mostrando-a também na sua diversidade, entre o sol intenso e as neblinas à la Antonioni. Apesar dessa potencialidade do carro como local em que podem falar livremente, todas as palavras e os sentimentos são extremamente contidos, sempre em plena tensão entre aquilo que permanece latente e aquilo que inelutavelmente se deixa escapar. A mãe é aquela que melhor ilustra esta tensão permanente, cantando um tema popular numa tentativa de forjar a felicidade, apenas aliviada pela criança, que tem tanto de adorável quanto de insuportável, conseguindo levar a mãe à total exasperação (uma criança travessa sendo uma criança travessa). Será numa conversa entre pai e filho trocada entre o correr de um rio e a partilha de uma maçã que percebemos que o filho foge das arbitrariedades do sistema judicial iraniano, numa fuga enquanto há tempo, antes que seja tarde demais.
Entre a fuga a uma condenação certa ou provável e o destino incerto, o que interessa é a viagem. Ou melhor, o que interessa são aqueles derradeiros momentos partilhados com o filho antes da sua partida, numa versão invertida da despedida de Monty Brogan em 25th Hour (A Última Hora, 2002). O filho parte para aquilo que se espera seja a possibilidade de liberdade, a família fica encerrada no país, no espaço em que tudo lhe será hostil, tudo será luta – lidar com as consequências da ajuda à fuga do filho, lidar com a mais que provável perda da casa onde moravam, todas as economias gastas na fuga.
Temos depois mais uma ocasião em que que o filme obvia à intromissão na privacidade desta família, testemunhando a dor sem grandes planos. A câmara permanece à distância, porque sabe antes de eles saberem, antes de nós sabermos, que aquela já é a verdadeira despedida, a mãe atarefada numa busca incessante de mais um objecto esquecido, ocupação fútil para protelar o momento mais temido, aquele em que tentava não pensar.
Será quando os restantes três passageiros acampam (no mesmo monte onde avistamos ou adivinhamos outras famílias na mesma situação), acreditando ainda aguardar a despedida final do filho, que acontece o momento mais belo do filme. O pai num fato térmico, deitado no chão, em tudo semelhante a um astronauta, contemplando o céu numa stracciatella de estrelas. A criança deita-se sobre ele, os dois vão conversando num aller-retour belo de palavras, ideias, imagens (a este “diabinho delicioso” nunca faltam palavras). As estrelas vão-se acendendo, com o leve tinir de um carrossel de velas natalício. Talvez numa delas more o anjo Clarence de It’s a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela, 1946), pronto para descer à terra para acompanhar o filho mais velho na sua jornada e assim ganhar as suas asas.
Aquilo que se segue, depois de concretizada a partida, é o sentir máximo da liberdade, o carro que segue livremente por um terreno sem demarcações ou regras. É o deserto que reproduz outras imensidões que conhecemos do cinema americano, o solo árido em que o carro se perde. É o fim do caminho para Jessy, a cadela já doente que acompanhou a família durante toda a viagem. É um início de caminho para esta família, no regresso a casa.