Tinham passado 20 anos do fim da guerra e toda a gente tinha visto os newsreel: Belsen, corpos a serem arrastados, japoneses mortos nas ilhas do Pacífico, e tudo o mais. Tudo sombriamente real, mas a uma distância segura do público por uma etiqueta que indicava “horrores de guerra”. O que o público de Mondo Cane pretendia era horrores de paz, mas também serem lembrados da sua cumplicidade nesse dúbio processo de documentar estes perversos e rebeldes exemplos do comportamento humano.
J. G. Ballard em entrevista a Mark Goodall
Escrito e dirigido por Paolo Cavara, Franco Prosperi e Gualtiero Jacopetti, Mondo Cane (Mundo Cão, 1962) inaugurou um género, o “shockumentary”, que teria larga reverberação na época e se estenderia por uma série (Mondo Films) que influenciaria outros géneros, no cinema e na televisão, como o terror de conteúdo mais extremo, como se exemplifica com Cannibal Holocaust (Holocausto Canibal, 1980), também uma produção italiana. Nesta viagem ao mundo pré-globalizado, numa era onde as viagens de avião estavam ainda ao alcance de poucos, o espectador incauto esperaria um conjunto áspero de vinhetas, um renovado filme de actualidades, mas logo no genérico a indicação do uso da técnica “technicolor” e a designação de uma banda sonora original, com o que isso representa na transformação das imagens e no condicionamento emocional do receptor de um documentário, deixam-nos despertos, o que é intensificado pelo aviso que abre o filme: “Todas as cenas que irão ver neste filme são verdadeiras e extraídas da vida. Se por vezes são chocantes, é porque há muitas coisas chocantes no mundo. Além disso, o dever do repórter não é adocicar a verdade, mas transmiti-la com objectividade”.

Mondo Cane associou o sucesso de bilheteira a prémios da Academia de Cinema Italiano, à disputa pela Palma de Ouro em Cannes [que iria ser arrecadada curiosamente pelo realista O Pagador de Promessas (1962), do brasileiro Anselmo Duarte] e à participação nos Óscares de Hollywood, com um dos temas, composto por Riz Ortolani e Nino Olivieri. Esse intuito comercial do filme, a mistura assumida de imagens preexistentes com novas rodagens em “technicolor”, mantêm, então, sempre aceso o interruptor de simulacro da realidade. Gualtiero Jacopetti, um dos protagonistas da paisagem dos media dos anos 50 e 60 em Itália, fundou jornais, enquanto cultivava reputações várias, de mulherengo a misantropo, e seria a inspiração de Federico Fellini para o personagem Marcello Rubini, interpretado por Marcello Mastroianni em La dolce vita (A Doce Vida, 1960), documento que abriu uma década em que o mundo mudava e o cinema se transformava com ele. Uma das paixões de Jacopetti, as viagens para lugares inóspitos e longínquos, em particular para a África ancestral e as ilhas do Pacífico sul, seriam um dos eixos privilegiados da série Mondo Films, no contraponto com o mundo ocidental e a sua concepção de progresso.
Mondo Cane não fica, portanto, refém do mundo tribal e faz dos excessos do mundo ocidental um alvo.
O primeiro episódio de Mondo Cane estabelece-se na província de Tarento, no sul de Itália, onde o astro Rudolph Valentino é venerado como um mártir, numa primeira aproximação a uma ideia enviesada de religiosidade, com cartazes e estátuas enquadradas como ícones da idade média, com Hollywood na mira e no pensamento de uma horda de potenciais Valentinos, que a narração traça como uma fileira de indivíduos produzidos pela consanguinidade e a câmara se encarrega de comparar, no culto do desenho de perfis à Valentino: homens que ambicionavam a fama que lhes permitisse escapar à vida dura da ruralidade, da pobreza do sul. Em algo que atravessará todo o filme, a montagem preocupa-se em produzir raccords temáticos mediados por pitadas irónicas do narrador, como na cena que se segue aos reverentes de Valentino, que dá a ver o representante do amante latino na Hollywood dos anos 60, o actor Rossano Brazzi, que numa evidente encenação é perseguido por um bando de fãs que capturam o ídolo e o despem.

