This is Macbeth by Giuseppe Verdi…
this isn’t one of your crummy movies.
Birds on stage, back projection, laser beams!
What is this? An opera or an amusement park!
Quando se lançou no desenvolvimento de Opera (Terror na Ópera, 1987), Dario Argento era uma figura incontornável do cinema internacional: dirigiu um punhado de obras marcantes, incluindo Profondo rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975), Suspiria (1977), Inferno (1980) e Phenomena (1985); contribuiu para a consolidação do giallo enquanto reconhecível subgénero cinematográfico, depois de o mestre Mario Bava ter delineado os seus alicerces em La ragazza che sapeva troppo (A Rapariga Que Sabia Demais, 1963) e 6 donne per l’assassino (Seis Mulheres Para Um Assassino, 1964); participou na afirmação de outro subgénero popular, o western spaghetti, ao co-escrever (com Bernardo Bertolucci e Sergio Leone) o argumento de C’era una volta il West (Aconteceu no Oeste, Sergio Leone, 1968); e co-produziu a vibrante ode à agonia da sociedade de consumo em Dawn of the Dead (Zombie – A Maldição dos Mortos-Vivos, George A. Romero, 1978). Pelo meio, esteve envolvido na produção de uma encenação da ópera Macbeth (1847) de Giuseppe Verdi. A coisa não correu bem e foi afastado da produção. Pelo que, aparentemente, e as semelhanças mesmo que não assumidas também não são escondidas, Opera não só é inspirado no romance Le Fantôme de l’Opéra (1910) de Gaston Leroux como também nessa sua experiência fracassada.
Um realizador de cinema de terror, interpretado por Ian Charleson, trabalha numa encenação de um Macbeth pouco convencional (com corvos, retroprojeções, lasers) a ponto de surgirem reclamações constantes da intérprete lírica principal, que, entretanto, sofre um acidente e é substituída por uma jovem estrela em ascensão, Betty (Cristina Marsillach), e sugestões da crítica especializada que o aconselham a regressar aos filmes de terror. Dos planos dos bicos ameaçadores dos corvos impertinentes, passamos para detalhes da sala plasmados na superfície dos seus globos oculares. Pouco depois, repetem-se os planos subjectivos do assassino com a sua respiração ofegante e da jovem vedeta com alfinetes a suspenderem-lhe a abertura das pálpebras. Por isso, longe das paletas cromáticas psicadélico-efervescentes que o tornaram famoso, em Opera Argento retoma uma certa secura dos seus primeiros filmes. Em vez das atmosferas intoxicantes que nos turvam a visão, todo o filme parece organizado em torno do acto de olhar: quem olha, como olha e para o que olha.
Numa entrevista pediram a Dario Argento para aprofundar a questão do voyeurismo na sua obra ao que ele respondeu que o cinema também é uma arte voyeurista. De facto, tanto Cristian Metz como Laura Mulvey associam um prazer voyeurista ao aparato do cinema, às suas condições de exibição e convenções narrativas, designadamente quando este se torna num dos principais prazeres no visionamento do cinema: a ilusão de o espectador olhar para um universo privado que vive alienado da sua presença. O dispositivo do olhar domina uma grande parte das visões feministas sobre o cinema, principalmente após 1975, com a publicação do ensaio seminal “Visual Pleasure and Narrative Cinema” por Laura Mulvey. Partindo da psicanálise como arma política e do cinema clássico de Hollywood como estudo de caso, designadamente as obras de Alfred Hitchcock e Josef von Sternberg, Mulvey verifica a persistência de um olhar masculino em que a presença feminina existe para ser olhada e sempre em função desse olhar masculino, algo que reflecte o modo como as estruturas da sociedade patriarcal são traduzidas nas formas cinematográficas.
Quando o escritor se defende com as suas crenças pessoais, a jornalista explica-lhe que isso não interessa muito se a sua obra sugere precisamente o contrário. Dario Argento colocava-se numa posição auto-reflexiva, portanto.
