Depois das cartas vindas de fora, recebemos as missivas de remetentes nacionais. Chora-se e celebra-se o Deus God-ard, encontra-se nele a panaceia para várias crises, da alma e da carteira, um (segundo) pai inspirador e… E aquela de Godard não ter parado quieto, tendo sido apanhado pelo amor várias vezes, pela política outras tantas e ter experimentado absolutamente tudo até à exaustão? O À pala de Walsh agradece a cada um dos godardianos que assinam estas missivas, destacando o contributo fundamental de Sabrina D. Marques na coordenação desta homenagem ao génio endiabrado que tantas vezes se confundiu com o cinema ele mesmo.
Ao Mestre dos Três Primeiros Filmes

A câmara deslocava-se nuns carris, estava eu pouco familiarizado com as práticas cinematográficas, a música arrepiava e era acompanhada com uma voz em off que ditava uma infindável lista de nomes e suas competências. Primeiro Godard! Le mépris (O Desprezo, 1963): o cinema e aquilo que ele contempla num não tão banal genérico. Depois, a mesma rebeldia que havia vivido com os putos aqui do bairro, numa Paris que afinal era a de Truffaut [de Jules et Jim (Jules e Jim, 1962)] mas que se confundia bem com a de Godard. O cinema aparecia-me tarde e era um deslumbre pouco comedido. Uma ideia de Truffaut regressava [em À bout de souffle (O Acossado, 1959)], agora pelas mãos de JLG, numa rebeldia em forma d’um primeiro filme que espalha elegância nas grandes avenidas de uma Paris noir et blanc de cafés & cigarros, carros, amores e pulhice. Volto aos números e ao Número deux (Número Dois, 1975), segundo primeiro filme, num confronto homem-câmara, câmara-homem sensato e terno, quanto a mim. Interrogar-vos-á que passe a galope toda uma fase que levantará grandes questões, mas que serviu de preâmbulo apenas: chego ao grande happening estrutural-visual, Le livre d’image (O Livro da Imagem, 2018) numa projeção memorável. Confunde-se o cinema com tudo, uma grande epopeia, orquestração de elementos díspares e desconcertantes, inexplicável terceiro primeiro filme. O Maître controlou a cena, foi-se com decoro e imortalizou-se como o único que fez três primeiros filmes.
P.S.: Ainda acredito que os 2 minutos de Je vous salue, Sarajevo (1993) podem trazer crentes para esta religião em desuso.
– Paulo Carneiro, cineasta e crente
Nós por cá todos bem
No final de 2015, fui convidado a programar uma série de curtas-metragens a ser projectadas numa conferência sobre empregabilidade jovem, numa altura em que os principais partidos de esquerda acabavam de formar uma solução governativa deixando Passos Coelho de fora para tentar “virar a página da austeridade”. Nos 4 anos anteriores, a solução fácil e publicitada ad nauseam para fazer face ao problema da dita empregabilidade jovem tinha como mote o empreendedorismo, uma espécie de culto promovido por gurus da economia e gestão, associando-se também a outro culto, o coaching. Dentro deste espírito, a selecção de filmes serviria como inspiração para os jovens (da zona onde ia ter lugar), no âmbito de uma conferência que não passaria sem a sua dose de lugares-comuns, futuros invertebrados e discursos bonitos carregados de motivação.

Uma das curtas-metragens que escolhi não é verdadeiramente uma “curta”: isolei uma sequência de Tout va bien (Tudo Vai Bem, 1972), realizado por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin em plena fase de experimentação do grupo Grupo Dziga Vertov. Desenvolve uma sucessão de travellings num único espaço, o interior de um supermercado onde as pessoas circulam com os seus carrinhos em silêncio. Ouve-se apenas o monólogo de uma repórter — “um grande ponto de venda e um teatro social ao mesmo tempo” — e, um pouco depois, um membro do Partido Comunista Francês, a vender o seu programa. De seguida, a intensidade vai aumentando progressivamente com a entrada de manifestantes que, numa primeira intervenção, tomam de assalto a banca do partido — “em vez de vender os livros como legumes, explica os teus pontos de vista” — e, para acabar em grande, começam a revolução nesta catedral do “grande capital” enchendo os carrinhos de toda a gente, gritando que podem (e devem) sair sem pagar. A antecipação dos momentos que se seguem é um dos trunfos destes travellings, não fazendo prever se toda a gente sairia viva da revolução (com os respectivos carrinhos cheios de compras) mas Godard e Gorin terminam a sequência com a inevitável intervenção policial já dentro do supermercado (ou não seria este um filme brechtiano, como diria Gorin numa entrevista).
