As primeiras cartas de homenagem a Jean-Luc Godard (1930-2022) que recebemos e que aqui publicamos vêm de longe: de França, dos Estados Unidos, de Israel, da Índia… Atestam o profundo impacto que Godard teve na vida de tantos cinéfilos, críticos, editores e cineastas que falam a mesma língua: a do amor ao cinema. Agradecemos cada um destes contributos, tornados possíveis mediante o trabalho de coordenação e de tradução de Sabrina D. Marques.

Jean está farto: para (ou melhor, sobre) Jean-Luc
Ninguém conhece necessariamente o momento da morte de outro – um camarada – se não tiver alguma perspicácia nas artes psíquicas. Achava que teria algum sonho premonitório quando Jean-Luc morresse, mas: nada. 2 da manhã, hora do Pacífico: e eu ainda acordado. Apenas um retweet assim que a notícia rebentou, via Didier Péron, com um link para a história do Libération; uma hora mais tarde, seguir-se-ia a notícia do suicídio. Similarmente, nos dias que se seguiram, esperei por um novo sinal: aconteceu, ou acontecerá, num momento preciso, a cremação de Godard? Impossível dizer. Ainda sinal algum dentro de mim.

Fazer o luto de Godard poderia ter sido “extenuante” ou tornado “épuisé” como o já infame comentário do advogado patrimonial assim coloca. Mas cada processo é único e, em última instância, não-linear: o derrame massivo de luto na internet e o apreço sincero pela vida-obra de JLG tem sido comovente e (pelo menos, para mim) solidária.
A lista de preocupações que ocupava o trabalho-vida de Godard esgota e desafia categorizações. Talvez o legado “godardiano” mais fácil e conciso de evocar seja: os alfabetos (les abécédaires), tijolos e elementos fundamentais de todas as ideias. No final, a matéria foi o seu assunto. “La matière et la mémoire”, entoava ele, citando o livro de Bergson nas Histoire(s) du cinéma.
Eu, na minha (“moi je”), sem a condução, sequer o peso, de JLG e a ansiedade da sua influência, encontro conforto no seu suicídio. Ele nunca ‘‘sucumbiu’’. Alivia-me que Jean-Luc esteja morto. Em dois sentidos. Deixem-me descrever isto. Por um lado, sinto alívio que le poids, le fardeau da sua dominante presença tenha sido removido do fundo da minha mente: acabou-se a encarnação terrestre do Pai e os seus tudo-menos-leves parâmetros impostos. (As algemas do pensamento americano: não são só uma questão de T-shirts, mas também daquelas estúpidas pulseiras: ‘‘WWJLGD?” (What Would JLG Do?). Por outro lado, estou tão confortado e até orgulhoso, imensamente, porque o meu herói foi-se nos seus próprios termos. Na América, quando as coisas começam a apodrecer, as pessoas ameaçam sempre mudar-se para o Canadá. Jean-Luc passou por cima disto, tendo visitado Montréal para a True History e tendo finalmente optado por Great White Northern Lights: Version Intégrale. Eu relembro cada cena do doloroso funeral de Danièle Huillet, e estou consolado por não haver réplica por Godard. Nenhuma ratoeira protestante. Simplesmente, morte e conflagração.
Gostaria de exprimir o meu apreço a Andy Rector, Sabrina Marques e Gabe Klinger por conversarem comigo na noite e manhã da morte de Jean-Luc.
– Craig Keller, crítico americano e editor de filmes em DVD e Blu-ray
‘‘A presença que escolheste não garante nenhum adeus.’’

Por coincidência, enquanto revia Nouvelle Vague (1990) na noite anterior ao anúncio da ida de Godard, uma das numerosas citações literárias usadas no filme foi dita em voz alta e deu-me uma estranha sensação de conforto: ‘‘a presença que escolheste não garante nenhum adeus’’. Fez-me pensar no que é que acontecerá quando este cineasta, que sempre me fez sentir um amador ou um estudante de todas as (melhores) maneiras possíveis, desaparecer para um mundo de ficção depois da vida.
Quando a torrente de tributos inundou as redes sociais no dia seguinte, não resisti a publicar esta citação como mero contributo para o sentido colectivo de luto virtual. A citação em si, parece-me, permite-nos a liberdade de não sintetizar Godard pela elegia, ao mesmo tempo que nos desafia a tentar. Que bom é ser amador! Obrigado, mestre.
– Dan Shoval, realizador e cinéfilo israelita
A alegria de aprender
O primeiro DVD de Cinema do Mundo que comprei foi uma cópia pirata de um episódio do trabalho monumental de Jean-Luc Godard Histoire(s) du cinéma (1980-1998) – “Fatale Beauté”. Que, em retrospectiva, se provou ser um título profético por designar o objecto da maior obsessão da minha vida – o Cinema! O filme e o realizador estavam no topo de uma lista de óptimas recomendações por Dinesh Bhai, um louco e incrível pirata de DVD’s do Bazar Palika, em Nova Deli. Miraculosamente, o DVD ainda está em óptimas condições como se sugerisse ser, tal como o trabalho de Godard, imune à violência do tempo. Vi o episódio nessa mesma tarde com fascínio mas sem perceber muito. Mal sabia eu na altura que continuaria a regressar às Histoire(s) du cinéma pelo menos uma vez por ano e que cada visionamento enriqueceria não só o meu amor pelo Cinema como por todas as formas de arte. Por essa altura, também comprei o meu primeiro livro sobre Cinema – Godard on Godard.