A obra de Dario Argento anterior a Opera já espoletava muitas destas questões. Em Tenebre (1982), uma jornalista questiona um escritor (outro possível alter ego do cineasta) por que o seu romance é sexista e por que despreza tanto as mulheres na sua obra. Quando o escritor se defende com as suas crenças pessoais, a jornalista explica-lhe que isso não interessa muito se a sua obra sugere precisamente o contrário. Dario Argento colocava-se numa posição auto-reflexiva, portanto. Porém, os comentários que fazia não ajudavam, como quando assegurava que preferia utilizar uma mulher bonita e jovem a ser esquartejada numa das suas montagens operáticas, milimetricamente encenadas. Opera parece ser uma resposta a quem condenava a sua misoginia e sadismo, bem como a frequência com que apresentava mulheres esbeltas a serem chacinadas. Mas também parece endereçar, mesmo que inconscientemente, os estudos que, de uma forma abrangente, reflectem sobre o dispositivo do olhar no cinema.
A cegueira literal ou figurativa nas heroínas do período mudo – como Dorothy Gish em Orphans of the Storm (As Duas Órfãs, D. W. Griffith, 1921), Mary Philbin em The Man Who Laughs (O Homem Que Ri, Paul Leni, 1928) e Virginia Cherrill em City Lights (Luzes da Cidade, Charles Chaplin, 1931) – sugere uma ausência de desejo, refere Linda Williams. E adianta que os olhos claros “parecem transparentes, não focados, fáceis de serem penetrados, incapazes de penetrarem, enquanto os olhos escuros são o seu reverso”. Ou seja, a mulher como imagem, o homem como portador do olhar, nas palavras de Laura Mulvey. Deste modo, o protagonista masculino pode livremente dirigir o olhar para a mulher em momentos de contemplação erótica sem que esta devolva o olhar e alimente o seu próprio desejo, num jogo de olhares que reproduz o prazer voyeurista associado ao aparato do cinema, de que falam Metz e Mulvey.
No caso da heroína de Opera, esta não é cega, nem é relevante a cor dos seus olhos. Porém, Argento utiliza um dispositivo que reforça a posição do seu olhar e que a torna em testemunha imobilizada e forçada dos crimes cometidos. Aprisionando-a e colocando-lhe alfinetes entre as pálpebras, o assassino obriga-a a olhar a violência que aplica às suas vítimas. Curiosamente, uma dessas vítimas é interpretada por Daria Nicolodi, ex-companheira de Dario Argento de quem se separara recentemente, por meio da perfuração de um dos olhos. Será que “viu” e “sabia” demais? Entre o olhar e a cegueira, a heroína de Opera é colocada entre duas opções. O movimento das pálpebras para impedir o olhar certamente que lhe ferirá os olhos e provocará a cegueira. Enquanto cega, deixaria de ser a testemunha e passaria a ser apenas a vítima, subvertendo o artificio montado pelo assassino, algo que, por outras palavras, não é mais que uma invenção do próprio cineasta Argento.
Passadas três décadas, Dario Argento interpreta uma das partes de um casal de idosos que caminha para a demência no filme Vortex (2021) de Gaspar Noé. Uma das cenas mais intrigantes acontece quando a esposa acusa o marido de a querer matar, depois de a tela se ter separado em duas por meio de um split screen, efeito utilizado em grande parte do filme. Para além das mãos (por vezes de assassinos) e da voz que empresta a poucos filmes, ver Argento como protagonista é algo inédito. Quando, em Vortex, o actor Argento é acusado de tentativa de assassinato, isolado numa das telas, a perturbação cresce porque chegamos a acreditar que é o próprio cineasta Argento que vemos, suposto sádico, sexista e misógino, capaz de engendrar o assassínio da companheira demente que se tornara num fardo. E perscrutamos como Argento encenaria essa morte. Com a voz distorcida, de gabardina e luvas para iludir os detectives? Reatando a colaboração de longa data, entretanto interrompida, com o irmão, o produtor Claudio Argento? Com um fundo sonoro composto pelos sintetizadores ameaçadores de Suspiria dos Goblin, pelo italo disco de Tenebre de Claudio Simonetti, Fabio Pignatelli e Massimo Morante, pelo heavy metal galopante de Flash of the Blade dos Iron Maiden, ou pelas árias arrebatadoras da ópera Macbeth? Provavelmente com nada disto, porque, a acreditar nas suas palavras, a companheira não seria suficientemente jovem e atraente.