Body Double é uma rubrica do À pala de Walsh que transforma o artista convidado num programador (também) ao serviço das suas imagens. No âmbito desta rubrica, cada realizador ou artista escolhe uma obra sua e “programa” (virtualmente) um outro filme para a emparelhar. Num pequeno texto, dá pistas sobre a ligação entre os dois “corpos”.
Desperate Journey (Jornada Trágica, 1942) de Raoul Walsh, à esquerda, e Frágil (2022) de Pedro Henrique, à direita.
“Em Desperate Journey (1942) um filme de acção/guerra do prolífico e maravilhoso Raoul Walsh, um grupo de pilotos aliados despenha-se em território alemão. As peripécias sucedem-se de forma mirabolante num filme onde a ‘economia narrativa’ walshiana é demonstrada com enorme pujança e onde tudo é, por seguimento natural puramente (ideo)lógico, reduzido à acção e ao movimento. Se x sujeitx da ficção europeia é tendencialmente contemplativx, x sujeitx da ficção estado-unidense (não apenas no cinema, mas também, e por notável exemplo, na literatura) é umx sujeitx empoderadx pela sua capacidade de agir. Esta acção representa sem dúvida, e proporcionalmente, a medida da sua liberdade. Desperate Journey é obviamente um filme feito no contexto da Segunda Guerra Mundial em que a indústria de Hollywood investiu milhões de dollars em documentários e filmes de ficção para criar uma imagem unívoca e consensual do nazismo como inimigo demoníaco que importava a todo o custo combater e destruir (isto apesar de anos de complacência para com a Alemanha de Hitler e, claro, da forte presença de forças de extrema-direita nas elites e altos cargos do governo dos EUA; a esse respeito vale a pena relembrar as fascinantes ficções literárias do escritor Philip Roth). A dado momento do filme, no rocambolesco percurso de fuga por território inimigo, os nossos charmosos pilotos apoderam-se de um conjunto de fardas alemãs que os ajudam a camuflar-se. Ronald Reagan, um dos pilotos em fuga e um ainda jovem actor em 1942, será então o único presidente dos EUA a ter usado (publicamente, pelo menos) uma farda nazi. Ora, na cena que escolhi para esta rubrica, em que os vários heróis do filme ‘ocupam’ uma carruagem de um comboio em movimento e praticam as mais diversas actividades para passar o tempo, a personagem de Reagan, ainda mascarado no seu uniforme pedido de empréstimo, vai atirando beatas meio acesas para um retrato-pintura de Herman Göring, o fundador da Gestapo e o comandante-chefe da Luftwaffe (a força de aviação alemã). Esta cena tornar-se-ia, pois, icónica, sobretudo a posteriori, quando anos mais tarde Reagan vem a direccionar todos os seus esforços para a sua carreira política e se torna mesmo, na década de 1980, num dos presidentes americanos do século XX situados ideologicamente mais à direita, o verdadeiro introdutor das políticas neoliberais e ultra-conservadoras na sociedade (e mentalidade) dos EUA pós-Segunda Guerra Mundial.
No Frágil (2022), enquanto decorre um after a toda a potência, mas o sono começa a dar os primeiros sinais de vida, a personagem do Belard atira uns dardos com direito a som de pistola para uma imagem do Trump colada à parede, como se fosse decoração da casa. Esta cena foi pensada como um óbvio piscar de olhos ao filme de Walsh, pretendendo também fazer uma óbvia analogia entre períodos de radicalização da direita (Hitler/Göring-Reagan-Trump) e pequenos gestos simbólicos em que uma beata de cigarro ou um dardo podem talvez representar uma vontade maior de liquidação popular destas figuras ostensivamente fascistóides. 2016 foi o ano em que começámos a rodagem do filme, o mesmo ano em que Trump foi eleito presidente dos EUA e em que se iniciou assim o que viria a ser, apesar de tudo, uma breve, mas nem por isso menos angustiante, fase de trumpismo com implicações mundiais (nem que seja por fortalecer ideologicamente a direita, os seus discursos e as práticas, em todos os cantos do globo). As políticas e os discursos anti-drogas de Trump (um deles brevemente incluído no filme, na rádio de um táxi, com todas as suas conotações racistas e xenófobas anti-imigração mexicana) tornam este mesmo trumpismo numa espécie de superestrutura (à la Marx) que dá forma ao off político e ideológico do filme. Esta referência à figura de Trump ajuda a situar o Frágil num determinado contexto histórico, político e ideológico, enquanto que a referência a Desperate Journey poderá talvez, para xs mais cinéfilxs dxs espectadorxs, ajudar a enquadrá-lo numa certa linhagem cinematográfica que, de forma mais ou menos brincalhona, tem utilizado a sátira ou a comédia (o próprio Walsh define em entrevistas o seu filme como uma ‘comédia de guerra’) como meio de aniquilação simbólica da direita e das suas figuras cristalizadas pelo imaginário colectivo: é o caso destes mesmos proto-fascistas que conhecemos pelos nomes, porventura demasiado humanos, de Herman Göring ou Donald Trump. Sobre a imagem do retrato-pintura de Göring no qual acerta com nova beata, Ronald Reagan (futuro presidente da direita-mais-à-direita-possível) exclama: ‘Hey, I’m getting pretty good. Hit him right between the medals.'”
Pedro Henrique, cineasta