A relação intrínseca do mundo e da violência com as imagens produzidas é projectada em Mondo Cane, que se assume como um objecto estético que evidencia a obrigatoriedade, a importância de mostrar essas imagens e de as discutir, sendo que o território que atravessa todo o filme é a Nova Guiné, extensa ilha à volta do Pacifico, repartida por dois continentes, a Ásia e a Oceânia. Há histórias de mulheres que perseguem homens, de poligamia, de outros apetites, como mulheres que alimentam com o peito crias de porcos ou um ritual de um festim de consumo abundante de carne de porco que interrompe cinco anos de fome e de canibalismo. As cenas, ora em planos abertos sobre os lugares, ora em escalas que enquadram as figuras, são claramente encenadas como um musical de Hollywood, com uma fotografia cuidada e movimentos elegantes de câmara, traçados por quem viu os musicais coreografados por Busby Berkeley. É, então, sabotada desde os primeiros minutos a ideia de documentário observacional, impossível de acomodar em sequências como na matança dos porcos à paulada, em que uma espécie de requiem emparelha com uma montagem afiada que ecoará um pouco mais à frente na tradição dos nativos em Singapura, que por respeito aos colonizadores, decapitam touros com solenidade e com apenas uma catanada no dorso, algo que pode ter influenciado Coppola para a encenação de uma cena em tudo idêntica em Apocalypse Now (1979), que antecede a matança do Kurtz de Marlon Brando no coração das trevas do Vietname.
São imagens que davam a conhecer o mundo, de desocultação da sua diversidade, mas também punham em evidencia as possibilidades de manipular o que apreendemos dele, no uso do leque de possibilidades da ficção, como a integração de elementos da comédia quando coloca em alternância o exotismo da engorda das mulheres mais bonitas das ilhas Tabar na Nova Guiné (engaioladas e mantidas a tapioca até atingirem os 120 kg, para depois serem oferecidas ao ditador da aldeia) e o empenho de viúvas obesas num ginásio dos EUA, à procura de perderem peso em exercícios de máquinas, que a banda sonora faz acompanhar de sons e sirenes de locomotivas. Mondo Cane não fica, portanto, refém do mundo tribal e faz dos excessos do mundo ocidental um alvo, em que a alimentação é um sintoma da exibição da abundância, como nas imagens de Estrasburgo, a capital do foie gras, em que se documenta o processo, de patos e gansos alimentados dia e noite com recurso a um funil, até que os seus fígados obtenham a dimensão adequada.

Ballard que participou das audiências fervorosas das pequenas salas do West End londrino dos anos 60, “nessa simultânea repulsa patológica e atracção pela imagem espelhada da violência primitivista” representada nos Mondo Filmes, diz-nos que o público tinha a “percepção de que colaboravam com os filmes, e isso explica porque não ficavam incomodados com o que pareciam ser sequências falsas”, num elogio declarado ao simulacro, em que a “distância entre o real e a simulação irónica do real tinha de ser traçada como quem anda na corda bamba”. Estes filmes participavam da catarse dos traumas do mundo nos anos 60, reflectido na paisagem dos media, onde “nada era verdadeiro, nada era falso”, no pós assassinato de Kennedy na Dealey Plaza no Texas. Nesse seguimento, Ballard tentou através de Atrocity Exhibition pesquisar “uma nova virtude no mundo”, que questionasse quais “as mentiras que são verdadeiras”, numa “ficção conivente que constituísse a realidade do presente”. O público precisava de algo autêntico, nem que para tal tivessem um real falsificado de execuções, procissões com autoflagelação, autopsias: “uma simulação mais ou menos convincente do real era suficiente e até preferíamos”, numa antecâmara para o cerco de imagens e narrativas que temos hoje (nos ecrãs e nas redes sociais), numa audiência à “espera de ser corrompida” em imagens e ficções “onde podemos mapear os nossos sonhos e obsessões”. Até a recepção hostil e desdenhosa por parte da critica parecia contribuir para intensificar o envolvimento do público com o que estavam a ver e “o que lhes passava pelas cabeças: precisávamos de violência para conduzir a revolução social e politica a meados dos anos 60; violência e sensações, mais ou menos abraçadas às claras, para derrubar os velhos templos”. Como conclui Mark Goodall, há uma clara analogia entre o primitivismo destes filmes e as representações de Ballard, na vertigem dos personagens de classe média pelo estado de barbárie.
Na pequena povoação de Cocullo, em Itália, na dianteira de uma procissão religiosa, homens levam as mãos cheias de serpentes, no respeito por um ritual herdado de tempos longínquos, em que aquele lugar estava infestado de víboras, cujo padroeiro transformou em serpentes inofensivas para os humanos. Exalta-se a representação da bondade humana, mas o que o espectador nota é uma vontade indomável de contar histórias, de documentar os ritos na tradição milenar do racconto, de representação do humano através de símbolos e cifras. Também em Itália, na Calábria, a polícia tenta condicionar a tradição de origens obscuras dos Vattienti, que a narração distancia de vários séculos numa punição purgadora de uma comunidade de monges, em que homens fiéis e valentes batem repetidamente nas pernas com uma peça em forma de disco (que integra fragmentos de vidro), o que faz abrir os corpos em sangue, que os Vattienti espalham pelas paredes dos edifícios e pelas ruas, por onde passará a encenação da via sacra. A religiosidade surge, assim, associada à ancestralidade de rituais mais ou menos seculares, mas também à violência exercida sobre o corpo, que para lá do exotismo pretendia exercitar e esticar a moral do espectador, exploitation numa era de amplas alterações de convenções e costumes.

