Foram ver um dos filmes mais badalados do ano, Nope (2022), a tarde e a más horas. Mas não há como dizer “nope” à vontade de falar sobre este título misteriosíssimo, terceira longa-metragem de Jordan Peele, o realizador de Get Out (Foge, 2017) e Us (Nós, 2019). Luís Mendonça e João Araújo trocam missivas sobre o que muda e o que permanece, de filme para filme, no cinema de Peele. E perspectivam o seu futuro face a tamanha ousadia cinematográfica.
Olá João,
Como vais? Sei que viste recentemente o Nope. Eu também o vi só agora, portanto, sob o efeito de todo o hype que vem rodeando o filme desde que se estreou. Comparam-no a John Carpenter – e o próprio Peele disse que isso é desrespeitoso para o próprio Carpenter, algo que não lhe ficou nada mal – mas também a M. Night Shyamalan (que me parece uma referência bem mais justa do que aquela feita a Carpenter, mas desenvolverei isto nesta nossa correspondência), ao que eu acrescentaria David Lynch [o de The Straight Story (Uma História Simples, 1999) mas também ou essencialmente o de Twin Peaks], Richard Kelly [o de Donnie Darko (2001) e Southland Tales (2006), consubstanciando uma certa vontade de olhar criticamente para a América através do seu mosaico familiar e mediático] e Steven Spielberg [fundamentalmente o de War of the Worlds (Guerra dos Mundos, 2005), sofisticando uma certa linguagem camp ou série B do sci fi].
Uma das coisas que mais me surpreenderam neste filme é a maneira como está construído: uma sucessão de capítulos organizada de maneira, por vezes, não-linear, começando pela forma como a história do chimpanzé vai sendo desenrolada através de curtos flashbacks bastante sugestivos. A forma como Peele organiza ou conjura este storytelling é um dos aspectos, a meu ver, mais notáveis desta experiência, porque há um lado elíptico, “fragmentado” e disperso que acaba por privilegiar o não-dito, quer dizer, é como se o filme fosse enchendo como um balão – não sei se chega propriamente a rebentar com estrondo este mesmo balão, mas o prazer grande está nesse processo de “enchimento”.
Sim, uma gramática nova parece estar a nascer aqui.
De bloco em bloco, de capítulo em capítulo, a sensação que dá é que Peele oferece pequenas compensações, acompanhadas de mais dúvidas, fazendo com que este seja um daqueles filmes – muito raros, diria – em que o espectador nunca está 100% certo sobre o que se vai passar a seguir. Confesso que não sentia isto assim, pelo menos no campo do terror e com este grau de sucesso, desde filmes como Signs (Sinais, 2002) ou até Lady in the Water (Senhora da Água, 2006) do já citado Shyamalan, sendo que vários aspectos remetem de maneira clara para o universo de Shyamalan: a dimensão parabólica de uma fábula que aborda de maneira indirecta aspectos da sociedade americana; a história de uma família ameaçada por uma presença alienígena qualquer e enfrentando as suas próprias dificuldades muito mundanas, como a relação com o falecido pai, a herança do seu negócio (treino de cavalos destinado a produções cinematográficas, negócio com raízes no pré-cinema, mais concretamente, nas experiências de Muybridge) e o desafio de reparar a falta de ligação emocional entre os dois irmãos. O tema do negócio ou do dinheiro é absolutamente central aqui e, a meu ver, neste particular, Peele produz um retrato particularmente corrosivo da sociedade americana – uma dimensão política algo omissa nos filmes dos realizadores que referi até aqui (salvo Kelly) e que era “explosiva” numa obra como Get Out, filme de terror em jeito de sátira social e política sem dúvida interessante, ainda que longe, na sua linguagem formal, de apresentar este grau de depuração.