Tinha 17 e a minha jornada no cinema começava aqui. Tanto o livro como o filme me lembravam das palavras de Borges sobre Ulysses de Joyce: um romance nunca está completo. O mesmo pode ser dito de cada criação de Godard, que continuou a reinventar-se constantemente. O impacto de Godard no Cinema é tal que cada vez que se escreve uma frase sobre Cinema, ou se faz um plano, ou se edita uma sequência, não se está a comunicar só com a História do Cinema mas com o legado de Godard. JLG traz-nos de regresso às nossas origens, às origens do Cinema, às origens do nosso amor pelo Cinema. Godard É O Cinema. É impossível pôr por palavras a imensa profundidade pessoal desta perda. Mas há graça por encontrar no luto profundo que é sentido por cada indivíduo que acreditou e continuará a acreditar no Cinema.
Para sempre, Godard.
– Mehdi Jahan, realizador e cinéfilo indiano
As História(s) de JLG
Na noite em que JLG partiu, encontrava-me com um grupo de amigos. Começámos a partilhar episódios, narrando os nossos encontros com o cinema de JLG. Um amigo contou a primeira história. Há uns anos, ele tinha ido comprar a edição integral de Rimbaud da Pléiade, para oferecer à mãe pelo aniversário. As edições da Pléiade, mal ou bem ou com razão de ser, não são dadas. Assim, esta prenda custou ao meu amigo a módica soma de 45 euros ou, para falar francamente, o equivalente a um braço. Feitas as contas, ao meu amigo não sobrava dinheiro para comprar dois filmes de JLG, Éloge de l’amour (Elogio do Amor, 2001) e Notre musique (Nossa Música, 2004), num coffret que custava 30 euros. Assim, o meu amigo pegou no código de barras do filme 300 (2006), ali em promoção entre centenas de outros exemplares iguais, e colou-o cuidadosamente por cima da caixa contendo os filmes de JLG, a fim de não pagar senão 10 euros (o preço do DVD de 300). O meu amigo, que está sempre um passo à frente, dizia: ”Devíamos pagar 3 vezes mais para ver merdas como o 300, e não o contrário!’’. O meu amigo roubou. Mas o dinheiro que se dá à Fnac nunca chegará a JLG, ou chegarão migalhas. O nosso amigo roubou a Fnac, não JLG. E JLG roubaria certamente o seu próprio filme para oferecer ao herói desta história.

Um outro amigo, mais tarde, conta outra história. Quando ele era um jovem liceal que não percebia grande coisa sobre filmes, foi até à mediateca à procura de um livro sobre História do Cinema. Esperava dar de caras com um glossário com uma hipotética lista dos melhores filmes, como se encontram aos milhares na internet hoje em dia, e que desenham uma janela medíocre, formatada e sem singularidade do espectador e do cinema. Este amigo encontrou entre livros sobre assuntos diversos uma série de VHS chamada Histoire(s) du cinéma (1980-1998). Nem olha para o nome do realizador porque ainda não conhece nada, muito menos Godard. Escolheu, sem querer, as imagens. Não escolheu a ideia de ver um filme que poderá ser o único a contar-se na sua própria língua, na sua própria expressão e, por isso, o único a poder realmente contar a história. Não negou JLG: viu por vontade, por entusiasmo. E teve de lutar para ver os 266 minutos, bem mais do que se tivesse pegado num livro qualquer. Não conseguiu o que queria, mas muito mais: a experiência da eternidade, aquela que só JLG pôde encontrar através da(s) suas História(s) do cinema.
– Thibault Solinhac, realizador francês