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Dias de cólera, dias de amor

De Raquel Morais · Em 5 de Setembro, 2022

porque forte como a morte é o amor       voraz a paixão como o abismo, 
seus ardores são chamas de fogo               labaredas do Senhor

Cântico dos Cânticos

O Cântico dos Cânticos, livro bíblico que recorre uma e outra vez em Vredens dag (Dia de Cólera, 1943) de Carl Th. Dreyer, tem um estatuto curioso no contexto da exegese bíblica: texto sagrado e ao mesmo tempo dedicado inteiramente ao amor sensual, foi, ao longo dos séculos, lido tanto enquanto poema amoroso, quanto objecto pleno de significado religioso. As interpretações alegóricas que dele foram feitas dão conta da tentativa de suavizar um erotismo evidente. Esta divergência das leituras, sinal das múltiplas qualidades contidas numa única entidade ou objecto, tem eco num filme em que certas coisas integram também o seu reverso.

Vredens dag (Dia de Cólera, 1943) de Carl Th. Dreyer

Ambientado na Dinamarca do século XVII, parte de um período marcado pela violência das perseguições religiosas, a chamada caça às bruxas, o filme inicia-se na casa de Herlofs Marte (Anna Svierkier), curandeira que é visitada por uma mulher necessitada das suas mezinhas. Ao fundo, ouvimos o sino que anuncia o início da sua própria perseguição. Nessa cena, à surpresa da visitante perante o poder curativo de plantas geradas sob os patíbulos onde condenados encontram a morte, Marte responde que há poder no mal: as ervas que crescem num lugar maldito trazem a cura, tal como, na lógica do filme, o ódio contra uma pessoa é por vezes sinal de amor por outra, e os impulsos de vida podem converter-se em desejos de morte.

No final dessa cena, Marte, acusada de bruxaria, foge e procura refúgio na casa de Anne (Lisbeth Movin), a jovem mulher do reverendo Absalon Pederssøn (Thorkild Roose). Anos antes, a anciã ajudara a mãe da rapariga, também ela acusada de feitiçaria e sabe que Absalon livrou essa outra mulher da acusação e da fogueira para evitar comprometer a rapariga em quem, viúvo, encontraria convenientemente uma nova esposa. Como voltará a fazer mais adiante, Marte reclama para si o mesmo direito de ser absolvida. Também nesse dia, Martin (Preben Lerdorff Rye), filho de Absalon, regressa à casa paterna, e a partir desse momento, a vida de Anne, de Absalon, e de todos à sua volta, será fortemente abalada.

A transformação de Anne, personagem central do filme, é, na visão da Igreja Protestante, uma aproximação ao diabo, como aconteceu com outras mulheres do filme, nomeadamente Marte e a sua mãe, mas revela igualmente, como veremos, outras modulações. A rapariga que vemos inicialmente é bondosa, recatada, os seus olhos, nas palavras de Absalon, dóceis. É esta rapariga que esconde, assustada, Marte, e que recebe, incrédula, Martin. Esta parte de Anne acompanha-nos durante a primeira parte do filme, que corresponde, por um lado, ao início e à fatídica conclusão da perseguição de Marte, por outro, à aproximação de Anne e Martin: a morte daquela vai ficando mais próxima à medida que o afecto entre estes dois aumenta.

A Anne que reaparece do outro lado da morte e do amor é muito diferente da primeira: imodesta, desapiedada, sem medo do que seja preciso fazer para ter o que deseja. Nos seus olhos, diz Martin, dançam labaredas.

É curioso que essa primeira parte coincida com um intervalo temporal de quase um mês, de acordo com os autos através dos quais vamos sabendo do estado do processo, e que a segunda parte equivalha a pouco mais do que dois dias, como num sinal da intensidade e da inelutabilidade das paixões e dos consequentes acontecimentos que se produzem. A transformação ou, poderíamos dizer, o desabrochar de Anne separa esses dois momentos e é oportuno perguntar se o que os determina é a execução de Marte, e simbolicamente o aparecimento do diabo, ou a consumação da relação com Martin, e consequentemente a aproximação a algo divino. A semelhança dos nomes e o terem os dois episódios lugar no mesmo dia só reforça a contiguidade de duas coisas que pareceriam, à partida, tão distantes. A Anne que reaparece do outro lado da morte e do amor é muito diferente da primeira: imodesta, desapiedada, sem medo do que seja preciso fazer para ter o que deseja. Nos seus olhos, diz Martin, dançam labaredas.

O jovem descreve o olhar da rapariga com palavras contrárias àquelas que ouvimos da boca do seu pai, o que indica que a questão não é Anne ter-se transfigurado malignamente, mas existirem nela duas faces, ignoradas ou reconhecidas conforme quem a vê. De igual modo,  Anne pode ser uma ou outra coisa conforme as normas que a avaliam, o que remete para um dos pontos fundamentais do filme. Num clima de caça às bruxas, qualquer acusação parece ter o poder de transformar a acusada numa feiticeira. É o caso de Marte, cuja actividade de curandeira retratada na primeira cena do filme levou provavelmente a que fosse acusada, mas sobre cuja natureza não temos certezas, apesar da potência da acusação que recai sobre ela. Se naquele contexto específico, a denúncia e a confissão da acusada são os elementos necessários à condenação, os agouros que pronuncia antes da morte concretizam-se, apontando mais uma vez para o poder singular da palavra, que Dreyer explorou em filmes seguintes, como Ordet (A Palavra, 1955).