Porque, de facto, em Get Out e em Us Peele não nos surpreende pela maneira como conta as suas histórias mas, mais propriamente, pela forma como elas se desenrolam e vão, digamos assim, produzindo efeitos sobre as suas personagens-peões. Aqui é dado muito mais espaço às personagens – a lentidão do filme (a meu ver, algo lynchiana) ajuda a isso – mas também porque há um lado awkward, offbeat, uma espécie de natural “falta de jeito” e até uma melancolia que caracteriza o mundo destas personagens, tornando-as mais humanas ou empáticas. Portanto, seguimos para um xadrez assaz estrambólico, um desenrolar lento – lentidão muito bem gerida e “desenhada” – de situações mais ou menos bizarras, quase sempre de mãos dadas com estas personagens. Parece-me que isto não era óbvio, ou especialmente conseguido, nos filmes anteriores de Peele. A minha primeira reacção, neste aspecto, é de espanto face à “evolução” do seu cinema. Trata-se, para mim, da descoberta de Peele como um verdadeiro cineasta, pois apresenta, enfim, mais do que ideias originais ao nível do plot, um ritmo e uma refinada ética na sua mise en scène que privilegia, agora, os silêncios, o não-visto e a dramaturgia, quer dizer, de súbito, tenho de engolir a minha desconfiança em relação ao fenómeno de popularidade em torno deste cineasta e render-me às evidências, dizendo: sim, uma gramática nova parece estar a nascer aqui.
Era isto que queria começar por partilhar contigo, estando muito curioso de saber a tua reacção ao filme. Acho que Nope é um daqueles casos em que cada um verá um filme diferente, parecendo caber tudo aqui e, ao mesmo tempo, trata-se de uma obra incisiva, minimal, até “contida”, apetece-me dizer. O que achaste?
Abraço,
Luís Mendonça
Olá Luís,
É verdade, só consegui ver Nope com algumas semanas de atraso, apesar de tentar seguir atentamente o trabalho de Jordan Peele desde Get Out (na verdade desde Key & Peele, mas isso é outra conversa) – impraticabilidades das estreias em Agosto. Talvez por causa desse alheamento sazonal escapei ao hype à volta do filme – e consegui chegar ao filme com quase total desconhecimento do argumento, algo que aqui me parece importante tendo em conta todo o enaltecimento que o próprio filme procura fazer de um processo de descoberta, de aproveitar a surpresa, de ligar as peças. É curioso que elogies Peele como contador de histórias, já que numa conversa sobre o filme ouvi alguém dizer que Peele, mais do que um bom storyteller, é dotado de uma imaginação hiperactiva, e isso é bem visível na forma como vai buscar elementos diversos e improváveis para os acabar por juntar (a tal ideia de descoberta) numa amálgama de referências e ideias que é impossível não admirar, mesmo que a forma como encaixa certos elementos pareça às vezes demasiado forçada. Já percebi que ficaste mais entusiasmado com o filme do que eu, mas apesar de ter alguns problemas com o funcionamento de certas partes do filme, é uma obra bem mais interessante que o anterior Us, e que, concordo, parece desenhar um novo rumo para o realizador, mais ligeiro e ao mesmo tempo mais investido em desenvolver uma linguagem cinemática própria.
Queria começar por comentar algumas das comparações que referes: concordo em absoluto com comparação a Shyamalan, se pensarmos na fase em que este conseguia criar personagens credíveis e com diálogos humanos, em particular também pela forma como Peele foca a atenção para alguns detalhes como pistas que mais tarde se revelarão importantes (a câmara no fundo do poço, os olhos falsos no “cavalo-manequim”, etc) – a imagem mais imediata é de Signs, mas com a vantagem que Peele parece ter percebido que depender apenas de um twist final (ou que esse twist pode desfazer o filme) não é algo muito interessante. Repara como, talvez como acontecia nos primeiros filmes de Shyamalan, nunca ninguém duvida da premissa potencialmente ridícula que o protagonista (OJ, interpretado por Daniel Kaluuya) parece descobrir no céu: nem quando este conta o que viu à irmã, nem depois com as personagens secundárias que se vão juntar aos dois; não é um atalho “mágico” do argumento do filme, mas vem da construção da personagem de OJ – essencialmente, alguém sério, que não está para brincadeiras. É uma construção metódica das personagens [algo que Shyamalan parece ter perdido, especialmente a partir do campy The Happening (O Acontecimento, 2008), sem noção das personagens ridículas – mas sobre Shyamalan acho que poderíamos ter toda uma outra correspondência], que ajuda a manter o interesse perante situações improváveis, ancorando o filme numa espécie de mini-comunidade, com destaque para os dois “técnicos” que ajudam os irmãos na captura de imagens. Esse espírito de um grupo de semi-desconhecidos forçados a reagir a uma situação inaudita e uma espécie de “desenrascanço” que se segue, própria de muitos filmes série b, leva-me a uma comparação mais tola com um “clássico” dos anos 90: Tremors (Palpitações, 1990), de Ron Underwood.