Não assisti à conferência sobre os amanhãs do trabalho, da organização apenas me comunicaram que a projecção “correu bem”. Desta forma, não sei se fiz a minha parte para lembrar aos jovens, os futuros empreendedores, os futuros “colaboradores”, os futuros funcionários, os futuros operadores de call center, os futuros caixas de supermercado, que a disrupção que começou com o Maio de 1968 é o melhor antídoto contra os propagandistas da máxima “Tout va bien” (traduzido por uma certa classe política para “não há alternativa”) aplicada ao mercado, ao trabalho, ao mundo sufocado por desigualdades. Mesmo que a revolução tenha chegado ao fim, Godard nunca nos deixa ficar mal: “Mantém-te ao lado da verdade, mesmo que esta pareça improvável”*.
* Frase escrita numa porta que aparece no mesmo filme.
– Pedro Treno, arquitecto, programador e cinéfilo
“Oui, c’est idiot, je t’avoue. / Je voulais te revoir pour savoir si te revoir me fait plaisir.”
Se Jean-Luc Godard dizia que “um filme tem de ter um princípio, meio e fim, mas não necessariamente por essa ordem”, então a minha iniciação na sua obra fílmica foi logo um desrespeito a um dos seus aforismos mais célebres, pois comecei precisamente pelo princípio. Sendo filho de pais cinéfilos, e ainda a alguns anos de escolher seguir o estudo e a profissão do cinema, já tinha lido alguma coisa sobre o realizador, sabia que era considerado uma instituição da cultura francesa e que havia razões de sobra para amá-lo ou odiá-lo. O meu pai falava-me de como, em jovem, ficara loucamente apaixonado por Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965) ao ponto de vê-lo várias vezes e convencer todas as suas amizades a irem assistir ao filme a uma das salas que o tivesse em cartaz – mas já não tinha pachorra para os seus filmes mais recentes. Os primeiros, esses sim, eram excepcionais. Por isso, e graças à videoteca caseira que ele construíra ao longo dos anos, ver À bout de souffle (O Acossado, 1959) numa cópia VHS gravada da RTP2 foi tão simples como retirar um livro de uma das prateleiras dos meus pais e começar a folheá-lo. Ironia das ironias: Godard podia não gostar nada da televisão, mas esta foi determinante para que muitos curiosos como eu pudessem conhecer a sua obra.

E, não tenhamos dúvidas, ver o À bout de souffle, mesmo no ecrã dito pequeno, foi uma grande revolução pessoal. O charme e carisma do marginal Jean-Paul Belmondo seduzindo a beleza e inteligência perturbadoras de uma Jean Seberg à procura de um futuro qualquer em Paris; os jump-cuts bruscos e impactantes que mandavam o raccord clássico para o inferno sem que o filme perdesse nada com isso (no fundo, a montagem a começar a ser também um beau souci na minha vida); as citações aos clássicos do cinema, aos seus realizadores e às suas stars; os diálogos que dançavam entre a alta literatura, a poesia do quotidiano, os aforismos espirituosos e a conversa de rua mais corriqueira com a graciosidade de uma bailarina do teatro Bolshoi; a música de Martial Solal recordando-nos que estávamos numa França romantizada sob a sombra jazz do film noir norte-americano; a in-joke aos Cahiers du cinéma e o Belmondo a destruir a quarta parede mandando o espectador lixar-se caso este não gostasse do mar, das montanhas e da cidade; o argumento supostamente escrito em cima do joelho e cheio de improvisos da parte dos actores e da equipa artística que, no fim do dia, tinha uma estrutura irrepreensível e, de acordo com o testemunho de várias pessoas que viviam os seus verdes anos na altura em que o filme estreou nas salas, conseguia captar com precisão fotográfica o espírito do tempo em que foi redigido… No fundo, a sensação de liberdade em estado puro no acto de criação fílmica a resultar numa obra-prima da sétima arte cuja iconografia ainda hoje faz parte do nosso imaginário colectivo. Era um filme inteligente, profundo, poético e (digamo-lo sem pudores) muito divertido, com um sentido de humor único. Quando, anos mais tarde, voltei a ficar boquiaberto ao visionar o Chungking Express (1994) de Wong Kar-Wai, reencontrei nele a mesma beleza, a mesma inventividade formal, o mesmo desejo de poesia e a mesma sensação de diversão e liberdade – a prova de que o cinema de JLG fizera escola e deixara herdeiros, mesmo numa cinematografia tão distante da que existia no hexágono francês nos anos 60 como era a de Hong Kong nos anos 90.