Os agouros de Marte concretizam-se ─ a morte de Laurentis, a danação de Absalom, a acusação que cairá sobre Anne. Mas, de modo também significativo, são as coisas que a rapariga vai ouvindo que a fazem rever a narrativa sobre a sua mãe e sobre si. Apesar de não ter certezas sobre a veracidade daquelas denúncias, as simples insinuações de Absalom, também ele sugestionado pelas palavras que Marte pronunciou para o assustar, são suficientes para despertar em Anne qualquer coisa que até aí dormira. A cena determinante é aquela em que Absalom confronta a rapariga com a sua dita pertença a uma linhagem de feiticeiras. Anne percebe o que o marido lhe quer dizer, mas só quando ele se prepara para sair é que o interpela para o questionar, como a mulher que visitou Marte no início do filme, sobre se é realmente possível que a sua mãe tivesse o poder de, pela palavra, invocar os vivos e os mortos. Depois de Absalom sair e ficar sozinha, Anne experimenta o arroubo de querer uma coisa, enunciá-la e vê-la acontecer. Martin entra então na sala, pela porta por onde Marte se havia uma vez escapado, introduzindo uma dúvida irresolúvel ─ foi a vontade de Anne que o fez aparecer ou deu-se apenas uma coincidência entre o desejo e a sua concretização? ─ dúvida que regressará a propósito de Absalom, que, contrariamente ao filho, veremos desaparecer depois das pronunciações de Anne. 

Na noite após a morte de Marte, os dois amantes saem para os campos, lugar da maior parte dos seus encontros. Dentro das casas qualquer gesto menos austero trazia consigo uma insinuação de sensualidade, a juventude estava limitada a tectos baixos e obrigada a observar uma rigidez dos corpos que os aproximava da não existência. Lá fora, os movimentos de Martin e Anne revelam um enlevo e uma frescura que estão completamente ausentes da vida doméstica da qual ele indirectamente a resgata. No exterior, podem entregar-se a um prazer que não depende só do seu enamoramento, mas que advém igualmente do contacto com o mundo natural. Aquele espaço é uma espécie de éden, anterior a qualquer ideia de pecado. É ali que se passam as cenas mais belas de Vredens dag, em que a câmara nos mostra a altura imensa das árvores, as sombras recortadas que o sol, atravessando a vegetação, casta e luxuriante ao mesmo tempo, projecta nas coisas. O cântico fúnebre que antecede no filme os autos de fé reaparece na melodia que acompanha os passeios dos dois jovens. Tudo naquele cenário celebra a vida, a vida que nos momentos de maior arrebatamento, Martin sente no pulso acelerado da amada. Antes da sua união física, os dois, quase totalmente encobertos pela vegetação, falam de um sussurro, de um zumbido, de uma canção que a natureza entoa para eles, com eles, como no Cântico dos Cânticos, em que nenhum evento físico em rigor ocorre, mas em que tudo acontece através da descrição dos amantes ─ de novo a palavra a poder mais do que a acção. O Cântico, que a família reunida em torno de uma mesa lê numa das cenas, tem nesta sequência exterior a mais esplêndida materialização. A maçã do pecado original passa a ser, neste livro bíblico, fonte onde se revigoram as forças, e a natureza, domínio terreno, passa a ser caminho para o divino.

Este louvor da natureza permite-me regressar, para fechar este texto, à identificação de Anne e de outras mulheres como bruxas, identificação que se constituiu como modo sistemático e opressão de uma classe e de um género (Federici, 2004), perspectiva que contribuiria certamente para uma leitura interessante de Vredens dag. A bruxaria, a feitiçaria, a magia foram definidas por alguns filósofos e ecologistas como formas de conhecer e de contactar com aquilo que vive, formas de mediação entre humanos e outros seres vivos. O caminho de Anne rumo ao amor de Martin e, posteriormente, rumo à sua própria perdição são duas faces da mesma moeda. De facto, em certo sentido, é um limiar o lugar que a rapariga habita, ela que abre os sentidos a tudo o que canta e se entretém, jovial, a perfurar com uma agulha o pano de bordar através do qual olha o mundo.

Referências

Federici, S. (2004). Calibã e a Bruxa (trad. Pedro Morais). Lisboa: Orfeu Negro (2020)

Mendonça, J. T. (trad.), David, I.(il.) (1997). Cântico dos cânticos [Edição bilingue]. Lisboa: Cotovia.

As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Vredens dag (Dia de Cólera, 1943)  é parte dessa lista.

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Raquel Morais

“Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam/ para não criar, todas as noites, o problema da opção/ e evitar a humilde perplexidade dos moradores?/ Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,/ que tortura lançam no Méier!”

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