Será aqui o espectáculo mais interessante do que a ideia de uma crítica a esse espectáculo?
Confesso que tenho algumas dificuldades em acompanhar-te noutras comparações, especialmente Lynch (percebo a referência ao ritmo lento para ceder espaço à normalização da estranheza, e até à utilização da música para pausar a acção, mas tudo o resto é aqui muito mais mainstream e simplista), Carpenter [talvez pela imagem da criatura-balão de Dark Star (Estrela Negra, 1974), mas falta a tensão crescente, o gosto pelo perigo de não saber o que pode acontecer, já que as personagens não parecem vítimas da sua condição ou do seu ambiente mas antes procuram o perigo pela possibilidade da monetização de uma redenção – mas mais sobre isso daqui a pouco], e Spielberg realmente apenas por War of the Worlds, porque Peele procura aliar ao tal gosto pela descoberta da estrutura do filme alguns momentos de gore de que Spielberg sempre fugiu. Além disso, gostava de referir dois momentos importantes no filme, duas sequências que parecem ser já uma imagem de marca de Peele, e que parecem-me irem além das referências-comparações evocadas: primeiro, uma cena de falsa revelação, quando OJ descobre umas criaturas misteriosas num celeiro, que acabam por ser umas crianças a brincar aos disfarces, e outra, que é quando OJ decide ficar abrigado no carro em vez de enfrentar o perigo, com um incisivo nope, espécie de exclamação de quem já viu demasiados filmes deste género e escolhe fazer a coisa mais sensata em vez de procurar uma acção espectacular. São dois comentários sobre o próprio género, contrariando e ao mesmo tempo jogando com as nossas expectativas, numa espécie de comentário meta sobre as regras do jogo (muito evidente em Get Out).
Voltando a Shyamalan e à ideia de fábula, como escreves, sobre a ideia da capitalização do espetáculo, e da impossibilidade (ou perigo) de domar um animal-predador, presente quer na história da sitcom quer no embate com a criatura alienígena, é um poderoso e pertinente comentário (político) a uma sociedade na qual o instinto dominante é tentar alcançar uma qualquer retribuição financeira de uma situação perigosa em vez da auto-preservação, até como sinal da falta de fonte alternativa de obtenção de rendimentos. Isso é evidente quer na forma como os dois irmãos perseguem o seu “momento Oprah” (perante o declínio do negócio da quinta), quer na tentativa desesperada de Jupe, o antigo actor-criança, de manter o seu parque de diversões relevante.