Já referi noutro sítio (tal como muitas outras pessoas) que há um antes e um depois de O Acossado na história do cinema, e que isso seria o suficiente para imortalizar Jean-Luc Godard mesmo que este não tivesse rodado nem mais um metro de película ou um centímetro de videotape. E, no entanto, podia passar muitas páginas a falar das experiências memoráveis que tive a visionar Le mépris (O Desprezo, 1963), Pierrot le fou (o meu pai tinha razão em ter-se apaixonado, de facto…), Week End (Fim-de-Semana, 1967), Alphaville (1965) e outros com um entusiasmo quase inesgotável. Porém, há que ser justo e pôr as cartas em cima da mesa: como o meu pai, faço parte daquele grupo de pessoas que acha a primeira fase da filmografia de Godard infinitamente mais interessante e rica do que as subsequentes incursões no domínio de um cinema muito mais ligado ao experimentalismo formal absoluto e ao ensaio audiovisual hermético. Mas mesmo esses exemplos que não me seduziram não deixam de ser o resultado de uma permanente reflexão sobre o cinema e o mundo que, parece-me, constituem uma continuação dos pensamentos que exprimira na sua obra escrita enquanto crítico de cinema – e que, tal como as suas restantes fitas, fizeram com que não mais olhássemos para os filmes e para o mundo em que vivemos da mesma forma. Não é essa, afinal, a marca de um grande autor?
Por último, um conselho para mim mesmo e para todos os que me acompanharam neste texto: há que ver os filmes de Godard que falta conhecer e rever os restantes que já amamos para confirmar se ficaríamos felizes por revê-los. Acredito francamente que será esse o caso…
– Ricardo Gonçalves, montador de cinema e televisão
GOD-ART
Não foi Godard e o seu grupo das capas amarelas, quem inventou a cinefilia? Da mesma forma que não há livro de cinema que não cite Godard algures, reciclando máximas replicadas à exaustão, as mais banais conversas cinéfilas parecem ser sempre preenchidas com anedotas sobre Godard. Acerca do carismático realizador, que tanto ascendeu ao patamar de mito como de troll, escuta-se com a avidez de uns olhos arregalados, um sorriso pregado, um ligeiro esgar de reprovação e puro desinteresse em destrinçar o que é verdade ou mentira. Será que ouvir sobre os projectos que Godard abandonou, os seus excessos ou o mau feitio que o precede, nos diverte porque nos aproxima da dimensão humana do génio?

Como aquilo de Godard reescrever o guião de À bout de souffle (O Acossado, 1959) e de Le petit soldat (O Soldado das Sombras, 1963), a cada dia de filmagens, ainda assim improvisando? E aquilo de Godard querer conhecer a musa Karina porque a viu nua num anúncio de sabonete? E aquilo de Godard dizer a Karina que ia sair para comprar tabaco e só aparecer passadas três semanas? E aquele infame programa de TV que, em 1987, provocou um encontro inesperado entre Godard e Karina, fazendo-a sair do ar em lágrimas? E aquela vez em que, em 1967, Fritz Lang chamou ao Godard de bébé, em comparação consigo, le dinosaure? E aquela famosa foto do realizador em tronco nu, em 1983, depois de uma partida de ténis? E aquele dia em que Godard esmurrou o produtor de Sympathy for the Devil (1968), quando o documentário foi exibido em Londres? E aquilo de Godard redigir com Marguerite Duras um boletim panfletário no Maio de 68? E aquilo do La Chinoise (O Maoísta, 1967) ser repelido pelos próprios maoístas? E aquilo de Godard ser rejeitado pelos estudantes da Sorbonne (como mostrava o biopic Le Redoutable (Godard, o Temível, 2017)] e chamado de ”le plus con des suisses pro-chinois”, como mostrava um graffiti no documentário No Intenso Agora (João Moreira Salles, 2017)? E aquilo de Godard ter feito British Sounds (1970) para a BBC Weekend e o