Numa mescla com a religiosidade, Mondo Cane também investe em imagens de morte e na sua representação filosófica. Ao largo do arquipélago Malay, no Pacífico, dispõe-se um cemitério nas profundezas das águas. Os corpos são lançados e, depois de os tubarões levarem a carne, ficam os ossos e as caveiras, como corais trágicos do resultado da purificação, da purga dos corpos, num ritmo notável de imagens que coloca a morte também na disputa do belo; como no segmento seguinte, um plano-sequência de um cemitério de Roma, onde os esqueletos ornamentam paredes, uma tradição dos monges e de um sentido perene do lugar, que também ecoa no costume de uma comunidade na Ilha Tiberina (ao largo de Roma), que cuida todas as sextas-feiras dos ossos, dos restos mortais de vítimas desconhecidas de uma praga, que ali ficaram à sua guarda há séculos. A superação, o cuidar da morte, o derradeiro degrau da ciência e da consciência humana, encontra possibilidades num hotel em Singapura onde se deixam os velhos para morrer. Em mais um episódio em que o simulacro e a encenação parecem estar sempre a espreitar disfarçados de realidade, uma montagem alterna corpos moribundos estendidos no interior e ruas que permanecem vibrantes, com pessoas reunidas para comer, numa celebração da dialética entre a vida e a morte, como se fosse possível filmar a morte para permitir que a olhássemos nos olhos, desprovidos de sentimentalismos, para suspender o seu peso.

O filme equilibra trechos breves com pontuais sequências mais longas, parecendo fazer depender a duração do episódio da capacidade das imagens, e da sua montagem, de espantar ou chocar o espectador. No entanto, essa ideia de conteúdo apelativo como mandato orientador da disposição das imagens, também conhece excepções, como no episódio onde se documentam os excessos dos alemães, em Hamburgo, à custa do consumo de cerveja. A princípio, a narração e as imagens do cambalear e das contendas parecem trabalhar apenas numa direcção: a troça da conduta daqueles homens e mulheres. Mas depois a narração suspende-se e ficamos apenas com a força das imagens, que provoca uma gradação do nosso olhar e uma empatia por aquelas acções. O episódio é dilatado até às ruas e à luz da madrugada, associado a uma melodia harmónica, a uns blues que facilitam uma melancolia, uma festa das fragilidades do humano, expressa numa dança desconexa entre dois homens já sem camisa. Mais do que um episódio ambivalente, um capítulo nocturno de grande riqueza que faz o espectador sonhar com um filme autónomo.

Era ainda uma época decorrente dos feitos da técnica, da exaltação da máquina, expressos no modernismo, que Mondo Cane exibe através de um bailado de luzes de automóveis numa autoestrada norte-americana. Enquanto o narrador debita estatísticas de danos humanos resultantes de desastres viários, um plano-sequência ao longo de uma sucata gigante recorda-nos entrevistas de Ballard que via nestas ruínas algo próximo de uma paisagem romântica, um conteúdo pungente de amontoados de máquinas destruídas que adquiriam uma identidade única suportada em memórias dos acontecimentos e que perduram naqueles cemitérios de máquinas, como retratos de uma civilização suportada na tecnologia. A arte abandonava o sacrário e em breve a Factory de Andy Warhol haveria de se impor no tecido artístico, como parte de uma sociedade de consumo, enquanto se alimentava dela. Num continuum irónico, depois das sucatas, aquelas máquinas obsoletas são prensadas, para depois vermos aquelas carcaças espalmadas expostas em respeitáveis galerias de arte em Paris, onde os restos de um velho Ford será transacionado por meio milhão de francos, numa obra intitulada “o espírito da carroçaria”. Mas o retrato desta época não esquece o panorama de perigo associado à ciência depois do lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima e Nagasáqui, quando futuro e tecnologia deixaram de ser inscrições do mesmo léxico, validando a nostalgia pela ancestralidade, pela regressão darwinista. São mostrados, então, os efeitos dos ensaios da bomba atómica numa ilha do Pacifico, no habitat e nas espécies e mais uma vez o filme consegue surpreender-nos no discurso grave, nos enquadramentos cuidados que seguem uma tartaruga que, incapaz de voltar ao mar depois de desovar, se enfia pelo interior deserto da ilha até morrer de agonia.

Depois de uma larga de touros na arena e nas ruas de Vila Franca de Xira, na exposição insólita e deliberada ao perigo em que se insinua uma deslocação da bestialidade do animal para o humano, Mondo Cane encerra na Nova Guiné um movimento circular: uma tribo de supostos homens das cavernas, ainda habitantes de uma História prévia à descoberta do metal. O narrador interroga-se de como aqueles “selvagens” lidaram com a presença da câmara apontada, o que constituiu uma súmula metafórica do que o filme ambiciona, designadamente no indagar do poder das imagens: o que elas nos dizem, o que significam, inventam ou ocultam. O narrador complementa que estas imagens não parecem registadas por uma câmara, mas sim por um poderoso telescópio apontado à Idade da Pedra. Esse jogo ballardiano de suspensão e diluição do tempo, num efeito similar ao que identificamos em Império do Sol (Empire of the Sun, 1987), surge intensificado quando os aborígenes descem das montanhas para encontrarem um aeródromo, como se em poucos instantes atravessassem milhares de anos. O narrador concluirá que aquele povo, que não conhece o mundo para lá daquelas montanhas, acredita que os aviões são criaturas de Deus, enviadas dos céus pelos seus ancestrais.