Ao mesmo tempo, não sei se é realmente suficiente ou relativamente profundo para justificar os desvios da história do formato aventura-perante-uma-ameaça-desconhecida, já que os momentos de flashback sobre o que terá acontecido nas gravações da sitcom, ou o discurso de Jupe no seu mini-museu (para não falar da aparição mais tarde de um motard paparazzo) parecem um desnecessário passo em falso dentro do filme. Parece-me muito mais interessante olhar para as motivações das duas personagens secundárias que ajudam os irmãos, o técnico informático (um surpreendente Brandon Perea) que mais do que uma recompensa financeira procura pertencer a algo comum, ou o excêntrico director de fotografia (uma homenagem a Herzog?), cujo interesse é despertado quando lhe falam num “impossible shot”. Ou seja, em duas imagens: mais do que tentar perceber o significado do sapato que fica em pé num ângulo impossível durante o ataque na sitcom e que nunca é explicado, tentar encontrar as imagens-paralelo que Peele deixa ao longo do filme como pistas, como o facto da primeira vez que vemos a quinta, o pai de OJ está a treinar o cavalo Lucky, a ensaiar uma cena para um hipotético filme, em que o cavalo se deita no chão para facilitar a subida de alguém magoado, algo que vai acontecer mais tarde perto do fim quando OJ, magoado, precisa de ajuda para montar o cavalo. Será aqui o espectáculo mais interessante do que a ideia de uma crítica a esse espectáculo?
Abraço,
João Araújo
Allô, allô,
A tua resposta acende em mim novas questões, até porque já vejo a experiência do filme à distância e, como disse, para mim, este é um filme de degustação lenta: o prazer está mais no caminho (nas questões que levanta) do que no seu desfecho (nas respostas que tenta dar). Acho que a proveniência cómica, que apenas aludes, de Peele está totalmente à vista aqui (como está a comédia em vários filmes de Shyamalan), sobretudo o humor mais negro e awkward, que também resulta da situação satirizada no filme destas personagens à procura de fame and fortune quando o mundo pode estar à beira do fim com a invasão do alienígena comilão. Quando acabei de ver o filme, confesso, não pensei em Shyamalan, não pensei em Spielberg, não pensei em Lynch… pensei, imagina só, em Ruben Östlund: a sequência do macaco ou é distractiva e um passo em falso ou é, na realidade, o grande happening do filme, o momento em que Peele “solta a franga” (ou solta o chimpanzé), permitindo-se a si mesmo, e finalmente, a libertação no filme de uma espécie de energia bruta, raivosa, animal, “irracional”. É isso que acho lynchiano q.b. (se não mesmo buñueliano): este momento de absurda violência que “manda abaixo” o cenário anti-séptico de uma sitcom familiar. A revolta contra o lado construído e phony desta América é canalizada pela performance – e é aqui que me ocorreu Östlund e a cena mais marcante de The Square (O Quadrado, 2017) – do chimpanzé. Sabe a “grande lição” esta irrupção de violência animal absolutamente desmedida, filmada, já agora, com uma precisão e uma mestria – todo o trabalho sobre o fora-de-campo, sobre o que não é mostrado, é notável – digno do mais inspirado Shyamalan ou até Hitchcock.
Aqui, temos um realizador/operador de câmara, saído da sua “gruta” histórica (leia-se, o analógico), que agarra a oportunidade de filmar o infilmável e, ainda, tornar-se, enfim, o herói do dia.
Gosto da ideia de este ser um Tremors da nova era, em certa medida, um Tremors ao contrário, “vindo” dos céus. E sim: todas estas personagens viram todos estes filmes, algo sinalizado pelo nope dito pelo protagonista depois de, em vão, tentar perceber de onde vem, afinal, a ameaça (porque “mapear” os céus não é fácil para quem “rasteja” cá em baixo, tentando sobreviver ao mundo-cão do showbiz). Os diálogos são algo desconexos, as personagens parecem, cada uma delas, protagonizar a sua muito particular e ensimesmada sitcom. Acho que o avatar de Herzog (bem visto!) é um pouco como uma espécie de caçador mitologizado que já viu e fez tudo, sendo apenas tentado pelo “impossível”. Joris Ivens, outro documentarista importante, acabou a sua vida a tentar filmar “o que não se vê”: o vento. E Méliès terá sido decisivamente enfeitiçado pelo cinema quando assistiu ao agitar da folhagem das árvores ao fundo da vista Lumière de Repas de bébé (1895).