canal se ter recusado a passar o filme? E aquilo de também a televisão italiana se ter escusado a exibir o pré-encomendado Lotte in Italia (1969)? E aquilo de Godard ter odiado La nuit américaine (A Noite Americana, 1973) de Truffaut, pedindo-lhe dinheiro para fazer um filme em resposta – e que, em vez disso, deixaram de falar? E aquela vez em que Godard levou com uma tarte na cara, na boa tradição da comédia slapstick, ao ser vaiado em Cannes por Je vous salue Marie (Eu Vos Saúdo Maria, 1985)? E aquilo da exibição desse filme também ter sido proibida na Cinemateca Portuguesa, pelo então catolícissimo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa? E aquilo de Bergman rejeitar o cinema do seu fiel discípulo, mesmo depois de este lhe ter dedicado nos Cahiers o icónico artigo Bergmanorama? E aquilo de Godard depois ter feito o mesmo a Spielberg, seu assumido fã, afirmando em entrevista, que “não o conhecia mas que os seus filmes não eram lá muito bons”? E aquilo de Godard dizer que preferia que Tarantino lhe tivesse enviado dinheiro em vez de ter chamado à sua produtora de Bande À Part? E aquilo de Godard, por falta de fundos, não ter conseguido acabar Jusque à la victoire (1970) na Palestina, daí ter inserido no filme a footage da família francesa? E aquilo de Godard ter assinado um contrato com a Cannon num guardanapo, a fim de incluir Woody Allen no cast de King Lear (1987)? E aquilo de ter filmado o famoso prólogo de Le mépris (O Desprezo, 1963), apenas porque os produtores, insatisfeitos com o rough-cut, queriam mais nudez de Bardot? E aquela ideia, de Godard e Anne-Marie Miéville, de fundar um canal de TV em Moçambique, em 1980, a convite de um governo que depois lhes recusa a proposta? E aquele projecto de Godard, em 1978, com Santiago Alvarez, Ruy Guerra e Jean Rouch, de lá fundar também uma cinemateca? E aquilo de Godard se auto-intitular God-Art ou Jean-Luc Cinéma Godard? E aquilo de Godard ter ficado duas semanas na casa que Gorin partilhava com James Benning em L.A., tentando arranjar fundos – em vão – em Hollywood, para um projecto ilustrado por recortes e palavras escritas com lápis de cera? E o boato de que Godard teve um acidente nos anos 90 que lhe deixou disfunções, daí em diante começando a gastar compulsivamente nos mais recentes modelos em máquinas de filmar: HD, 3D, 4K, etc.? E aquilo de Paul Vecchiali dizer que Godard sempre financiou, pela calada, projectos de jovens cineastas? E aquela vez em que, em 2010, Godard rejeitou o Óscar Honorário e não pôs lá os pés para o receber? E aquela vez em que, em 2018, não foi a Cannes receber a Palma de Ouro, mas lá mandou um vídeo feito com o telemóvel? E aquilo de ter sido capturado a caminhar na sua rua ao lado de Anne-Marie, numa foto panorâmica da Google Maps? E aquilo de Roxy Miéville, a cadela de Jean-Luc e Anne-Marie, ter ganho um prémio em Cannes pelo seu desempenho em Adieu au langage (Adeus à Linguagem, 2014)? E aquela vez em que fechou a porta de sua casa na cara de Agnés Varda, que o visitava enquanto gravava o último filme [Visages villages (Olhares Lugares, 2017)], mas acabou a chorar de mágoa? E aquele dia em que, conta José Manuel Costa, Godard era esperado a propósito de uma homenagem na Cinemateca Portuguesa mas, chegado a Lisboa, comprou um voo de volta para a Suíça?
Godard pode não ter vindo, mas é porque os seus filmes perduram como sinónimos de cinema que o Theme de Camille ressoa todos os dias pelo espaço, chamando para mais uma sessão. E tanto é o que ouvimos partilhar sobre Godard que decerto esquecemos a maior parte. O nome de Godard convocará para sempre as imoderadas cumplicidades da cinefilia, entre Histoire(s).
– Sabrina D. Marques, realizadora e argumentista