Numa entrevista dada a Vasco Câmara, aquando da passagem de Fogo-Fátuo (2022) na Quinzaine do Festival de Cannes, João Pedro Rodrigues (JPR) confessava — numa afirmação que suporta uma luta activa contra a sedimentação de um estilo pessoal e artístico — que procura que cada novo filme faça “esquecer o anterior” (o que é fascinante é que essa procura de uma frescura da “reinvenção”, da “presentificação”, depois trabalhe, muitas vezes, sobre a ideia de memória e de passado, mas já lá irei). No caso deste filme, esse “novo” é a primeira comédia de JPR, ou como vem sendo anunciada, uma fantasia musical.
De facto, e à primeira vista, este é um filme mais solto: quer de uma dimensão performativa e dançada (talvez também os efeitos dos recentes confinamentos mentais e corporais], quer na sua ironia que procura tornar o espectador cúmplice das pequenas contradições do presente. São pequenos bombons que vamos desembrulhando, como a célebre dislália real atribuída à personagem do príncipe Alfredo (Mauro Costa), os cadelas com nome de rainha ou as ratas de sacristia (Anabela Moreira e Raquel Rocha Vieira) envergando luvas de látex e as coscuvilhices de sempre. Um presente por onde nos passa a covid-19, as vagas de incêndios, o racismo histórico e estrutural e as palavras de ordem de Greta Thunberg na falsa e solene imobilidade teatral do enquadramento.
Um dos elementos mais interessantes em Fogo-Fátuo é que a sua metodologia cómica vem da coragem em detectar as tensões do passado e, sobretudo, libertá-las no presente. A dança, o desejo, o erotismo, o corpo em toda a sua variedade “acizentam” a existência (como cantam os Ermo, numa música central ao filme, “Preto no branco / Não tão claro como achava / Acizentava / Tudo o que me contornava”). Um exemplo bastante claro dá-se na conversa entre Alfredo e Afonso (André Cabral) — o bombeiro por quem o primeiro se apaixona — após um sessenta nove cheio de caruma e terra no rabo. Ambos, desejando-se, procuram desconstruir a posição contemporânea um do outro: Afonso fazendo pouco da vingança de Alberto face aos seus antepassados colonialistas ao querer uma relação com um “pretinho”; e, vice-versa, Alberto brincando com os sonhos de ascensão de Afonso a um lugar de fala, enquanto, intimamente, sonha com um par de “alvas nádegas”. Como se o desejo falasse mais alto e mostrasse as brechas de uma sólida luta pelo poder. Como se o corpo pudesse “trair” a cabeça, e o ideal o desejo de transformação da realidade.
Cristina Fernandes, sobre La grande illusion (A Grande Ilusão, 1937), num livro recente (C de C), escreve que “[p]or trás da ‘fantasia dramática’ ou ‘drama alegre’, há um ferro em brasa”. Apetece dizer o mesmo de Fogo-Fátuo. Será defeito de fabrico procurarmos o sério no cómico e o cómico no sério? Por exemplo, havia este poder redentor da ficção por debaixo do manto satírico e episódico n’As Mil e Uma Noites (2015) de Miguel Gomes. E tínhamos a procura de uma outra forma de produtividade laboral nos bailarinos operários de A Fábrica de Nada (2017) de Pedro Pinho. Aqui, e sei que, ao escavar temas estamos a contrariar o desejo de JPR na luta contra a fabricação de um estilo ou pelo menos de uma “coerência” — mas é como se não o pudéssemos evitar —, há tópicos que, como assombrações, parecem habitar o cinema do realizador português.
Uma comédia que em tempos terá desejado ser drama, um estilo que se faz no apagamento do ser, que se fixa talvez, apenas, nos breves instantes do orgasmo e na certeza do desejo.
Por exemplo, a abordagem do universo da fundação. Literalmente, Fogo Fátuo parece desconstruir uma ideia de realeza e ancestralidade nacional, tal como a curiosidade pel’ O Corpo de Afonso (2012). E a coisa pode alargar-se, creio, a uma dimensão hagiográfica, no corpo e vida de Santo António em O Ornitólogo (2016). De uma forma mais subtil, a fundação de um espaço vive também dos que a constroem muitas vezes com as próprias mãos, na sombra de um quotidiano pouco visível. Vejo em Afonso — e no universo dos bombeiros — pelo seu trabalho manual, ou, mais vastamente, por corpos que habitam e garantem um espaço na sombra —, o prolongamento de Sérgio, de O Fantasma (2000). São outras fundações — a dos bombeiros, dos homens que recolhem o lixo — cujas instituições também iniciam um espaço nos seus rituais de sobrevivência, mas também de desejo.
Finalmente, como bem explicou o walshiano José Bértolo, o universo de JPR é o da espectralidade. Bastaria vermos o primeiro plano de Fogo-Fátuo para o comprovar — uma típica placa portuguesa de rua dizendo “Travessa da Queimada” com outra inscrição por cima, a vermelho, com números garrafais que nos avisa estarmos em 2069. Os espaços do cinema de JPR dão-nos a ver uma sobreposição de tempos, presentes e passados, memórias que assombram o vísível. O flashback para a relação entre Alfredo e Afonso, com o brinquedo, o carrinho de bombeiros do neto do primeiro, e a sequência das crianças cantando a música de Joel Branco, Uma Árvore um Amigo, guia-nos a esse espaço vazio onde pouco depois os amantes — espectros de um passado que já surge evocado — voltam a uma vida cinematográfica.
Assim, no cinema de JPR, com frequência os lugares vazios são espaços de transfiguração, de evocação sentimental e sobrenatural. Neste sentido, a lembrança de Afonso pelo moribundo André é, de alguma forma, o regresso do passado como espectro, como por exemplo o da personagem de Pedro em Odete (2005). Ou as geografias assombradas pela memória de A Última Vez Que Vi Macau (2012) que depois serão habitadas pela lógica evocadora do cinema. A espectralidade, mais do que uma dimensão trágica ou romântica, corporiza uma memória, trabalha sobre o impossível regresso dos também impossíveis ou interrompidos amores. O cinema faz confluir todos esses tempos e presenças.
Talvez por isso ao cinema de JPR seja tão natural a ideia de dissolução do dogma, da imobilidade e da rigidez da ideia. Pois tudo e todos são corpos não perenes, existências que permanecem etéreas. Tudo é sempre a soma daquilo que foi e que, de momento, é. Os lugares são insuflados de presenças intermitentes, tudo devém outro. As pilas são também florestas, as pessoas coreografias de quadros, cópias que regressam transfiguradas. Control C, control V, diferença e repetição na fluidez do cinema. Uma comédia que em tempos terá desejado ser drama, um estilo que se faz no apagamento do ser, que se fixa talvez, apenas, nos breves instantes do orgasmo e na certeza do desejo. Esse é o fogo que nunca ninguém consegue apagar.
★★★★☆