Aqui, temos um realizador/operador de câmara, saído da sua “gruta” histórica (leia-se, o analógico), que agarra a oportunidade de filmar o infilmável e, ainda, tornar-se, enfim, o herói do dia – o analógico acaba, aliás, por salvar o dia não através de um filme mas mediante a difícil produção de uma fotografia impressionada numa chapa metálica (interessante esta ideia de que, no final, em desespero de causa, são os processos mais “arcaicos” ou “primitivos”, manuais, não eléctricos, a permitirem que um registo histórico desta magnitude possa ter lugar). Isto faz ainda mais sentido, uma vez que a dupla de irmãos pertence a uma longa linhagem que começa no jóquei que montou o cavalo do primerissímo filme de Muybridge. Esta perspectiva redentora do analógico também me comoveu, confesso. Não se trata, claro, de um acesso de sentimentalismo ou “nostalgia pela nostalgia”, até porque sabemos bem que o registo histórico só serve à personagem para esta poder ir ao programa da Oprah – não se trata propriamente de “salvar o mundo”, mas de “me” salvar “do meu” anonimato. E, também por isso, sentimos que há qualquer coisa da violência furiosa do animal no set televisivo que é justificada. É por isso que penso que a sequência do chimpanzé não é um rodapé aqui, bem pelo contrário, trata-se do “texto principal” do filme. É a ele que regressaremos quando quisermos domar o que é da ordem do indecifrável em Nope. Se calhar o verdadeiro alien seja o nosso descendente mais antigo, a nossa “origem”: o macaco.
Posto isto, queria saber como antecipas o próximo passo a ser dado pelo cinema de Peele. Queria partilhar contigo um certo receio de que Nope tenha sido too much e a tentação “de recuar” seja grande para alguém, afinal, também produto desse milieu mediático que é aqui satirizado, como é Peele. Penso que Shyamalan, depois de Signs, não parou de procurar “ir mais longe”, no entanto, é sabido o preço alto que teve de pagar: um penoso – e injusto, a meu ver – processo de proscrição pela indústria mas também – sublinhe-se – pela globalidade da crítica.
Abraço,
Luís Mendonça
Ok, ok, percebo essa ligação lynchiana-buñueliana ao usar um estimado artefacto cultural como a sitcom familiar americana e levá-lo à decadência, sublinhando o seu carácter artificial e irreal como espelho para o retrato de uma sociedade obcecada com a cultura como apenas entretenimento. E a imagem primordial do chimpanzé em descontrolo (ou a fugir à sua domesticação), como símbolo de uma revolta contra essa artificialidade, contra o fingir que está tudo bem, é poderosa, especialmente se pensarmos na ligação com o actor-criança (também ele um adereço) que irá mais tarde perpetuar esse ciclo de exploração, tragicamente sem perceber o seu papel (da mesma forma que guarda orgulhosamente as recordações da sitcom num mini-museu). Da mesma forma, a comparação com The Square é bem pensada, pela ligação a um dos temas centrais do filme, da impossibilidade de controlar/domesticar um predador, de tentar humanizar um animal para entretenimento da sociedade, ilustrado em Nope pelo fist bump entre o actor-criança e o chimpanzé, uma espécie de inverso maligno daquela famosa imagem do toque entre a criança e a criatura de E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982). E voltando a Spielberg, uma das comparações que o filme recordou-me já mais tarde é com Jaws (Tubarão, 1975), pelo retrato do grupo a perseguir uma ameaça, pela construção hábil de uma parábola sobre a natureza humana. Acima de tudo, por todas as referências que já enumeramos, e pelas vezes que já o ouvi a falar sobre os seus filmes, Peele é um cinéfilo, profundo conhecedor do cinema americano e em particular do género do terror, que sabe evocar referências no momento certo e jogar com as “regras” do jogo, sendo difícil de negar a sua capacidade em criar momentos cativantes (indo até buscar elementos ao western), de uma forma quase clássica, particularmente na segunda metade do filme.
Todo o caminho para chegar a essa fotografia final, desde o recurso à câmara manual, as soluções para sinalizar as quebras de electricidade, o cavalo como ajudante do cowboy, ilustram bem a tal imaginação hiperactiva de Peele ao serviço da história.
Ao mesmo tempo, e apesar desta troca de argumentos, continuo pouco convencido da pertinência da história paralela do flashback e do chimpanzé, a não ser para justificar a existência do parque de diversões vizinho à quinta dos dois irmãos (é algo que já vem de Us, outro filme inegavelmente eficaz a espaços mas que também tendia a complicar em demasia o argumento a favor do espetáculo). O filme funcionava melhor sem essa “distração”, já que toda a trama na quinta, na imaginação do seu desenlace é bastante inspirada, ou seja, sem a necessidade da ligação à explosão de violência no set televisivo, que mesmo que funcione como um lembrete do perigo de tentar domar o indecifrável como escreves, parece passar ao lado do nosso grupo da quinta que tenta capturar imagens da criatura nos céus e não influência as suas acções ou motivações, inconscientes ou ignorantes desse prenúncio – é um aviso que funciona apenas para o espectador.
De qualquer modo, sublinhas um pormenor importante do filme, que é o embate entre o digital e o analógico, e sim, não me parece que seja apenas uma questão de nostalgia, mas principalmente uma forma de (outro) aviso sobre a facilidade de perder o contexto histórico, esquecer o que vem antes, ser ofuscado pelas luzes do espectáculo e showbiz. Acho mesmo muito curiosa a ligação entre esses dois momentos de registos analógicos, o primeiro com referência ao filme de Muybridge, uma tentativa de perceber um movimento que escapava ao olho humano, e a imagem final capturada numa fotografia impressa numa chapa metálica, como se tanto tempo depois da “invenção” do cinema, das moving pictures, ainda andassemos atrás de uma tentativa de capturar o inexplicável, do que foge ao olhar, para assim o tornar real. Mas não é só isso, todo o caminho para chegar a essa fotografia final, desde o recurso à câmara manual, as soluções para sinalizar as quebras de electricidade, o cavalo como ajudante do cowboy, ilustram bem a tal imaginação hiperactiva de Peele ao serviço da história. Posto isto, deixo a conclusão desta troca para ti, respondendo à tua pergunta sobre o que espero para o futuro de Peele, voltando ao início: quando escrevia que Peele parecia desta vez mais investido em desenvolver uma linguagem cinemática própria, referia-me à forma como este parecia procurar livrar-se das amarras do filme de género para explorar novos caminhos que não tinha abordado antes, algo que parece conseguir aqui (por exemplo, na construção lenta da história e através das personagens), o que pode ser um bom indicador para o que vem a seguir – é algo que também encontras aqui, que projectas para os próximos filmes de Jordan Peele?
Abraço,
João Araújo
Aloha,
Espero mesmo – também sinto que poderá ser inevitável – que Peele continue a tirar-nos o chapéu da cabeça, que continue a ser um Zéfiro deste calibre.
Confesso que não embarquei minimamente na euforia inicial em torno de Peele. Por isso, ainda digiro o meu próprio espanto face às “capacidades”, a meu ver só agora inteiramente reveladas, postas a nu, deste realizador. Mas se há coisa que Nope põe em evidência é que temos aqui um cineasta capaz de transformar uma dada visão do mundo – crítica da sociedade em que vive – em puras ideias de cinema: ritmo, gestos, silêncios e uma câmara que sintetiza tudo, reduz ao essencial, privilegiando o espaço off. Portanto, Peele é um metteur en scène e alguém que quer pensar o terror numa relação estreita com a própria montagem – há aquela figura da poética pasoliniana da “câmara sensível”, não é? Pois aqui eu sinto a montagem, sinto o discurso a ser lentamente urdido à minha frente, passando-me a perna, fazendo piruetas no ar, soprando com força contra mim e levando pelo ar o meu chapéu imaginário de cowboy . Espero mesmo – também sinto que poderá ser inevitável – que Peele continue a tirar-nos o chapéu da cabeça, que continue a ser um Zéfiro deste calibre.
Um abração,
Luís Mendonça